Opinião

O pior cego é o que não quer ver

27 abril 2020 13:45

Apesar de inserido na coluna de segunda-feira de Luís Aguiar-Conraria, este artigo foi escrito conjuntamente com Fernando Alexandre e Pedro Brinca, professores de Economia na EEG.UMinho e na Nova SBE

27 abril 2020 13:45

No military general willfully fights blindly. Surgeon Generals shouldn’t either.

Louis Kaplow, 24 de Abril, 2020, The New York Times.

Numa entrevista ao Expresso deste sábado, o virologista Pedro Simas, de forma muito realista, mas assustadora, disse-nos que “estamos no princípio dos princípios da epidemia” e que é irrealista ficar à espera de uma vacina ou tratamento que nos proteja da covid. Simas diz-nos que "não há outra alternativa senão usar o vírus como solução, como se fosse uma vacina atenuada". Para garantir que a nossa capacidade hospitalar não seja ultrapassada, Pedro Simas diz-nos ser necessário desenhar "estratégias inteligentes e seletivas de distanciamento social, apoiadas pelos testes serológicos para saber o que está a acontecer. Sem saber que percentagem da população foi infetada, estamos cegos. É preciso testar uma amostra representativa da população".

O que Pedro Simas diz relativamente ao SNS, dizemos nós relativamente à economia. Até ao momento, os planos anunciados pelo governo para a reabertura da economia não são muito mais do que fazer política às apalpadelas, em que, por tentativa e erro, se vai vendo que sectores da sociedade abrir. Dada toda a incerteza, para minimizar os erros, precisamos de muita informação e de a usar corretamente. Informação sobre a estrutura da economia, naturalmente, mas, antes de tudo, sobre a infeção e, se possível, a imunidade da população. Dispor destes dados é condição necessária para ter algum controlo sobre o processo de reabertura da economia.

Os instrumentos para calcularmos a letalidade do vírus já estão, ou estarão muito em breve, disponíveis. O uso destes instrumentos permite reduzir consideravelmente a incerteza. Infelizmente, não podemos dizer o mesmo em relação a outras dimensões do problema.

No entanto, as últimas notícias sobre o assunto não são animadoras. De acordo com o Público de 25 de abril, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge vai avançar em maio com o primeiro estudo serológico nacional. Recorrerá a uma amostra de menos de 2000 pessoas, constituída por pessoas que vão a laboratórios fazer análises e a quem é pedido que forneçam um pouco mais de sangue para fazer o teste. Não só não parece haver noção da urgência, como tudo indica que estejam a construir amostras não representativas. Porque dizemos isto?

Em primeiro lugar, porque, de acordo com o anúncio, os resultados preliminares apenas estarão disponíveis no fim de junho (ou até em julho). Daqui a 2 ou 3 meses, portanto. Não haverá capacidade técnica e financeira para o Estado português realizar o estudo serológico muito mais depressa? Numa altura em que é essencial informar e criar confiança na população, para esta retomar a sua atividade e modo de vida, vamos ter de abrir a economia às cegas? Dados os riscos quer para a Saúde quer para a Economia, o Governo deve justificar as razões desta opção.

Em segundo lugar, porque a construção da amostra não é minimamente representativa da população. É impossível fazer inferências para a população a partir de uma amostra constituída por pessoas que, por algum motivo de saúde, foram a um laboratório fazer análises. Uma amostra destas está tão longe de ser representativa, pelo que não será um indicador fiável da população geral. Pode haver quem argumente que informação imperfeita é melhor do que nenhuma informação. Mas, quando é enviesada, não há garantia de que assim seja. Também nesta dimensão o Governo deve explicar a razão para esta opção, dado que não trará luz a este problema.

A opção por andar às cegas

Dada a tecnologia disponível, andarmos às cegas é uma escolha. Vários testes serológicos foram já desenvolvidos. Vários reportam taxas de erro muito baixas, ou seja, com um número insignificante de falsos negativos e, mais importante, de falsos positivos. Há testes, com custos irrisórios, que em minutos dão o resultado. Há, naturalmente, testes mais e menos informativos. Uns apenas detetam a presença de anticorpos e outros estimam se há muitos ou poucos.

Todos os dias são anunciados programas económicos de dimensões inusitadas. De milhares de milhões de euros ou até biliões. Os custos de ter a economia fechada são enormes. A cada semana, estima-se que se perdem mais de 2 mil milhões de euros. Os apoios do Estado às empresas e famílias também andam na casa dos milhares de milhões. É incompreensível que não seja uma prioridade avançar rapidamente com um estudo serológico que não custará mais do que algumas centenas de milhares de euros.

