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Opinião

Mário Soares

Mário Cláudio publica no Expresso uma série de crónicas inéditas dedicadas a portugueses marcantes, desde a Idade Média até à contemporaneidade. Começa com o retrato de Dona Joana de Eça, de autor desconhecido do século XVI, e terminará com Mário Soares, pintado por Júlio Pomar. Há uma subtil diferença nos textos. Nos autorretratos, a voz é a do narrador. Nos retratos, a voz é a do retratado. Mário Cláudio é o único autor português a receber por três vezes o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores

No ato da inauguração, assediado pelas câmaras, e hesitando entre o sorriso da entrega espontânea e a impassibilidade do estadista experimentado, compreendi o mal-entendido que ali se jogava. Houve aplausos, ao silêncio sucedeu o brouhaha, e observei os convidados em magotes, formais como a ocasião impunha. Entretanto os já retratados, alinhando-se nas paredes, olhavam-me de soslaio, e exigiam-me a coragem de me manter a pé firme.

Um amigo da vida inteira jamais nos verá com razoável conhecimento da alma que nos habita, isto porque possui de nós uma ideia vadia, e ora jovial, ora sofredora, que se obriga à escolha cristalizada no tempo. Muito ao contrário, um estranho que connosco se encontra pela primeira vez, quando para ele posamos, mergulhará mais profunda, e mais livremente, na nossa actualidade. O meu velho companheiro fora sempre, e de resto, ostensivo adversário de qualquer poder.

Talvez a encomenda resultasse de uma dessas precipitações características dos de minha têmpera, os quais apõem num impulso a sua assinatura, receosos de mudar de opinião. Percebendo isso, os circunstantes acabariam por investir na ignorância do quadro, conversando sobre oportunos faits-divers, a bronca do sangue contaminado, as excelências do restaurante Pap’Açorda, ou a extinção oficial da URSS. De quando em quando eu lançava a mirada à imagem de mim, e constrangia-me o político reinadio, sentado num trono com uma cabeça de pantera num dos seus braços, mais Ramsés II sem neme, nem barba postiça, do que Presidente da República Portuguesa.

Que diabo, desejaria o artista que eu saltasse para fora da moldura, de alegria arreganhada como a dentuça de um tigre? Pretenderia ele, amante de feras, e do caos que provocam, que o grande felino derrubasse os presentes, de copo de whisky, ou de cálice de Porto, na mão, e que atirasse de cangalhas os criados de casaco branco, e as respectivas bandejas de petits-fours? Esforcei-me por me convencer de que a reputação de bom garfo, e de courreur-de-femmes, me atraíra a simpatia dos cidadãos comuns, desvanecidos com a carnalidade do mais alto magistrado da Nação.

Mas logo repararia nos meus antecessores, suspensos a toda a volta, uns hirtos, outros desconfiados, e até um que simulava não dar conta do que quer que fosse, no intuito de se defender de assestar na minha pessoa o perscrutador monóculo da insolência. A barulheira do público ia escasseando, e apenas os solitários se lembravam de reanalisar a espécie de arara que se estampava na tela, azul e vermelha, amarela e verde, saída do engenho de um deslumbrado com os esplendores da selva amazónica.

A galeria esvaziava-se, e ouvia-se o tilintar das chaves do segurança que a encerraria. Deixando-me ficar para último, estremeci numa gargalhada, não sabendo bem se contra mim próprio, se contra o gracioso que me pintara.

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