Opinião

A Propósito de Luís Giovani e dos Recentes Crimes Interculturais

A Propósito de Luís Giovani e dos Recentes Crimes Interculturais

Ana Paula Dourado

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

No espaço de um ano, têm sido noticiados casos de violência em Portugal, envolvendo comunidades da Lusofonia: a intervenção da polícia no bairro Jamaica; uma mãe cabo-verdiana que colocou o seu bebé num contentor de lixo, discutindo-se se a lei dita a adoção por portugueses; o esfaqueamento de um jovem universitário português, no Campo Grande, alegadamente cometido por um guineense, menor de idade; o espancamento e homicídio de Luís Giovani, estudante cabo-verdiano do politécnico, em Bragança.

A intervenção da polícia no bairro Jamaica e o homicídio de Luís Giovani deram origem a manifestações várias, incluindo no coração de Lisboa, e a apelos em massa à igualdade na aplicação da justiça, por parte das comunidades étnicas minoritárias que se sentiram atingidas.

Assumindo que o homicídio de Luís Giovani não é um crime de ódio, o que nos conduziria a uma análise mais complexa, os crimes cometidos não estão relacionados com diferentes conceções e valorações do mundo, nem com diferentes quadros normativos: o homicídio e o infanticídio constituem crimes em toda a Lusofonia (embora a questão do infanticídio nos levasse mais longe).

Trata-se de condutas que, nos termos colocados por Augusto Silva Dias (em Crimes Culturalmente Motivados), prescindem de especificidade cultural, descem à essência da condição humana (no caso, o corpo e a vida), são expressão do que designa por cultura cívica comum, e, portanto, a sua punição é incontestada, quer na cultura dominante quer nas culturas dos outros.

As manifestações contra a alegada violência policial desproporcionada no caso do Bairro Jamaica e o pedido célere de justiça no caso de Luís Giovani devem ser enquadrados num outro ângulo, explicado ainda por Silva Dias: nas democracias multiculturais, como a nossa, o espaço público é ocupado não só pela maioria cultural como pelas minorias forasteiras. Neste contexto, as comunidades minoritárias exigem igual justiça e o reconhecimento dos mesmos valores.

A psiquiatria poderá ajudar a entender o caso do bebé abandonado no contentor. Não necessariamente a psiquiatria transcultural, já que a prática do infanticídio é universal. Em todo o caso, o estrangeiro pode reagir às adversidades do país de destino com perda de autoestima, isolamento, incapacidade de submissão às regras da cultura dominante, sem ter consciência dos motivos que o levam a cometer crimes. São os Weil-Motive (Schütz), ou inconsciente cultural (Devereux). A relevância destes motivos para o Direito Penal é uma outra discussão.

Em contrapartida, a identidade política da Lusofonia é quase perfeita nas elites, talvez porque ela assente no maior signo de identidade que temos, a língua, comum. Exemplo disso são os prémios de literatura galardoando toda a Lusofonia.

De entre essa, encontramos literatura que mostra e grita a dor dos outros na cultura dominante; que expõe e avisa, in your face, para os conflitos imanentes, os problemas subterrâneos que afetam as minorias na sociedade portuguesa, muito anteriores ao microcosmo que é hoje Portugal e a Europa.

A incrível história do Canibal de Odivelas é-nos contada por Joaquim Arena, em Debaixo da Nossa Pele. A menina que no início dos anos oitenta foi devorada por um imigrante, num ato de antropofagia, e que espalhou o pânico e o terror pelo país. O imigrante que, tal como “D. Pedro … mastigara o coração dos assassinos da sua amada Inês”, mastigava um órgão humano. Não o coração, mas o fígado, “mais nobre ... que o próprio coração, ... onde se acreditava estar a alma, a força e a personalidade dos indivíduos”.

As justificações apresentadas pelo narrador, para o horrendo ato, entroncam nos Weil-Motive apresentados pelos estudos jurídico-penais do multiculturalismo, e na etnopsiquiatria. Isto é, a submissão forçada à cultura dominante e a perda de identidade, em jeito de suicídio cultural: “A loucura como resposta à humilhação do imigrante...”; “A vontade de ser branco, amado e puro”.

Notícias, estudos científicos e literatura alertam para conflitos interculturais emergentes que, no silêncio das adequadas políticas de diálogo e integração, tenderão a agravar-se. A maioria dominante representada no Parlamento, no Governo e nos diversos organismos executivos deve trabalhar seriamente numa verdadeira interação com as minorias, especialmente as mais desfavorecidas, para integrá-las. Deve construir uma identidade política que acresce às identidades primárias, no sentido de um coletivo e de coesão social (Silva Dias), e pensando o “entre” (Arnaiz, Interculturalidad y convivência). Amanhã será longe demais.

* Ana Paula Dourado é Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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