A primeira prioridade deve ser avançar com testes que nos dão resultados mais rápidos. Facilmente se monta uma estrutura adequada que recolha dados no país inteiro a vários milhares de pessoas. Numa segunda fase, poder-se-ão fazer testes mais complexos que envolvam a ida de pessoas a um laboratório ou a um centro de saúde. Mas primeiro deve fazer-se o mais fácil e mais rápido.

Percebemos que de um ponto de vista epidemiológico faça mais sentido fazer um estudo destes mais à frente, quando o pico das infeções já esteja definitivamente para trás. Mas essa é uma falsa questão. Dados os custos irrisórios destes testes, uma gota no oceano de custos que tem sido anunciado, devem fazer-se já estes testes e os outros, mais complexos, mais tarde.

Como definir uma amostra representativa

Já foram feitos muitos estudos serológicos em vários países. Quase todos têm vários problemas e todos têm um mesmo problema: amostras não representativas da população. Ninguém se lembraria, para estimar a taxa de desemprego em Portugal, de selecionar uma amostra baseada em pessoas que estejam a sair de fábricas, ou, no extremo oposto, à entrada de centros de emprego. Todos compreendemos que essas amostras seriam enviesadas e que, na base delas, seria impossível fazer inferências sobre a taxa de desemprego em Portugal ou numa qualquer região do país.

O mesmo tipo de problema coloca-se quando, para fazermos testes serológicos, recorremos a pessoas que vão a um laboratório fazer análises. Estaremos a selecionar maioritariamente pessoas que têm alguma preocupação de saúde. Sendo assim, é muito provável que desde o início da pandemia estas pessoas tenham tido particular cuidado em evitar contactos arriscados. Este problema é particularmente severo quando, como anunciado, se pretende captar assim 350 crianças entre os 0 e os 9 anos. Quais são as crianças que têm de fazer análises ao sangue? Muito poucas. Ainda por cima, com grande probabilidade, os pais terão tido particular cuidado com elas, fugindo do vírus a sete pés. Uma amostra obtida assim não é representativa da população. Estaremos, muito provavelmente, a subestimar o número de infetados.

Não sendo possível testar 10 milhões de portugueses, a melhor forma de obter uma boa estimativa é recorrer a uma amostra aleatória, ou seja, uma amostra que dê a cada membro da população a mesma probabilidade de ser selecionado. Só assim podemos extrapolar para a população ou para qualquer parte dela com um grau de segurança conhecido. É desta forma que o Instituto Nacional de Estatística seleciona as amostras que usa nos inquéritos sobre o emprego, sobre a saúde, sobre as condições de vida e muitos outros: seleciona localidades, alojamentos e inquiridos aleatoriamente, garantindo também que a amostra se distribui pelo país para que se possam tirar ilações sobre regiões e partes da população com a precisão pretendida. Neste caso, bastarão alguns milhares de pessoas para se ter uma excelente caracterização da população, com margens de erro bastante apertadas.

O principal problema deste tipo de abordagens é a taxa de resposta. Por exemplo, muita gente recusa-se a responder a sondagens. Se muitas pessoas não aceitassem participar e se fossem, de alguma forma, muito diferentes do resto da população, isto voltaria a levantar o problema do enviesamento da amostra. No entanto, quando se fala de saúde, é quase certo que isso não é problema. O Inquérito Nacional de Saúde tem tido taxas de resposta na ordem dos 80%. Num assunto destes, quase todas as pessoas selecionadas aceitariam participar, até porque também estão interessadas em saber o seu resultado.

Dado o baixo custo dos testes, corre-se o risco de haver várias entidades a fazer os seus estudos. Um para o Norte, outro para um município qualquer, outro para o futebol. Seria muito mais útil juntar os esforços num estudo de âmbito nacional. Se forem testadas vários milhares de pessoas, digamos 30.000, será possível estratificar os resultados, obtendo boas estimativas por escalão etário, por região ou até mesmo de alguns municípios, por género e até por comorbilidades.

Como é que esta informação nos ajuda?

A reabertura da economia é uma experiência nova. Sabemos que será uma estratégia gradual, com avanços e recuos. Os recuos poderão causar crises de confiança, tornando mais difíceis novos avanços. Daí a necessidade de os evitar tanto quanto possível. A comunicação da estratégia será crucial para manter e reforçar a confiança necessária à reabertura da economia e só será credível se baseada em informação rigorosa.

Um dos critérios essenciais para a decisão da abertura dos sectores de actividade, ou de determinadas regiões, se o risco de infeção de determinados grupos da população, bem como a probabilidade de necessitarem de cuidados hospitalares. Por isso, numa primeira fase, mesmo que não seja possível determinar quem desenvolveu imunidade, uma estimativa precisa e estratificada sobre quais os grupos da população já infetados é muito útil. Por um lado, permite determinar as taxas de letalidade por região, escalão etário, género, etc. Por outro, usando os dados da Direcção Geral de Saúde (DGS) permite ainda saber quais as necessidades de cuidados hospitalares para estes grupos e, consequentemente, prever o impacto sobre o SNS que as medidas de reabertura podem ter.

A disponibilidade desta informação permitirá avançar com mais segurança para outros critérios a ter em conta no desconfinamento, entre eles, a relevância de uma atividade em termos económicos e sociais e a possibilidade de adotar medidas de proteção para os trabalhadores e para os consumidores. O cruzamento da informação resultante dos estudos serológicos com bases de dados administrativas — da Segurança Social, da Autoridade Tributária e Aduaneira, entre outras — permitirá conduzir o processo de reabertura de uma forma mais informada.

Deixamos aqui apenas um exemplo, baseado na base de dados “Quadros de Pessoal” do Ministério do Trabalho, que tem dados sobre os trabalhadores de todas as empresas privadas do país. Empresa a empresa, estabelecimento a estabelecimento, sabemos o número de trabalhadores, o género e a idade de cada um, bem como as suas qualificações e a sua função. É possível construir indicadores que nos informam sobre a importância de cada sector no PIB nacional ou no emprego, quantos trabalhadores exercem funções compatíveis com teletrabalho ou que envolvam tarefas que os torne suscetíveis a serem infetados ou infetarem terceiros.

O gráfico abaixo ilustra as possibilidades de utilização daquele tipo de informação num processo de reabertura da economia. Foi construído com recurso a inquéritos feitos nos EUA relativamente às tarefas que são executadas por trabalhadores em cada ocupação. O índice de suscetibilidade à infeção foi construído com base na percentagem de tarefas que implicam a exposição direta ao vírus, o contacto próximo, ou mesmo direto, com outras pessoas. O índice de teletrabalho foi construído com base na percentagem de tarefas que, em cada ocupação, podem ser efetuadas de forma remota. Fazendo o cruzamento desses dados com os “Quadros de Pessoal”, conseguimos estimar o número de pessoas que trabalham em cada sector (tamanho de cada círculo), bem como do respetivo contributo para o PIB (cor do círculo). Naturalmente, se aqueles inquéritos forem feitos em Portugal, as estimativas serão ainda mais precisas.

Poderão ainda ser os dados da DGS, ao nível do município e ao longo do tempo, relativos aos doentes covid, bem como outros dados clínicos — se foi hospitalizado ou se esteve numa unidade de cuidados intensivos, por exemplo. Com os testes serológicos feitos com base numa amostra apropriada, saberíamos a percentagem da população dos municípios que já esteve infetada com a covid-19. Assim, seria possível, região a região, estimar os benefícios e os riscos de abrir cada um dos sectores de atividade, ao mesmo tempo que se poderiam estimar as necessidades hospitalares associadas à abertura dos sectores.

Desta forma, com uma abertura gradual e controlada com base na informação e estimação dos riscos existentes, seria possível alargar a imunidade a grupos cada vez maiores, expondo a população menos suscetível à covid-19, e resguardando a capacidade de resposta do SNS.

Fala-se do combate à covid-19 como uma guerra. Goste-se ou não da retórica, neste combate não podemos esquecer o essencial: para combater o inimigo, precisamos de o conhecer. Em particular, necessitamos de saber onde se esconde e qual a sua capacidade para causar baixas.

Não sendo possível testar toda a população para conhecermos os seus níveis de infeção e imunização, precisamos de testar uma amostra aleatória da população. Quanto maior for a amostra, melhor. Quanto mais depressa tivermos essa informação, melhor.

Temos de reabrir a economia. Vamos reabri-la na base da tentativa e erro. Mais vale minimizar os erros e abrir primeiro os sectores cuja população laboral corre menos riscos. Para isso, e dados custos envolvidos nesta crise, os testes serológicos a nível nacional, com amostras corretamente definidas, são um instrumento essencial.

* professores de Economia na EEG.UMinho e na Nova SBE