Expresso Olha, nem sei

Preconceito contra a comunidade LGBTQ+: uma condição perene da Igreja Católica?

Preconceito contra a comunidade LGBTQ+: uma condição perene da Igreja Católica?

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Boa tarde,

Vou-vos ser muito sincera. Quando no passado dia 18 de dezembro saiu a notícia de que o Papa declarou que autorizava a bênção de casais homossexuais, eu torci logo o nariz, porque duvidei de tão grande dádiva católica. Rapidamente, ao ler as notícias completas, percebi que o Vaticano tomou uma posição de quem rebola os olhos e dá umas migalhas de inclusividade.

Como forma de contexto, em 2021, o Vaticano declarou que proibia qualquer bênção à comunidade LGBTQ+, afirmando que Deus “não pode abençoar o pecado” e que “a bênção das uniões homossexuais não pode ser considerada lícita”. Mesmo assim, alguns sacerdotes com senso comum e amor de Cristo já abençoavam casais homossexuais.

Agora, em 2023, no passado diz 18 de dezembro, o Vaticano publicou o documento “Ficudia supplicans”, onde afirma que a bênção a casais homossexuais agora está autorizada e se destina a “todos aqueles que, reconhecendo-se desamparados e necessitados da sua ajuda, não reivindicam a legitimidade da sua própria condição”. (Detesto a palavra “condição” para falar de homossexualidade, como se fosse uma doença crónica. A orientação sexual é uma mera característica, não é uma artrite reumatóide ou diabetes…).

Logo na introdução do documento oficial, o cardeal Víctor Manuel Fernández, Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, escreve que esta autorização não tem como objetivo alterar “a doutrina tradicional da igreja sobre o casamento”, mas antes, “compreender a possibilidade de abençoar casais em situações irregulares, e casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente o seu estatuto ou alterar de alguma forma o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimónio." (Como pode ser lido na notícia do Expresso).

Se continuarmos a leitura do documento oficial, que li em inglês, encontramos a distinção entre esta benção e o Sagrado Sacramento do Matrimónio (uffa, fiz apneia só para escrever o nome), que alerta para a atenção que se deve ter para não equiparar esta benção com a tradição católica perene (PERENE) do matrimónio:

“(...) rites and prayers that could create confusion between what constitutes marriage—which is the “exclusive, stable, and indissoluble union between a man and a woman, naturally open to the generation of children”—and what contradicts it are inadmissible. This conviction is grounded in the perennial Catholic doctrine of marriage; it is only in this context that sexual relations find their natural, proper, and fully human meaning. The Church’s doctrine on this point remains firm.”

Neste simples excerto, podemos observar, para quem ainda tinha dúvidas, que a doutrina da Igreja, considera que o matrimónio não só é um contrato para procriar, pois o casal tem de, “naturalmente, estar aberto a gerar crianças”, mas também que a única forma de ter relação sexuais “naturais, apropriadas e totalmente humanas”, segundo a Igreja, é com relação sexuais heterossexuais. Confirmando, assim, que vêem a homossexualidade como uma condição anti-natural e não apropriada. Que bem.

Além disso, podemos observar que não está previsto um ritual para esta benção, o que não é de admirar. Como sabemos, para a Igreja, a comunidade LGBTQ+ não é vista como parte integrante dela, com os mesmos direitos que um católico cis heterossexual tem, mas antes como uma adenda à comunidade, ou melhor, um apêndice: Faz parte do corpo da Igreja? Faz, mas é dispensável. No entanto — que generosos que eles são —, fiéis e párocos têm liberdade para perceber em que outros contextos se pode fazer esta bênção como, por exemplo, aquando “uma visita a um santuário, um encontro com um sacerdote, uma oração recitada em grupo, ou durante uma peregrinação.” Para não apoquentar os fiéis conservadores católicos, o parágrafo continua com uma espécie de oráculo que é repetido ao longo do documento: “Não pretendemos legitimar nada”. É só uma bençãozinha, como quem diz “vai, vai lá com Deus, pronto”.

Quando Deus mandou o seu filho para propagar amor, ao invés de temor e vingança, o povo crucificou-o, porque não gostaram do que ouviram da boca dele, das “modernices” do amor para todos/as/es que ele pregava. Arrisco-me a dizer que se Jesus voltasse, crucificavam-no de novo.

Dito isto, há quem diga, com legitimidade, que este é um grande passo no caminho da inclusão LGBTQ+ na Igreja Católica. Já eu, acho que só agora é que o bebé está a aprender a gatinhar e duvido muito que esteja num contexto familiar propício ao seu crescimento saudável.

Vou, vou com Deus,

Clara

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