A Beleza das Pequenas Coisas

A lei vai mansa para tanto racismo feroz

Na conversa em podcast que tive esta semana com a cantora Selma Uamusse, há um momento que me bateu forte.

Selma, que tem 4 filhas, relatou-me que sente um retrocesso na sociedade, com o aparecimento de uma nova vaga de racismo, a que não é alheia a maior expressão da extrema direita na Assembleia da República.

E se com as suas filhas mais velhas não teve, até ao momento, nada de especial a relatar neste plano, o mesmo não aconteceu com a mais nova, de 3 anos.

Selma contou-me que essa sua filha começou subitamente a recusar ir para a escola. O choque surgiu quando a artista se deu conta da razão para esse evitamento da pequena.

Um menino da escola disse-lhe “tu és preta, porque a tua mãe é preta e não mereces estar aqui, és feia, volta para a tua terra.”

A queixa foi imediatamente feita no estabelecimento, para se perceber de onde aquilo vinha. Certo é que um menino num jardim de infância não diz estas coisas do nada. Terá ouvido certamente essas frases da boca de adultos, na escola ou em casa.

Discursos de ódio naturalizados

Os discursos de ódio continuam a ser proferidos em Portugal por adultos a outros adultos, armas de arremesso racistas e xenófobas, tantas vezes naturalizadas, disfarçadas de piadas ou tratadas como ‘opinião’ ou ‘liberdade de expressão’ e, claro, as crianças repetem.

Os últimos dados oficiais apontam para um aumento de 38% de crimes de ódio e discriminações raciais e xenófobas no país.

“Sinto na pele um retrocesso.”, afirmou Selma. Precisamos refletir no que está impresso na sociedade enquanto normalização de discurso racista, um mal ainda sistémico e estrutural, que tem impacto em muitas vidas.

“Deficiente criminalização” dos fenómenos racistas

A coordenadora do Observatório do Racismo, Teresa Pizarro Beleza, deu conta disso mesmo e lamentou recentemente “a deficiente criminalização” dos fenómenos racistas e acusou os órgãos de soberania de falta de empenho na ativação da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial.

A lei é ainda mansa para muitas práticas racistas.

Se alguém gritar na caixa de um supermercado, num restaurante, numa universidade, numa entrevista de trabalho, numa esquadra de polícia, numa consulta de pediatria, o mesmo que aquele menino gritou, “tu és preta, não mereces estar aqui, és feia, volta para a tua terra”,

o máximo que poderá sofrer é uma contra ordenação, e ser aplicada uma coima, uma pequena quantia de dinheiro, pífia, de algumas centenas de euros.

Recorde-se que o deputado André Ventura foi multado em 2020 em pouco mais de 400 euros por discriminar, de forma descarada, pessoas ciganas. Mais uma vez, uns trocos.

Nem todo o racismo é crime

Por outras palavras, o racismo em muitas das suas formas ainda não é crime, nem está previsto no Código Penal.

E isto porquê?

Os discursos racistas ou xenófobos, e discriminações com as mesmas motivações, quando não vão parar às redes sociais, quando não são pichados numa parede ou não chegam aos media, não são abrangidos pelo artigo 240º do Código Penal, criado para combater o incentivo e discurso ao ódio.

Isto porque esta lei faz depender a sua aplicação da publicidade desse discurso, através de um meio destinado à divulgação. E de fora ficam um sem fim de situações que, não preenchendo esse requisito, são arquivadas.

Nesses casos, onde o comportamento racista e xenófobo não passa para esses tais meios de divulgação, e é dada razão à vítima, pode ser aplicada a tal coima leve previstas na lei 93 de 2017, vulgo “lei contra a discriminação”.

Racismo tratado como mau estacionamento

Ou seja, sempre que há recusa ou limitação do exercício de um direito na área da saúde, seja em estabelecimento público ou privado, na educação, no acesso à fruição cultural, aos espaços, aos restaurantes, ou a uma discoteca por razões de discriminação racial ou xenófoba,

como se tornou público o caso de Nelson Évora e amigos barrados à porta da discoteca Urban Beach por existirem “demasiados pretos no grupo”, o máximo que pode acontecer é ser aplicada uma coima.

O mesmo tratamento legal que se dá a um toldo que é mal instalado numa esplanada, um carro que é estacionado em cima do passeio, quando há condução em excesso de velocidade, ou se deteta um corte de árvores fora dos limites da lei.

Tratam-se de forma igual bens jurídicos muito diferentes, e desvaloriza-se assim a dignidade das pessoas que são vítimas de racismo, xenofobia, islamofobia, homofobia ou transfobia.

