Expresso Livros

"Quem é feliz precisa pois de amigos", disse Aristóteles

Tinha de ser pequeno o livro que conta a história de uma gigante. Esta afirmação é literal. Falamos de “A Maior Mulher Moderna do Mundo”, volume compacto recém-lançado pela Tinta-da-China, de Susan Swan. Prefaciado nada menos que pela maravilhosa polaca Olga Tokarczuk, Nobel da Literatura, e com posfácio da autora escrito especialmente para esta edição, tudo nele é tão estranho e absurdo quanto palpável e verdadeiro. A vida é de uma ironia estonteante e a literatura, quando o reflete, torna-se o seu melhor espelho. Por isso diz Tokarczuk: “Desejo não só que o leitor tenha uma leitura agradável, mas também que pense e reflita sobre o ser vivo, enorme e complicado que é o mundo. E lembre-se: a ficção, quando comparada com a mentira, torna-se verdade.”

Observadora minuciosa da realidade, ela não deixa passar o facto de, no século XXI, vivermos obcecados com a falsidade. “Isso coloca a literatura de ficção numa posição muito desconfortável, porquanto temos de explicar sobre o que na realidade escrevemos, o que e como narramos, e de que modo o leitor, subjugado pela torrente de fake news e pelas alucinações da inteligência artificial, se deve posicionar perante a ficção literária”, comenta Olga. Um parágrafo atrás, tinha contado como este romance de Susan Swan, apresentado como “uma história verídica baseada em factos” e destinado a providenciar uma leitura prazenteira, motivou ataques contra a autora, que foi agredida fisicamente por familiares da protagonista do romance, Anna Swan (de quem é parente distante), que lhe recriminavam “abuso” na forma como foi abordada.

Não vamos aqui desvendar os contornos do romance – que vale muito a pena ler. Mas sim citaremos o posfácio em que a Susan Swan, nascida no Canadá, fala da sua identificação íntima com a personagem de Anna, que foi mesmo uma gigante de dois metros e trinta. A própria Susan chegou a sentir esse deslocamento do real quando atingiu, na adolescência, o metro e noventa. “Ser grande é a sensação de extravasar o que foi atribuído aos outros seres humanos. É deparar com cadeiras em que não cabemos ou mesas com tampos em que os nossos joelhos embatem, tendo de ficar numa posição desconfortável”, escreve ela, notando que as pessoas muito altas se sentem “desligadas” do mundo material, incompreendidas ao ponto de um cirurgião não conseguir calcular a quantidade certa de anestesia para elas, inábeis pelas suas mãos demasiado grandes não terem ‘jeito’ para abrir pacotes de bolachas. Quem era Anna Swan? Susan Swan conta-o magistralmente.

Depois há os livros de formato grande, cujas histórias caberiam num dedal. Textos que são contos de pequena ou de média dimensão, minimais na forma, surpreendentes no conteúdo, definitivos na intenção. Rasgam a paisagem de tão simples – e o simples é um fruto da complexidade. Logo no início, a modo de amostra do muito que se segue, uma mulher age como professora e todos acreditam graças à pasta professoral que carrega. “Não é fácil viver neste mundo: todos são constantemente perturbados pelas grandes ou até pequenas coisas que correm mal”, lê-se noutro fragmento. Quem o escreve é Lydia Davis, no livro “Os Nossos Desconhecidos”, agora editado pela Relógio D’Água, uma coleção de prosas que tanto podem ter três linhas como dez ou cem. “Tanto Karl Marx como o meu pai tiveram filhas. Ambas as filhas acabaram por se tornar tradutoras. Ambas traduziram ‘Madame Bovary’, de Gustave Flaubert!”, diz-nos uma das mais curtas, mostrando a estranha irmandade entre desconhecidos desfasados no tempo, unidos por uma ponte invisível e concreta. Essa estranheza migra para a linguagem, para os hábitos de vocabulário capazes de descrever uma pessoa, como o seria um sinal no rosto ou um determinado tom de cabelo. As histórias não têm um fio condutor evidente, mas poderia dizer-se que possuem entre elas aquele ‘ar de família’ que perpassa os primos distantes.

O mesmo - não o sendo – sentimos quando pegamos num livro como a “Ética a Nicómaco”, de Aristóteles, e lemos: “Talvez então seja absurdo fazer do bem-aventurado um solitário, pois ninguém escolher ter tudo o que é bom para o ter só para si. É que o Humano está implicado nos outros e está naturalmente constituído para vivem com outrem. (...) Assim é evidente que é preferível passar os dias na companhia de amigos que sejam excelentes do que com estranhos que vivam ao acaso. Quem é feliz precisa pois de amigos.” Num gesto erudito de resistência e de amor profundo à Filosofia, António de Castro Caeiro traduziu do grego este texto aristotélico, do qual somos todos herdeiros, escrevendo o prefácio e as notas, e elaborando um glossário.

“Pode perfeitamente acontecer-nos não ser da maneira que gostaríamos de ser. Não conseguirmos ser de uma maneira e ser da maneira oposta. Há um abismo entre querer ser de uma determinada maneira e ser da maneira como se quer ser. Há um abismo entre ter uma vontade enorme de X, Y ou Z e efetivamente consumir X, Y ou Z. A ‘Ética a Nicómaco’ trata da nossa relação entre o possível e a sua concretização. Aristóteles é grego em todo o seu pensamento. Quem sabe, faz. Quem não faz, não sabe. (...) quem sabe, explica. Quem não é capaz de explicar, não sabe. Quem compreende, é. Quem não é como compreendeu que era para ser, não compreendeu bem o que devia ter compreendido”, escreve Caeiro dando, de uma penada, a dimensão imensa de um texto que o filósofo grego dedica ao filho e discípulo, e que se mantém atual há mais de vinte séculos.

