Opinião

As “torres” da nossa resignação

Pedem-nos, com inteira justeza, para permanecer em casa e nós abrimos as janelas… Lá fora, porém, o mundo parece estar estranho, tomado por um sossego impaciente. Os mais idosos, com receio do vírus e também do frio matinal, fincam o queixo no vidro das janelas, enquanto um polícia carrega as compras de uma mulher; na porta da cabeleireira, o rosto de mulher num anúncio a um estimulante para fortalecimento do cabelo fixa-nos em permanência, como uma sentinela. Entretanto, o carro da distribuição do pão parou junto ao minimercado e na pequena esplanada do café um gato refugia-se debaixo das mesas, acorrentadas com as cadeiras…

A escassez do zumbir da cidade atordoa-nos o silêncio da casa, onde apenas pontifica o constante matraquear dos noticiários e dos programas da manhã das televisões, nos quais a referência à Covid-19 é uma inevitabilidade. Estranhamente, é à noite que um som diferente traz alguma (a)normalidade à vida: dois vizinhos cantam à desgarrada o “Oh Laurindinha, vem à janela…”. Todos aplaudimos. Agora sim, parece haver comunicação e até alguma afoiteza no cumprimento que se lança ao casal da janela ao lado, com quem milhares de vezes nos cruzáramos na garagem do prédio, ignorando-nos mutuamente, enquanto cada um de nós entrava no seu carro.

A proximidade que este tempo de reclusão já nos concedeu nos espaços mais improváveis – enquanto num instante vamos à loja da fruta damos por nós a sorrir, pela primeira vez, àquele vizinho com ar introvertido, o único que nunca sai para férias com a família – trouxeram à memória uma notícia do “La Vanguardia”. Aproximava-se a época estival, era maio de 2017, e o diário de Barcelona descrevia como visitantes dos arquipélagos das Baleares e das Canárias, com uma atitude quase pueril, estavam a arruinar os ecossistemas costeiros. Tratava-se de "empilhar pequenas pedras como uma pirâmide, uma maneira de dizer ‘o fulano estava aqui’", um hábito que, então, já levava oito anos, e do qual se lamentava Ramón Casillas, geólogo da Universidade de La Laguna, nas Ilhas Canárias: “O espaço que essas torres ocupam impede o crescimento das plantas e altera o trânsito da fauna". Porque, explicava, a vegetação só poderia vingar naquele ambiente de salinidade, enquanto os insetos e os invertebrados, tão úteis a répteis e aves, corriam o risco de desaparecimento…

Que tem aquele fenómeno a ver com esta nossa conjuntura colectiva, provocada por um transtornante vírus? É que na verdade os montículos de pedras cresciam não apenas em quantidade, mas exponencialmente no seu tamanho, daí o geólogo os caracterizar como “torres”. A galeria de fotos do “La Vanguardia” disponibilizava incontáveis exemplares, muitos deles a perpassarem um metro de altura, demonstrando o anseio do construtor de cada “torre” suplantar qualquer uma das já erguidas. Mesmo que de maneira pueril somente quisessem replicar o número de membros da família que a construíra, reconhecia-se no texto da reportagem.

A notícia do “La Vanguardia”, assumida à guisa de parábola, recupera-nos um olhar mais apurado do cardápio das pequenas ostentações que, porventura também inocentemente, fomos transcrevendo do modelo sociológico vigente. Um mimetismo do tão aclamado crescimento financeiro conduziu-nos à sedução do imediato, como que a esconjurar um quotidiano cada vez mais incerto… Dele sabemos os desígnios de competitividade, geradores de exclusão, transpondo para os derrotados a responsabilidade do desemprego e o ónus dos discretos apoios sociais com que, por enquanto, se sustêm. Estendida aos mais diversos âmbitos do nosso viver, a desmaterialização dos desajustados enfraquece modelos civilizacionais, como o acesso à saúde, a segurança individual, a reforma em idade determinada ou o direito à habitação. Aos que entraram no plano inclinado da sobrevivência continua-se a impor "todos os dias úteis de todas as semanas, de todos os meses, de todos os anos" o dever de buscar "efetiva e permanentemente o trabalho que não existe, antecipava em 1996 a jornalista Viviane Forrester, no seu livro “L’erreur Économique”.

A crise de austeridade em que os bancos nos mergulharam em 2008 não conseguiu evitar a continuidade de uma ideologia de progresso fundamentado em crescimentos financeiros infinitos, enquanto os contribuintes se viam constrangidos pelos governos a refinanciar os banqueiros, em resultado dos seus desmandos permanentes. E hoje, quando poderiam perder contemporaneidade diante das urgências de um vírus subversivo que nos tolhe, persistem vozes a soltar clamores em favor de uma recuperação dos mercados, de um reiniciar do crescimento da economia financeira, cujo objectivo é unicamente crematístico, como recorda José González Faus ao retomar o tema "repetidas vezes tratado" por Aristóteles na sua “Política” e em “Ética a Nicómaco” (“Cuadernos CJ”, nº 201, Fundació Lluís Espinal, Novembro de 2016).

O modelo denunciado por Aristóteles poderia colocar-nos de atalaia, no tempo presente, para com a astúcia da arte de ganhar dinheiro apenas para possuir dinheiro, ou mais propriamente por avareza. Mas contrariamente ao que se poderia esperar, o pesadelo da “nuvem” viral não conseguiu evitar a sobranceria dos donos do dinheiro, que agora vão voltar a conceder empréstimos, com juros, de dinheiro que não é seu… Inevitabilidade perversa, repetida e seguramente mais aprofundada!

Prepara-se, assim, um recomeçar do aproveitamento indiscriminado das capacidades do planeta, mesmo que o teatro publicitário nos exiba uma versão “verde” de um consumismo sustentável. Deixar-nos-emos infetar por elogio dos rótulos e pela virtude proclamada de um tudo possuir, de uma lógica repetitiva de acumulação? Continuaremos a assistir à competitividade em vez da cooperação, à negação da partilha e da sobriedade? Esqueceremos o altruísmo passageiro deste momento para ingressarmos no individualismo?

Reconhecem-se já conveniências conjunturais para forçar políticas económicas de mercado, destinadas a relativizar o essencial para restaurar valores de um crescimento recuperador de rendimentos e acumulação financeira, destituindo um mapa social do qual poderiam emergir ideais emancipatórios da humanidade, favoráveis a um equilíbrio favorável à redistribuição dos bens com que a Terra nos presenteou, e assim nos aproximarmos de um estilo de vida mais acolhedor, para nós e a restante natureza. Mas, contrariamente, o que se vislumbra é a recomposição de planos que iniciarão um processo de nos tratar como órfãos da acumulação e do desvario de dissipar, através da reconstrução de uma envolvente de contínua insatisfação, tornando-nos construtores de “torres” que hão de corroer os corações com novas ganâncias, incutindo prioridades conducentes a regressarmos a elevar a altura da nossa “torre” a um nível superior ao do vizinho, com quem ainda ontem – em dias toldados por esquisita epidemia – partilhámos o jornal, passado pelo gradeamento da varanda, ou por quem esperámos, imobilizando a porta do prédio, para entrasse com filho que trazia ao colo.

“No reino dos seres vivos, o ser humano é o único que sabe que há futuro”. Recordou-nos o filósofo espanhol Daniel Innerarity, em 2009, ao alertar no seu livro “El futuro y sus enemigos” (edição portuguesa Teorema, março de 2011), a não cedermos à ignorância deste apelo, mesmo sabendo que “pensar no futuro distorce a comodidade do agora, que costuma ser mais poderoso do que o futuro porque é presente e porque é certo”. Mesmo assim, Daniel Innerarity lança o desafio de não nos resignarmos a relacionar com o futuro, por este não assegurar "a impossibilidade do engano". Temendo-o individualmente, impedimos que aconteça no coletivo social.

Reconheçamos o desafio, atrevendo-nos a levá-lo por diante, inicialmente, em pequenos gestos que terão a dimensão de decisões eloquentes para os nossos espaços de vivência. Só assim seremos testemunhas de uma globalização desejável, aquela que não serve os interesses imediatistas de alguns. A advertência vem-nos pela escrita de Daniel Innerarity, ao ressaltar que cidadãos “cépticos perante os convites a avançar para horizontes não imediatos”, permitirão aos políticos sentirem-se “à vontade” para lhes seguirem o exemplo”. E deste modo, conclui, “hipotecamos socialmente o tempo futuro de várias maneiras e exercemos sobre as gerações vindouras uma verdadeira expropriação temporal”.

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