Não tenho memória dos detalhes nem da autoria mas lembro-me bem de uma história que li na minha juventude em que os órgãos se revoltavam: o cérebro entendia merecer a primazia porque era quem pensava e comandava toda a ação, mas o coração contrapunha que, sem ele, o cérebro morreria quase de imediato e, em seguida, todos os outros órgãos apresentavam os seus argumentos, ou seja, o que aportavam a esse sistema que é o corpo humano. De facto, os pulmões podem ser mais importantes que o baço e a tiroide ter mais impacto do que a apêndice mas, a par da anatomia e das ciências da vida, também as ciências sociais lembram que o sistema é mais do que a soma das partes e que o que se perde em discussões estéreis sobre a efetiva importância de cada um impede que tiremos o melhor proveito do todo.
Este arrazoado vem a propósito da discussão que existe sobre o público e o privado no sector da saúde. Entendamo-nos: ninguém duvida nem ninguém contesta que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é fulcral e o principal prestador de cuidados de saúde em Portugal, mas também é verdade que existe um sector privado, que no caso dos hospitais representa cerca de um terço da capacidade hospitalar do país. SNS e privados (e social) fazem parte do Sistema de Saúde Português. E, sendo um “sistema”, seria de esperar que funcionasse de forma harmónica, assumindo cada parte as suas responsabilidades e competências, bem como percebendo-se que um valor maior advém/adviria da articulação de funcionamento e de planeamento para momentos de especial preocupação. Um sistema significa também que o Ministério da Saúde é a tutela de todas as partes e não apenas de uma delas.
Passando da teoria para a prática. Apesar da disponibilidade manifestada desde a primeira hora pelos hospitais privados, o Ministério da Saúde entendeu em abril que o SNS seria autossuficiente e abdicou da colaboração de outras entidades. A luta nacional contra a COVID19 foi determinante para a forma como se controlou a primeira onda, contudo, esta está longe de ser a única doença no país. Passados mais de 6 meses conclui-se que a dedicação quase exclusiva à COVID19 tem penalizado milhões de portugueses e, por isso, o alerta, quer das associações de doentes (crónicos, oncológicos, etc.), quer de profissionais de saúde e diversas entidades da sociedade civil, para que se retome a atividade assistencial.
Temos hoje uma situação muito complicada em que mais de 100 mil cirurgias foram adiadas, um milhão de consultas hospitalares deixaram de ser feitas e muitos milhares de rastreios, nomeadamente oncológicos, não foram realizados no tempo devido. Este atraso na prestação de cuidados de cuidados de saúde está, uma vez mais, a penalizar quem mais precisa. Como a Lancet acaba de afirmar, a covid-19 deixou de ser uma pandemia para ser uma sindemia, o que torna urgente que se reconheçam todas as consequências e o problema seja abordado com maior abrangência.
Estamos genuinamente preocupados com esta assimetria de tratamento porque quem tem condições de partida acedeu aos hospitais privados e foi possível nos últimos meses recuperar muita atividade. A questão que se coloca é se o acesso dos portugueses aos cuidados de saúde não deveria ser assegurado, nomeadamente para aqueles que apenas podem recorrer ao SNS.
No passado sábado, o Primeiro Ministro António Costa valorizava como uma das conclusões da cimeira ibérica o acordo de cooperação para que passasse a “responder na emergência quem estiver em melhores condições de proximidade para o fazer, quer seja uma ambulância espanhola, quer portuguesa, consoante aquela que estiver mais próximo de um cuidado de emergência”. Ora, se este raciocínio é possível e desejável na relação entre países, por maioria de razão não o deveria ser na articulação entre entidades que em Portugal prestam cuidados de saúde? Estamos certos de que os portugueses apreciariam ter mais acesso a cuidados de saúde e com o conforto e a eficiência da oferta de proximidade.
Há hoje recursos do sistema de saúde que não estão a ser cabalmente utilizados e os portugueses, nomeadamente os de menores recursos, estão a ser penalizados.
Esta situação levou à tomada de posição de muitas entidades e mais recentemente do atual e ex-Bastonários da Ordem dos Médicos numa carta aberta (Público de 14 de outubro) em que se apela para que o “SNS lidere uma resposta global, envolvendo de acordo com as necessidades dos doentes, os sectores privado e social, que permita aumentar o acesso a todos os cuidados de saúde com uma resposta inequívoca a todos os doentes covid e não covid”.
Note-se que a própria Lei de Bases da Saúde, que o ano passado foi amplamente discutida em termos políticos e que tem uma visão bastante “estatista”, reconhece que podem, “de forma supletiva e temporária ser celebrados acordos com entidades privadas e do sector social…” (Base 6). “Em caso de necessidade fundamentada”, diz a lei. Quererão necessidade mais fundamentada do que “o empurrão” dos registos oficiais da atividade assistencial que ficou por realizar e do impacto que terá na saúde a atual limitação de acesso?
Porque, repare-se, o que está em causa não será tanto saber se o sistema pode atingir o limite, se o país está ou não em condições de fazer face à maior exigência da época de Outono-Inverno, se temos cuidados intensivos suficientes ou não. Como, na Europa, os ingleses já reconheceram - abrindo concursos públicos para contratação de serviços privados de saúde que visam a recuperação da atividade clínica não realizada no primeiro semestre do ano - o problema não é potencialmente daqui a umas semanas: o problema já foi criado nos últimos meses e está a chegar a um ponto insuportável para muitos cidadãos.
Ouvindo os doentes e os profissionais de saúde, sendo sensíveis à informação e às interpelações dos Bastonários da Ordem dos Médicos e de tantos outros responsáveis, reconhecemos que é uma necessidade que o sistema de saúde atue como tal. Os hospitais privados estão disponíveis para cumprir a sua parte, assim haja vontade política na linha do que tem sido declarado e a definição atempada de um enquadramento adequado para esta participação. Vamos a isso?
* Óscar Gaspar é presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada