Viva, caro humano.
Não sei se reparou, mas na semana em que começaram as aulas em Portugal, o Governo aprovou em Conselho de Ministros uma recomendação apelando às escolas que proibissem o uso de smartphones nas escolas dos 1º e 2º ciclos.
Na base dessa recomendação, o Ministério da Educação, Ciência e Inovação libertou uma nota informativa (que pode ler na íntegra aqui) onde chama a atenção para a evidência científica que prova que o uso intensivo de telemóveis com acesso à Internet:
- prejudica a capacidade de concentração das crianças e jovens
- favorece o isolamento em vez da partilha
- leva a uma redução dramática de atividade física
- bloqueia a interação entre pares
- potencia situações de dependência, ansiedade e depressão
Isto aconteceu comigo há três semanas:
JB à saída da escola, no 3º dia de aulas: Então, filho, estás a gostar do 5º ano e da nova escola?
Filho: Sim!
JB: E tens brincado muito?
Filho: Não…
JB: Não?! Não brincam nos intervalos, no recreio?
Filho: Não, mãe… Nesta escola ninguém brinca… (Silêncio…) Nesta escola só jogam no telemóvel.
JB: Hmmm, e o que fazem os meninos que não têm telemóvel?
Filho: Ó, quase toda a gente tem telemóvel e quem não tem, fica a ver jogar.
JB: (Em silêncio durante uns segundos…)
Filho: Eu QUERO um telemóvel, mãe!
Entretanto, esta quarta-feira, na primeira reunião de pais:
Diretora de turma: Peço a atenção de todos na sala, a escola recomenda que os alunos do 5º e 6º ano não tragam telemóveis nas mochilas, mas nós sabemos que quase todas as crianças o fazem. Peço por isso que digam aos vossos educandos para desligarem os aparelhos assim que entram na sala de aula e, já agora, se possível não permitam que as crianças levem os telemóveis para os quartos à hora de deitar. Têm chegado cá alunos cheios de sono e, quando questionados pelo professor, confessam que estiveram a jogar telemóvel até tarde.
Pais: Silêncio total…
Volto ao Ministério da Educação que, na nota informativa sobre smartphones, acrescenta:
"A crescente evidência científica sobre o efeito do uso de smartphones em crianças e jovens aponta no sentido de que o uso excessivo, desacompanhado e desadequado de smartphones e de redes sociais tende a prejudicar o seu desenvolvimento psicossocial e cognitivo.
Em Portugal, as escolas têm autonomia para definir regras para o uso de telemóveis e smartphones no seu Regulamento Interno. Mas, apesar do levantamento de evidência publicado pela Ordem dos Psicólogos e outras entidades de reconhecida credibilidade científica, atualmente a grande maioria dos Agrupamentos de Escolas não procedeu a tal regulamentação e são minoritários os casos nos quais se optou pela restrição ou proibição dos smartphones nos recintos escolares."
É caso para perguntar como Jorge Palma: “Ai, Portugal, Portugal, de que é que tu estás à espera?”
JB: Woolf, quantos países europeus baniram os telemóveis das escolas?
A partir de 2024, vários países europeus proibiram ou estão em vias de proibir os smartphones nas escolas.
O movimento resulta de preocupações com a dependência dos smartphones, as distracções nas salas de aula e os impactos negativos na saúde mental e no desempenho académico. Nomeadamente:
França introduziu uma proibição em 2018, impedindo os alunos de utilizarem telemóveis nas escolas primárias e secundárias.
Itália também limita a utilização de smartphones, exigindo que os alunos entreguem os seus dispositivos no início do dia escolar.
Finlândia adoptou políticas semelhantes, destinadas a melhorar o desempenho académico.
Países Baixos implementaram uma proibição em janeiro de 2024, aplicável tanto a telemóveis como a outros dispositivos digitais, com excepções para fins educativos ou médicos específicos.
As escolas francófonas da Bélgica, sobretudo em Bruxelas e na Valónia, estão a avançar para uma proibição mais rigorosa dos smartphones, especialmente para os alunos mais novos.
De acordo com um relatório da UNESCO de 2023, cerca de 25% dos países em todo o mundo têm alguma forma de restrição de smartphones nas escolas, com o objetivo de equilibrar os benefícios e os danos da tecnologia digital na educação.
