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Vivemos num tempo em que as sensações emocionais têm mais força do que os factos empíricos, o que por vezes provoca situações caricaturas em que o detentor dos factos objetivos passa por mentiroso ou irresponsável. Por exemplo, eu costumo passar pela seguinte cena em público ou em privado: numa troca de argumentos, apresento um conjunto de factos; do outro lado, as pessoas abanam a cabeça, dizem que não pode ser, que aquele conjunto de factos até podia ser verdade, mas não é; ou seja, assumem que o conjunto de dados que estou a apresentar é apenas contrafactual: podia existir, mas não existe. Não, não e não. São mesmo factos, isto é, realidades empíricas, demonstráveis, objetivas. Podem ser factos do contra, sim, mas não são contrafactuais. À esquerda e à direita, as lentes das pessoas é que não estão preparadas para ver e reconhecer aqueles factos, porque incomodam mitos, narrativas e lugares comuns que têm um enorme valor emocional. E, entre aquilo que é emocionalmente importante e aquilo que é objetivamente verdadeiro, as pessoas e as tribos tendem a escolher a primeira opção. O espírito desta newsletter escolherá sempre a segunda.
I. O FACTO DO CONTRA
Há mais moderação do que se pensa
Nesta primeira semana, vou procurar ferir de morte uma narrativa que ouvimos todos os dias, a saber: vivemos numa irredutível era de extremos e de radicalismos, o centro está em perigo. Essa é a sabedoria convencional. A realidade, porém, é diferente; é muito mais moderada do que a representação mediática dessa mesma realidade. Ou seja, há um abismo entre a representação mediática, que valoriza uma amostra muito reduzida de radicais de um lado e de outro, e a realidade do dia-a-dia, que é muito mais sensata.
Dou-vos um exemplo da América, que será um objeto central desta newsletter, pelo menos até à eleição decisiva de Novembro: é incrível a quantidade de governadores vermelhos (republicanos) em estados tradicionalmente azuis (democratas) e vice versa. E conseguem governar em casa alheia com taxas de aprovação altíssimas. Aliás, os governadores mais populares tendem a ser republicanos de estados azuis.
Phil Scott é o governador republicano do azulíssimo Vermont; no final do ano passado, era o governador mais popular da União com taxas de aprovação na casa dos 80%.
Charlie Baker foi o governador republicano do azulíssimo Massachusetts até Janeiro último. No final de 2023, ainda tinha taxas de aprovação bem acima dos 50%. Saiu pelo seu próprio pé para outro cargo, não foi derrotado.
Larry Hogan foi o governador republicano da Maryland azul até Janeiro último; manteve até ao fim taxas de aprovação na casa dos 70%, uma das mais altas da União. Saiu devido à limitação de mandatos (serviu dois mandatos como governador; foi o primeiro governador republicano a servir dois mandatos seguidos na Maryland).
Chris Sununu é o governador republicano do azulíssimo New Hampshire. Aliás, é o seu quarto mandado como governador e já assumiu que vai sair pelo seu próprio pé e que não vai concorrer ao quinto mandato, que provavelmente venceria, pois continua popular e com reputação comprovada de eficácia e bom senso. Em 2020 recebeu o número de votos mais alto da história do estado. Mas, como governa com bom senso, não aparece nas notícias, como bem salienta Bill Maher no podcast fundamental sobre este tema.
Devemos ainda salientar que Bloomberg foi governador de Nova Iorque e que Chris Christie chegou a ser muito popular em New Jersey.
Andy Beshear é democrata e governador do Kentucky. Vamos repetir: o vermelhíssimo Kentucky tem como governador um democrata. Como é que a narrativa do radicalismo insanável explica isto?
No vermelhíssimo Montana, o democrata Steve Bullock foi governador entre 2013 e 2021. Na Louisiana, o democrata John Bel Edward foi governador entre 2016 e este ano. Na vermelha Carolina do Norte, o democrata Roy Cooper é governador desde 2016. Em 2016, foi o primeiro candidato a governador a derrotar o incumbente; foi reeleito em 2020.
Laura Kelly é democrata e governadora do vermelhíssimo Kansas. E Kelly é ainda importante por outra razão: foi figura central da vitória eleitoral do “sim” ao aborto no eleitorado do Kansas já depois da revogação do Roe vs. Wade. Ou seja, eis a história perfeita para ilustrar como o radicalismo ultra mediatizado e ultra comentado esbarra numa realidade mais moderada: um Supremo radicalizado por juízes escolhidos por Trump tomou uma decisão radical no sentido conservador contra o direito ao aborto; se a tese do radicalismo irredutível estivesse correta, os povos dos diversos estados vermelhos estariam a aplaudir; só que não aplaudiram e têm votado sistematicamente a favor do direito ao aborto, negando a intenção do Supremo. Isto é, todas as populações dos estados mais vermelhos e mais ligados à Bible Belt têm votado a favor do Roe vs. Wade - e este é uma das grandes brechas na muralha de Trump para a eleição de 2024; as mulheres da sua própria base estão contra a decisão mais simbólica do trumpismo e querem de volta o Roe vs. Wade. A realidade é muito mais complexa e sensata do que parece.
E podemos falar da mesma situação ao contrário. Na esteira do Black Lives Matter, a elite radical e ultra mediatizada dos democratas impôs há uns anos um slogan contra a polícia alegadamente racista: “defund the police” (não dar meios à polícia). Mas qual é a reação das pessoas que estão mesmo nas cidades e nos bairros? Como diz o grande economista negro Roland Fryer, a reação é de recusa total desse radicalismo da elite progressista. A esmagadora maioria dos negros não quer o “defund the police”; acham a ideia bizarra e absurda; mas, se observamos a realidade só através dos ativistas que dominam o twitter e a TVs, ficamos com a ideia de que toda a comunidade negra adora a ideia. Não, não adora. Muitos negros até votaram nos republicanos (percentagem de voto negro em Trump subiu de 2016 para 2020). Também é por isso que muitos congressistas moderados do Partido Democrata - na linha dos governadores acima citados - pedem mais sensatez a figuras radicais e ultra-mediáticas como Alexandra Ocasio Cortez: esse radicalismo, bom para MSNBC mas péssimo para a realidade quotidiana, custa muitos lugares e votos.
Há mais exemplos desta realidade muito mais moderada e centrista:
- Quando a extrema-direita antissemita atacou uma sinagoga em Pittsburg, a comunidade muçulmana foi ajudar e deu imenso dinheiro para a reconstrução.
- Cerca de 40% dos democratas tem uma arma ou vive com alguém que tem uma arma.
- Dois terços dos republicanos votaram pela legalização da canábis.
- Como recorda o omnipresente Bill Maher, talvez a voz mais sensata da América de hoje, metade dos guardas fronteiriços não são brancos, são latinos.
- O líder da milícia trumpista Proud Boys não é branco, é afro-cubano.
- Projetos novos de um jornalismo centrista, como a Free Press da Bari Weiss, estão a crescer exponencialmente: há milhões à procura de uma representação mediática mais realista e sensata entre o pós-verdade woke e o pós-verdade trumpista.
E podia passar o resto do dia nisto.
