A Beleza das Pequenas Coisas

A luz da empatia e os apagões morais

Onde é que tu estavas quando se deu o grande apagão? Esta passou a ser a pergunta inevitável da semana, que talvez fique para a história das nossas vidas.

Tinha dedicado a manhã de segunda-feira a visionar no computador o registo da peça autobiográfica “Achadiço”, do ator e encenador Nuno Cardoso, para tirar notas e impressões que viria a usar na conversa em podcast que tive dias depois com o homem que foi de 2019 a 2024 o diretor artístico do Teatro Nacional São João, no Porto.

Estava a ouvir a parte da peça em que Nuno contava que os pais tinham retornado de Moçambique, com uma mão à frente e outra atrás, para a vila de Canas de Senhorim, concelho de Nelas, distrito de Viseu, quando ele ainda era meio palmo de gente.

Trabalhar na horta ao som de ABBA

O ator recordava como o quintal da casa onde o pai sachava batatas ou mondava feijão ao som de uma cassete dos ABBA, era o subsídio de refeição de quem era pobre, como eles.

Nuno dava conta nesse momento do solo teatral, de como a “vacina de Cavaco Silva”, junto com uma decisão de Bruxelas, ditou em 1989 o fecho da fábrica de siderurgia e das minas da Urgeiriça.

Uma guilhotina social para cerca de 600 pessoas e suas famílias e que deixou uma região inteira na escuridão, profundamente deprimida e a passar fome em pleno Cavaquistão.

“Os asteriscos de Bruxelas são mais difíceis de engolir do que as couves.”

Estava a anotar isto mesmo quando, de repente, o ecrã ficou negro. A net tinha caído.

Fui ver se o quadro da luz tinha disparado. Ouço ao mesmo tempo o alarme da garagem da frente a berrar. Achei que era uma falha momentânea de energia na minha rua e pus-me a adiantar contactos, por telefone. Do outro lado da linha, a pessoa com quem falava e que vive no Porto, disse-me logo que também estava sem luz.

Quando me dei conta de que o colapso da rede elétrica se estendia a Espanha e a parte de França, sem se saber quando voltaria a ser reposta a normalidade, quis saber se os meus estavam bem até ficar totalmente incontactável, apercebendo-me de como nos sentimos tão vulneráveis e sós nestes momentos.

Fui assaltado por várias ideias, uma delas era sobre as pessoas que ficariam em risco de vida, com este corte de energia generalizado.

Infelizmente já se soube que uma mulher que dependia de um ventilador morreu durante o apagão.

A gabarolice de Montenegro

Montenegro veio gabar-se cedo demais da rapidez da resposta do governo, tal como fez a ministra do Ambiente. E o primeiro-ministro deslizou ainda no comentário de não ter havido mortes “como em Espanha” (!). Nada disso foi bem verdade. A resposta do governo foi ela própria apagada, e atrasou-se em vários passos.

Agora sabe-se que o plano de emergência só foi ativado quando as luzes das casas portuguesas começaram a acender-se ao serão.

Muitas horas antes, no final da manhã do apagão, tratei de encher garrafões de água e de ir comprar alguns enlatados e água, quando ainda ninguém sabia quantos dias a situação ia durar. Temia que a água de casa fosse cortada, como veio mesmo a acontecer ao final da tarde.

Com os super e hiper mercados fechados, recorri à mercearia de imigrantes chineses no meu bairro que, na verdade, tem a melhor fruta e legumes.

Os imigrantes que não apagam

E neste dia surreal, que mais parecia saído do “Black Mirror”, o país olhou de outra maneira para os imigrantes que trabalham nas pequenas mercearias e nas lojas ‘onde há de tudo’ sejam chineses, indianos, paquistaneses ou de outras latitudes que mostraram que quando tudo vai abaixo eles não apagam e estão lá para nós.

Não interessa aqui ideias romantizadas de novos heróis, mas faz-nos refletir sobre como estas comunidades são tantas vezes encostadas à parede da precariedade, num longo processo de legalização na AIMA, e fazem falta ao país.

Quando tudo desaba são precisamente os mais precarizados que sustentam a comunidade. Fazem-no porque têm de sobreviver ou também por sentido de comunidade? Ambas as razões são válidas e beneficiamos delas.

E, de facto, como me escreveu alguém nas redes sociais, estes imigrantes “precisam mais do que gratidão.”

Quando quis pagar com cartão e reparei que não dava para fazê-lo, nem mesmo com MB Way, pensei por momentos que tinha de abandonar o saco. A senhora atrás de mim, que eu não conhecia, prontificou-se a pagar-me as contas. Mas não foi preciso, tinha afinal uma nota na carteira que me valeu. Mas agradeci-lhe o gesto tão gentil.