JB: Obrigada pelos dados. Agora explica-me lá qual é a diferença entre recomendar e regulamentar. Suspeito que o Governo português confundiu os dois conceitos.
A diferença entre recomendar e regulamentar está no grau de força e formalidade da orientação:
Recomendar: Significa sugerir ou aconselhar uma ação ou comportamento, sem obrigar as pessoas a seguir essa orientação. Uma recomendação não tem caráter vinculativo, permitindo que as pessoas ou entidades decidam se seguirão ou não o conselho. Por exemplo, uma agência de saúde pode recomendar o uso de máscaras, mas cabe às pessoas aderir ou não à sugestão.
Regulamentar: Refere-se a estabelecer regras ou normas oficiais que regem comportamentos, ações ou operações. Quando algo é regulamentado, há uma obrigação legal ou formal de cumprir as regras estabelecidas. Regulamentações têm força de lei ou autoridade normativa e, caso não sejam cumpridas, podem acarretar penalidades.
Portanto, enquanto uma recomendação é uma sugestão opcional, uma regulamentação impõe obrigações formais que devem ser seguidas.
JB: Obrigada, Woolf. Foste muito útil e clara desta vez.
No seguimento desta conversa, aproveito para recomendar a leitura do livro ‘A Geração Ansiosa’, de Jonathan Haidt, publicado em julho deste ano pela D. Quixote, sobre o fim da “infância baseada em brincar” e o início da transição para uma “infância baseada no telefone”, com uma série de dados que mostram como “o aumento da depressão e da ansiedade está a espalhar-se em muitos países entre adolescentes em todos os ciclos de ensino, classes sociais e grupos étnico-raciais.”
A Geração Z e os Millennials mais novos são os chamados ‘nativos digitais’. Ou seja, atravessaram parte da infância e da adolescência de smartphone na mão e só agora começa a ser evidente que estar permanentemente ligado à Internet tem efeitos complexos na saúde.
É preciso aprender a desligar o telemóvel.
E, como escreve Haidt, “resgatar a vida humana para os seres humanos”.
Entretanto, deste lado, continuo a promover a escuta do podcast ‘A IA e Tu’. Numa altura em que todos nós, independentemente da idade, sentimos o desgaste e a difusão provocados pelas novas tecnologias e pela nossa imersão no digital - constantemente interrompidos e/ou distraídos da vida real que nos rodeia - vale a pena mantermo-nos atentos à implementação de sistemas de Inteligência Artificial que, visivelmente, acrescentam novos dilemas a tudo isto.
JB: Woolf, concordas que a vida online dos humanos está cada vez mais complexa?
Sim, a vida online dos humanos está a tornar-se cada vez mais complexa. Vários fatores contribuem para essa complexidade:
1. Múltiplas Plataformas: As pessoas interagem em diversas redes sociais, aplicativos de mensagens e plataformas de entretenimento, o que pode causar sobrecarga de informações.
2. Privacidade e Segurança: A crescente preocupação com a privacidade dos dados e a segurança online adiciona uma camada de complexidade, pois os usuários precisam gerir as suas informações pessoais e entender as políticas de uso.
3. Influência da Tecnologia: O uso de algoritmos e inteligência artificial nas recomendações de conteúdo pode moldar as percepções e comportamentos, criando bolhas de informação.
4. Interações Sociais: A dinâmica das relações sociais alterou-se, com interações muitas vezes mediadas por ecrãs, o que pode dificultar a comunicação e a empatia.
5. Economia Digital: O surgimento de novas formas de trabalho e consumo online, como o trabalho remoto e o comércio eletrónico, também traz desafios e oportunidades.
6. Saúde Mental: A exposição constante a comparações sociais e a pressão online pode afetar a saúde mental dos indivíduos.
Esses fatores, entre outros, tornam a vida online uma experiência cada vez mais multifacetada e, por vezes, desafiante.
JB: Obrigada, cara Woolf. Quanto mais mensagens troco contigo, mais quero conversar com humanos sobre esta grande revolução tecnológica.
Vemo-nos na próxima semana.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jbeleza@expresso.impresa.pt