II. CONTADO NINGUÉM ACREDITA
Os alcoólicos anónimos do porno
Por vezes, encontramos factos que parecem fake, são um excesso de realidade que nem a lente mais realista consegue aceitar à primeira. Mike Johnson é um radical republicano, que, na prática, tem uma visão teocrática da política. O seu sistema político é a teocracia e, portanto, até se podia invocar que há evidente inconstitucionalidade na sua ação enquanto speaker da Casa dos Representantes. O seu radicalismo religioso é tão grande que chega a este cúmulo: tem uma app no telemóvel – Covenant Eyes - para controlar o acesso ao porno do seu filho e vice versa; ou seja, pai e filho controlam-se mutuamente para impedir a tentação do porno na net. Por ser tão ridículo e excessivo, este é o tipo de facto que pode levar ao tal erro de percepção que descrevi no primeiro ponto desta newsletter. Se olharmos só para os Mike Johnson da vida, podemos tirar uma conclusão precipitada e que é muito vulgar hoje em dia, a saber: o trumpismo é uma emanação do nacionalismo cristão, um fanatismo teocrático não muito diferente do islamismo. Sucede porém que a adesão dos americanos ao cristianismo e às igrejas está num mínimo histórico, mesmo na chamada Bible Belt do sul. O trumpismo não está a subir num momento de surto religioso; pelo contrário: está a subir num momento de descrença religiosa. Pela primeira vez na história, a maioria dos americanos não pertence a uma igreja.
Na Atlantic, Derek Thompson mostra-nos como esta realidade não está a ser analisada com a devida atenção. A ausência da frequência religiosa está a ter um impacto negativo: aumento da conflitualidade. Porquê? Os americanos, como povo, organizaram classicamente o seu imenso capital social (confiança entre vizinhos e concidadãos) através dos laços criados nas igrejas. Sem esse capital social clássico e religioso, os americanos não estão a conseguir inventar outra maneira de conviver, falar e discutir. A socialização cara-a-cara nunca esteve tão baixa. Isto já não é “Blowling Alone”, para usar o raciocínio tocquevilliano de Robert Putnam; isto é já nem sequer ir ao blowing. Mesmo para um agnóstico como Derek Thompson, o papel das igrejas organizadas enquanto argamassa social está à vista. E só se nota mesmo a sério quando... desaparece: "It took decades for Americans to lose religion. It might take decades to understand the entirety of what we lost”. Devido a esta ausência do contato humano ritualizado e semanal, que criava amigos, conhecidos e sentimento de pertença, e devido à ausência de um significado metafísico para a vida motivado pela descrença, sobra um ultra individualismo ressentido e facilmente explorado pelo trumpismo. De resto, a ascensão da linguagem à white trash de Trump e do trumpismo é a negação da austeridade clássica de um povo puritano que vai à missa. Ou seja, isto quer dizer que a ascensão da lógica autoritária não deriva de um excesso religioso; deriva aliás do fim dos laços de capital social que os americanos formavam nas igrejas –algo que era absolutamente dedutível a partir do argumento clássico de Tocqueville.
III. FACTO ESCONDIDO
O Casal Ventoso está ao virar da esquina
Nesta seção, mais curta, a newsletter Contrafactual dá uma olhada heterodoxa sobre a última edição do Expresso e destaca um facto que está demasiado escondido e que talvez merecesse mais atenção. O facto escondido desta semana é esta peça de Hugo Franco: aumentam os assaltos relacionados com o consumo de drogas duras. Julgávamos que esta realidade estava fechada no passado, naquela época difícil dos anos 80 e 90 quando Portugal sofreu uma das piores vagas de violência e hiv-sida provocada pelo consumo de heroína. Esta realidade está a voltar, lamento, mas ainda não tem o destaque merecido.
IV. A LENTE DA ARTE
Os erros de Israel
Com uma banda sonora assombrosa e assombrada de Max Richter, “A Valsa com Bashir” é um grande filme de guerra israelita (de Ari Folman) sobre os erros de Israel cometidos durante a invasão do Líbano (1982), o momento mais parecido com o atual, até porque também nessa altura a tensão entre Washington e Tel Aviv atingiu níveis inéditos. 1982 e 2024 são os anos mais quentes da relação entre EUA e Israel. Num registo estético que podemos classificar de autobiografia onírica que faz a catarse do horror através de uma estética única, “A Valsa com Bashir” mostra um país livre a refletir sobre os seus próprios pecados. Também sobre outro pecado de Israel (o preconceito dos judeus de origem europeia contra os judeus de origem árabe), vale a pena ver a série protagonizada por Sacha, Baron Coen, "The Spy".
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