Mário Cláudio publica no Expresso uma série de crónicas inéditas dedicadas a portugueses marcantes, desde a Idade Média até à contemporaneidade. Começa com o retrato de Dona Joana de Eça, de autor desconhecido do século XVI, e terminará com Mário Soares, pintado por Júlio Pomar. Há uma subtil diferença nos textos. Nos autorretratos, a voz é a do narrador. Nos retratos, a voz é a do retratado. Mário Cláudio é o único autor português a receber por três vezes o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores
Desde sempre me entusiasmei com as armas de fogo, a variedade dos sons do disparo, e o cheiro que se lhes segue, o qual em mim assinala um drama, ou uma aventura. Até aos dezasseis anos meu pai proibira-me de as utilizar, e nem quando posei para o retratista italianizado, ia eu nos catorze, me autorizaria a enfiar uma pistola na faixa que me apertava a cintura. Foram muitas as lágrimas que verti às escondidas, mas logo me recompus do desgosto, distraindo-me com coisas que me apaixonavam, mas de que sentia enorme vergonha. Refiro-me ao canto dos pássaros, ao coaxar das rãs, e ao voo das libélulas, maravilhas que me consumiam os nervos.
Por esse tempo eu deixava a porta entreaberta, e metia-me na tina de água morna, certo de que as criadas viriam espiar-me. Detectava-as reflectidas no vidro do armário onde se guardavam as toalhas, mas também as conchas da colecção que minha mãe andava a ajudar-me a formar. Fugiam espavoridas no receio de serem apanhadas, e ouvia-as comentar entre si, “Ai que corpinho, parece de jaspe!” Um pouco sonolento no meu banho, eu hesitava entre rir e chorar, impúbere ainda.
Mas o retrato desvendaria todo o meu futuro, o fraco por mulheres de pé pequeno, e sobretudo se prima-donnas, a queda para a vida política, o gosto por caçadas e jantares, e a perdição por estatuetas de alabastro. Intranquilo diante do pintor, o garoto João Pedro que eu era desconfiava do olhar penetrante do que me copiava, um sujeito vulgaríssimo, e apetecia-lhe cada vez menos quedar-se ali, de cenário de ópera ao fundo, a sonhar com espingardas e carabinas.
O artista atirou a paleta ao chão, depôs o pincel no escaparate do cavalete, e indignou-se numa voz fininha, “Não consigo, o Menino está sempre a mexer-se, estragado de mimos, fartei-me de o aturar!” Mesmo assim, passados dias, cobrou a meu pai uma quantia exagerada pela obra de que o tinham incumbido.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt