Opinião

Fundos, políticas e bens públicos devem aumentar a resiliência ambiental

Ana Matias e Ana Almeida*

Os fundos públicos, como o Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas agora em discussão, devem financiar a conservação do meio ambiente e atividades que a promovam e aumentem a sua resiliência e não contribuir para a destruição de ecossistemas marinhos

O Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas (FEAMP) é o fundo estrutural da UE destinado a apoiar a implementação da Política Comum das Pescas (PCP) e um dos seus objetivos é apoiar os pescadores e aquacultores na transição para tornar as suas atividades mais sustentáveis. O novo quadro financeiro, composto por 6 mil milhões de euros de fundos públicos e que vigorará entre 2021 e 2027, está atualmente a ser discutido pelas instituições europeias. Com estas discussões, volta à agenda um dos temas que mais tem preocupado as associações de conservação marinha: a reintrodução de subsídios que aumentam a capacidade da frota, vulgarmente conhecidos como “prejudiciais”, que foram no passado diretamente co-responsáveis pela degradação dos ecossistemas marinhos.

Numa visão partilhada com as ONG de Ambiente, o Comissário Europeu para o Ambiente, Oceanos e Pescas, Virginijus Sinkevičius, reiterou a visão da Comissão sobre aquilo que entende ser uma excessiva subsidiação de algumas atividades da pesca que aumenta a dependência e precariedade social e económica do sector. Esta é uma realidade altamente nociva e contrária aos princípios que devem pautar a gestão de recursos (naturais) públicos e a alocação de fundos também eles públicos. São exemplos disso a atribuição de subsídios para renovação da frota e combustível que permitirão, de forma direta, sobrecapacitar a frota e aumentar o esforço de pesca, promovendo a sobrepesca. Estes subsídios levam a uma maior depleção dos recursos marinhos, colocando em risco a sustentabilidade de recursos pesqueiros já de si fragilizados por anos e anos de sobrepesca. Adicionalmente, alargam também o fosso entre a pesca industrial e a de pequena escala, acentuando e cimentando desigualdades e a competição desleal.

Motivada também por estas preocupações, a Plataforma de Pescadores de Baixo Impacto da Europa defende que o futuro FEAMP deverá dar “prioridade à proteção do meio ambiente e à conservação dos recursos pesqueiros”, assim como “apoio a projetos coletivos que contribuam para a sustentabilidade social e económica das comunidades pesqueiras”.

Um artigo científico publicado em abril por alguns dos mais conceituados investigadores em economia das pescas (Changing the narrative on fisheries subsidies reform) demonstrou que há uma clara distinção entre subsídios benéficos, ambíguos e prejudiciais, salientando ainda que mais de metade da pesca realizada em alto mar não seria rentável sem a atribuição de subsídios. O mesmo estudo indica que elementos devem ser considerados em qualquer programa de subsídios benéficos: contributos de pescadores e outras partes interessadas na fase de planificação, objetivos claros a curto e longo prazo e desenvolvimento e implementação transparentes.

UE ocupa 2º lugar em termos de subsídios prejudiciais

O programa deve ainda ser acompanhado de um compromisso político que reconheça as necessidades das comunidades a longo prazo e honre os compromissos nacionais e internacionais – como é o caso do prazo legal assumido pelos Estados Membros para acabar com a sobrepesca nas águas da UE até 2020. No entanto, em 2018, contrariamente ao que seria de esperar e colocando em causa a eficácia da legislação ambiental tipicamente progressista que costuma desenvolver, a UE figurava no 2º lugar em termos de subsídios prejudiciais atribuídos (em montante), sendo apenas suplantada pela China.

A luta contra os subsídios prejudiciais não é de agora. Em 2015, aquando da adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, as Nações Unidas materializaram esta preocupação ao pedir que a Organização Mundial do Comércio (OMC) introduzisse, até 2020, nas suas negociações sobre subsídios à pesca a proibição de “certas formas de subsídios que contribuam para a sobrecapacidade e a sobrepesca”, acrescentando ainda que os países deveriam abster-se de introduzir novos subsídios.

Em junho deste ano, os líderes reunidos na OMC iriam expectavelmente chegar a acordo para eliminar os subsídios prejudiciais e fazer cumprir parte dos objetivos da Agenda 2030. Contudo, devido à crise provocada pela covid-19, esta conferência encontra-se indefinidamente adiada, não impedindo, no entanto, que as partes cheguem a acordo ainda no decorrer deste ano. Na verdade, e tratando-se do primeiro objetivo da Agenda 2030 a dever ser atingido, falhar a sua implementação em 2020 poderá colocar em risco toda a restante Agenda.

A posição que a UE assumirá nestas negociações continua, apesar de tudo, por desvendar. As instituições europeias encontram-se atualmente em trílogo a discutir a posição final da UE nesta negociação e sabe-se já que tanto o Parlamento como o Conselho defendem a reintrodução de subsídios prejudiciais que haviam sido banidos em 2004, como os de apoio à construção de novas embarcações. As duas instituições acabam assim por contradizer de forma frontal a anterior posição da UE nas negociações na OMC, comprometendo a sua credibilidade internacional, bem como a seriedade com que estão a encarar a implementação da Agenda 2030 e, mais recentemente, do Pacto Ecológico Europeu.

Reintroduzir estes subsídios, além de colocar em sérios riscos a proteção do meio marinho, irá expressamente contra a posição de investigadores que pedem uma “generosa fatia” do orçamento para proteção ambiental, investigação, controlo e recolha de dados.

Os fundos públicos têm como finalidade financiar políticas públicas e, concretamente neste caso, devem financiar a conservação do meio ambiente, assim como atividades que a promovam e aumentem a sua resiliência. Podem também logicamente financiar empresas privadas desde que estas salvaguardem a prossecução destes objetivos, mas sempre com vista à sua resiliência e, por fim, independência financeira. Tendo os Ministros da UE falhado o prazo da PCP para acabar com a sobrepesca, é incompreensível que a UE não faça agora tudo para voltar ao caminho certo, especialmente se considerarmos que a crise climática e da biodiversidade se têm agudizado, com efeitos imprevisíveis e amplamente nefastos a todos os níveis, como a pandemia da covid-19 veio mostrar-nos.

Entre as várias vozes que têm vindo a público sobre este tema, Sir David Attenborough afirmou que “um acordo global para acabar com os subsídios prejudiciais à pesca é o próximo passo vital na recuperação dos nossos oceanos para níveis de abundância e diversidade prévios”. Nesse sentido, em março de 2020, 133 ONG de todo o mundo marcaram o início da contagem regressiva até à importante conferência da OMC que iria realizar-se em junho e lançaram o movimento #StopFundingOverfishing. O objetivo era e continua a ser demonstrar aos governantes da UE que, no decorrer das negociações, os olhos de milhões de cidadãos europeus estarão postos em si e que os governos não podem continuar impunemente a subsidiar a sobrepesca e a deterioração dos ecossistemas marinhos.

*Ana Matias – técnica de políticas de pesca na Sciaena

Ana Almeida – técnica de conservação marinha na Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA)

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