Quer isto dizer que atualmente em Portugal sempre que alguém ofende ou discrimina uma pessoa na rua por causa do tom da sua pele, origem ou orientação sexual ‘it´s not a big deal’. Porque não foi ódio publicado e publicitado em lado nenhum…

Isto é razoável? O racismo ou a xenofobia não é tão grave quando é dito ou feita cara a cara e não vai parar às redes sociais ou a um jornal?

Quando o racismo chega aos famosos

Importa escrever que há excepções positivas na aplicação da lei. Mas são excepções.

Foi noticiado este ano que uma mulher foi acusada, e mais tarde condenada a pagar uma multa, com pena suspensa de prisão, por agredir com insultos racistas duas crianças menores, filhas de dois atores famosos brasileiros, numa praia da Caparica.

Terá contribuído para a condenação, o facto da agressora ter cadastro, ter agredido num espaço público duas crianças menores e ter ofendido os dois guardas da GNR, cometendo diversas injúrias agravadas.

Acresce que os pais das crianças são pessoas de pele clara (louros no caso) e tiveram condições económicas para recorrer à Justiça.

A própria mãe das crianças, Giovanna Ewbank, deu conta disso no jornal Globo. “Essa vitória acontece porque somos brancos.”

Um privilégio que deixa de fora muita gente, dado os “elevados níveis de perceção de discriminação por parte da população residente em Portugal, designadamente das pessoas que se autoidentificam como negras, ciganas ou de etnia mista, como alerta Teresa Pizarro Beleza.

Para uma lei mais forte

Por essa mesma razão, o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia entregou recentemente na Assembleia da República um requerimento, sob a forma de Iniciativa Legislativa Cidadã, para se passar a criminalizar todas as práticas racistas que não estão ainda previstas no Código Penal.

O que este grupo propõe é uma alteração ao artigo 240.º, para passar a abranger as práticas discriminatórias racistas que estão previstas atualmente na Lei n.º 93/2017.

“Para que todas as práticas racistas, xenófobas, mas também homofóbicas, sejam abrangidas por medidas sancionatórias com mais força, mais eficácia, e tratadas como algo grave, sujeitas a penas de prisão.”, esclareceu-me a jurista e membro do Grupo de Ação Conjunta, Anizabela Amaral.

Este grupo sugere também um aumento da moldura penal para a discriminação racial e xenófoba e crime de ódio, de 5 para 8 anos, para que as pessoas passem a perceber a gravidade destes atos e se inibam de o fazer contra pessoas e grupos.

De momento, a iniciativa precisa reunir 20 mil assinaturas, para que esta proposta de lei seja discutida e votada na Assembleia, pelos vários grupos parlamentares e seja depois debatida na especialidade, caso seja aprovada. Pretende-se assim que a lei tenha uma resposta mais eficaz para estes crimes que se multiplicam cada vez mais.

“Verificam-se muitas queixas de constantes atos de racismo e xenofobia relativamente à população imigrante, a pessoas estrangeiras, negras e ciganas e a Justiça precisa ter um papel dissuasor neste tipo de crimes que atentam contra a vida e a dignidade das pessoas.”, declarou Anizabela.

Até quando a lei vai mansa para tanto ódio?

CONVERSEI EM PODCAST COM…SELMA UAMUSSE

José Fonseca Fernandes

Selma Uamusse é sempre um acontecimento quando sobe a palco. Ela é um abanão musical, um caso sério de atitude, garra e performance-trovoada, que se agiganta todas as vezes que solta o seu belo vozeirão.

Uma voz que vai a todos os lugares que Selma quer, de Moçambique a Portugal, da electrónica de Moullinex ao clássico da pianista Maria João Pires, ao hip hop de Valete, ao indie rock de Samuel Úria, ao neoclássico de Rodrigo Leão, ao rock n´ roll de The Legendary Tigerman ou ao universo africano de BATIDA.

Autora de 2 discos em nome próprio, “Mati” (2018) e “Liwoningo” (2020), Selma está a preparar o seu disco “mais íntimo”, que conta a sua história. E aqui revela um pouco sobre ele e o que a move na música e na sua vida.

Ouçam-na aqui.

VALE A PENA OUVIR…

Não deixem de escutar a nova série documental do coletivo “Fumaça”, que tem o sugestivo nome “Quase da Família”. Esta é uma série sobre as mulheres que limpam e cuidam do mundo e o põem a mexer, e que tantas vezes foram usadas e abusadas pelos patrões.

O trabalho de excelência que refiro foi feito em parceria com a estrutura de criação artística Cassandra. Uma adaptação da peça de teatro sobre trabalho doméstico “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”.

Ouçam aqui.

BELEZAS, se quiserem dar-me o vosso feedback, deixar comentários, convites, sugestões culturais, lançamentos, ideias e temas para tratar enviem-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com

E aqui deixo a minha página de Instagram:@bernardo_mendonca para seguirem o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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