Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano. Todas as quintas-feiras nos Exclusivos do Expresso
Às vezes queria ser outro. Aquele homem que, da minha janela, vejo a caminhar sobre a relva, vindo lá de baixo, talvez dos armazéns junto ao canil municipal ou da paragem de autocarro. Invejo-lhe coisas incertas, que desconheço: o horário, o trabalho – qual? O que invejo é a incerteza. Imagino-o amnésico, um ser sem passado e de futuro vago. Invejo apenas este momento em que o vejo a atravessar o meu campo de visão e não o que ele deixou para trás nem o que vai encontrar porque tudo isso é já demasiado concreto, uma vida como as outras, com os seus objetos sólidos, os seus sólidos deveres e o que quero é o que não posso tocar.
Quero o instante, nada mais. A aparição súbita, o cansaço aparente e não as causas desse cansaço, as causas concretas, reais. O que ele terá feito durante o dia pouco me interessa. Não me atrai. Apenas a sua condição pura e brevemente física, a de um homem que se materializou de repente, nascido no momento em que o vi, que não existia antes ou era como se não existisse pois eu não tinha consciência dele, apenas isso me fascina. Invejo somente uma possibilidade de vida que se evapora logo que o homem dobra a esquina – e eu queria ser esse homem que dobra a esquina e desaparece, sendo ainda o outro homem que o vê desaparecer.
O desejo é o de que o campo de visão coincidisse com o campo da consciência, que o homem fosse personagem de uma peça de teatro e que essa personagem atravessasse o palco sem dizer palavra, sem participar no drama, e fosse ela, afinal, a protagonista, uma pessoa que passou. E isto, este desejo de experimentar outra vida, acontece-me com frequência. Quando vejo grupos de miúdos a vir pelo mesmo caminho daquele homem – os grupos de adolescentes, um de bicicleta a pedalar ao ritmo dos amigos que seguem a pé – e pergunto-me de onde vêm? Onde estiveram? Para onde vão? E não quero saber, porque o desconhecimento – a pura realidade física, instantânea, dos corpos – é que me faz desejar ser um deles, apenas um membro do grupo, a acompanhá-los, mas com o desconhecimento que é meu, que os vejo.
Atribuo estes desejos ao cansaço. Ao cansaço de mim. Ao cansaço da voz silenciosa e incessante da consciência e à vontade de interromper por momentos esse fluxo que se confunde com o que sou. Um hiato entre as duas margens de mim e que esse hiato pudesse ser um corpo em trânsito a condensar num breve intervalo, no tempo da sua passagem, a nostalgia de tudo o que não fui, de tudo o que não pude ser. O corpo do homem que, ao fim da tarde, vejo da minha janela, tão real ou irreal como um sonho, a caminhar sobre a relva. Queria poder dizer que aquele homem breve, aquele homem intangível, era eu e isso ser verdade. O outro era eu e ele não sabia.
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