Mercearias que venderam fiado

Soube mais tarde que vários amigos, amigas e conhecidos desprevenidos, sem dinheiro na carteira e sem hipótese de pagar com cartão algumas compras de ‘emergência’ (enlatados, fruta, rádios, lanternas e pilhas) compraram fiado a esses mesmos comerciantes imigrantes, que lhes facilitaram a vida, como se fazia antigamente nas mercearias locais.

“Não tem problema, vem cá pagar depois.”

Outro amigo chegou a relatar-me: “Um comerciante imigrante da minha rua, quando lhe perguntaram porque não fechava como os supermercados, disse que não ia deixar as pessoas aflitas sem mercadorias. E acrescentou que, se às tantas não pudesse pesar e fazer contas…que oferecia as coisas.”

Nas redes sociais li também outras versões, histórias de comerciantes que tinham dobrado os preços.

Não foi a minha experiência, nem das pessoas que conheço, que como escrevi levaram compras para casa apenas com o valor da confiança e da palavra. Um bem que parece valer tão pouco em tantos outros lugares.

A solidariedade dos outros

Por isso mesmo estas pequenas centelhas de empatia de desconhecidos surpreendem pela positiva. Devolvem-nos a esperança no outro.

Seja o ato simpático da pessoa atrás na fila, como o destes tantos comerciantes com vidas duras. Alguns a viver em sistemas de cama quente, sobre os quais muitos de nós nem o nome sabemos, apesar de os vermos todas as semanas, mas que na hora do susto, confiam em nós.

E nós, confiaríamos neles? Fica a reflexão.

Mais uma história de violência gratuita

Termino esta newsletter com mais uma notícia sobre como o ódio continua a perder a vergonha de sair à rua.

Uma história que não envolve imigrantes, mas rapazes de 20 anos, brancos, portugueses, que nomearam “Salazar” enquanto agrediram duas artistas e ativistas, há poucos dias, no Bairro Alto, em Lisboa.

“Devias morrer!”, disseram a uma delas, enquanto a empurravam para a frente de um carro e jogavam cerveja na cara de outra.

A história foi-me contada em primeira mão por uma das pessoas envolvidas, a atriz Beatriz Teodósio, que com Fred Botta, pessoa queer não binária (que não se identifica com as normas tradicionais de género e que opta por uma identidade fluida), apresentou queixa na polícia.

O caso foi entretanto denunciado por ambas nas redes sociais, conta com mais de 400 mil pessoas, e foi notícia. Situações como esta merecem a preocupação de toda a comunidade.

O lugar da impunidade

Considerando que este tipo de agressores “partem de um lugar de impunidade”, confiantes em que as suas ações passem “sem consequências”, as duas artistas que integram o elenco do espetáculo “Mercado das Madrugadas”, de Patrícia Portela , afirmaram:

“Temos de falar sobre como isto se passa todos os dias e como cada vez mais jovens se sentem legitimados para atacar outras pessoas porque estas são diferentes deles.”

O premiado escritor norte-americano David Foster Wallace escreveu no final dos anos 90 o livro “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”, um assunto que parece mais atual do que nunca, e que agora foi adaptado para teatro, pela mesma Patrícia Portela, no espetáculo “Homens Hediondos”, em cena este fim de semana no Teatro Variedades.

Talvez valesse a pena alguém escrever uma versão do livro de Foster Wallace, mas com a mira nos jovens retratados na série “Adolescência”, da Netflix, que viralizam no TikTok e embriagam-se de fúria na machosfera.

Esses rapazes andam aí. Cada vez mais à vontadinha. E prometem votar na extrema-direita.

CONVERSEI EM PODCAST COM…NUNO CARDOSO

Bastidor da gravação do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas" com o ator Nuno Cardoso
Matilde Fieschi

Quem são os atuais homens hediondos? Criaturas de mundos distantes dos nossos, como Andrew Tate, Putin, Trump, Bolsonaro, Elon Musk? Ou pessoas comuns, com quem nos relacionamos todos os dias?

O ator e encenador Nuno Cardoso, que foi nos últimos seis anos diretor artístico do Teatro Nacional São João, no Porto, regressa a cena, de 2 a 4 de maio, no Teatro Variedades, em Lisboa, com “Homens Hediondos”, onde interpreta um homem com certos comportamentos horrendos, que tendem a ser normalizados e glorificados na sociedade.

Alguns destes homens tenebrosos irão agora a votos nestas legislativas?

Nuno responde e fala do muito que andou até aqui chegar, o futuro que o entusiasma, os fantasmas que carrega e a mágoa e “o luto” por ter deixado de ser diretor artístico do Teatro Nacional São João, no Porto.

Ouçam-no aqui.

A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.

E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo uma boa semana, com muito do que deseja e gosta!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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