O que se poderá ler daqui a vinte? Se cá estivermos, tenho quase a certeza de que continuaremos a ler e a escrever livros. Que não prescindiremos de abrir uma página qualquer - não necessariamente feita de papel – e ver algo parecido com isto (se é que existe algo parecido com este “É a Ales” de Jon Fosse, editado pela Cavalo de Ferro), e talvez recitá-lo como um verso antigo: “Vejo a Signe, deitada no divã da sala, a olhar para as coisas de sempre, a velha mesa, o fogão, a caixa de lenha, os painéis de madeira que revestem as paredes, a grande janela para o fiorde, ela olha sem ver e tudo está como sempre esteve, nada mudou, e todavia tudo mudou, pensa ela, porque desde que ele desapareceu já nada é igual, está aqui, sem estar aqui, os dias vêm e os dias vão, as noites vêm e as noites vão, e ela segue também, no seu lento movimento, sem deixar que nada faça uma marca ou um corte, e que dia é hoje? pensa ela, sim, é quinta-feira."

Mas é sexta. Um dia inicial ou final. Bom fim de semana para si.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Os Mares do Sul”, de Manuel Vázquez Montalbán (Quetzal)

Um romance de mistério do escritor que se confunde com Barcelona, escrito em 1979, o ano e a cidade em que a história se situa, terra do detetive particular Pepe Carvalho. “Montalbán foi o escritor mais rápido do mundo, autor prolífico de poemas e contos, colunista que só fracassou porque a morte lho ordenou”, escreveu o jornalista Juan Cruz no “El País”.

“Morte no Verão e Outras Histórias”, de Yukio Mishima (Livros do Brasil)

Do romancista e dramaturgo japonês, nascido em 1925, uma coleção de dez contos originalmente publicados em revistas. O primeiro, “Morte no Verão”, começa assim: “A Praia A, no extremo sul da península de Izu, ainda é agradável para tomar banhos de mar. É verdade que o mar é picado e desigual, e a rebentação é um pouco forte, mas a água é limpa, o caminho inclinado que leva para a praia é suave e, em geral, há boas condições para nadar.”

“Augusta B. ou as Jovens Instruídas 80 Anos Depois”, de Joana Bértholo (Caminho)

Novo livro da autora de “A História de Roma”, de que citamos este excerto: “E foi aí que tudo começou. Foi nesta frase que tudo teve início, quando Raquel desafiou Augusta a seguirem o exemplo de Agustina. Os olhos de Augusta abriram-se como se ouvisse este nome pela primeira vez. A sua atenção cativa: o que fez Agus­tina?, foi a questão nunca formulada mas de ime­diato respondida. Raquel detalhou então a ousadia de um gesto que celebrava naquele ano — 2024 — oitenta anos. Tudo naquela história soava obsoleto: o veículo, os modos e o contexto. Mas talvez não o impulso, sentiram elas; talvez não o anseio, talvez não a carência, a volúpia ou a inten­sidade. Porventura nada do que realmente importa teria mudado.”

NÃO-FICÇÃO

“Fortuna, Caso, Tempo e Sorte”, de Isabel Rio Novo (Contraponto)

Extensa biografia de Luís Vaz de Camões e trabalho de fôlego da escritora, que recorreu a todas as fontes possíveis para fixar no papel quem foi o homem por trás da lenda e como viveu, e o que fez, e de que eventos fugiu o autor do imortal “Os Lusíadas”. “Em ter morrido solitário, indigente, quase obscuro, para ser celebrado depois de morto, Camões era semelhante, dizia Faria e Sousa, a todos os grandes homens. O enorme êxito literário do escritor Luís de Camões seria uma boa maneira de terminar a narrativa biográfica do príncipe dos poetas portugueses. Mas ele não viveu o suficiente para testemunhar aquilo em que a sua poesia se converteria através dos tempos. Peço, pois, licença para terminar esta biografia de outro modo”, escreve a autora deste volume.

“Como o Ar que Respiramos”, de Antonio Monegal (Objectiva)

O seu subtítulo é ‘O sentido da cultura’ e ganhou o Prémio Nacional de Ensaio em Espanha, em 2023. O jornal “La Vanguardia” considera-o “imprescindível”. Julgue o leitor: “Perante que vê a cultura como um componente decorativo da nossa vida quotidiana, é necessário observar que quase tudo o que é importante do que acontece ao nosso redor é, de facto, cultura, mesmo aquilo que nos conduz à destruição da Natureza. Luta-se e mata-se por cultura: a maior parte dos conflitos violentos que dilaceram o nosso mundo têm uma base cultural, étnica, religiosa, de legados coloniais ou memória de ultrajes históricos.”

“O Cancelamento do Ocidente”, de Paulo Nogueira (Guerra & Paz)

“A sociedade que criou a democracia e o Estado de Direito está a autodestruir-se. Como? Porquê?”, pergunta-se logo na capa do livro. Trata-se de um ensaio escrito por um autor brasileiro que é também romancista e tradutor, viveu 25 anos em Portugal e hoje reside em São Paulo. “A sociedade ocidental – com os seus predicados de liberdade, prosperidade e tolerância - foi considerada por muitos (não dó ocidentais: também milhões de imigrantes de paragens mais inóspitas, o chamado ‘voto com o pés’) como o zénite da civilização”, começa ele.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LLeiderfarb@expresso.impresa.pt

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