A vida é vil

Montenegro e Carneiro têm quatro meses para travar Ventura

Montenegro e Carneiro têm quatro meses para travar Ventura

Ângela Silva

Jornalista

André Ventura promete um Governo sombra mas não tem pressa. Vencedor nas legislativas, fixa-se nas autárquicas do próximo outono com a agenda que lhe deu o sul do país: "Vamos ter bons autarcas para resolver os vossos problemas de violência, de insegurança, de imigração e "de mama" do Estado ao pé das vossas casas". Há quatro anos, o Chega falhou a implementação local. Mas poder atrai poder e há milhares de lugares em jogo

Caro leitor,

É muito clarificador assistir à forma como os três maiores partidos reagiram ao choque de 18 de maio. O PSD remeteu-se ao silêncio - tirando Paulo Rangel ter sido obrigado a assumir ao lado do homólogo alemão que os gastos em Defesa vão mudar as nossas vidas, os 'laranjinhas' geriram a vitória em registo circunspecto e contido, como recomendam o ar e os riscos dos tempos. O PS desatou aos tiros dentro de casa - com pedronunistas a tornarem público que discordaram da estratégia suicida de Pedro Nuno Santos (feio!), e costistas a avisarem que só engolem o sapo José Luis Carneiro na condição de este não aceitar Seguro nas presidenciais (doentio!). A esquerda, que durante 10 anos tudo fez para colar o PSD ao Chega, surgiu de supetão a pedir acordos no centrão, há até quem os queira escritos. E o Chega goza o prato, pré-anuncia um Governo sombra, mas a estratégia 'step by step' de André Ventura não se precipita - a próxima paragem do comboio é daqui a quatro meses.

Já em setembro/outubro, o país volta às urnas e a cada eleitor correspondem três boletins de voto, o que dá bem a dimensão do que se joga em eleições autárquicas. Envolvem 308 municípios, mais de 3 mil freguesias, outras tantas assembleias municipais, num puzzle gigantesco a que concorrem milhares de cidadãos e que um estudo do ISCTE divulgado esta semana mostra ter um especialíssimo capital de atração. Os portugueses dizem confiar mais nas autarquias do que no poder central - 60% dos inquiridos acredita que as câmaras municipais se preocupam com os seus cidadãos e 63% consideram o mesmo em relação às juntas de freguesia, enquanto a administração central fica bem abaixo dos 50% de reconhecimento - e Ventura já está nesta frente.

Há quatro anos correu-lhe mal, elegeu 19 vereadores que em menos de um ano entraram em debandada com acusações de falta de democraticidade interna no partido. Mas o líder do Chega sabe que desta vez parte encorpado pelo lastro que soube espalhar, sobretudo no sul do país, e na entrevista que ontem deu à SIC deixou claro que, mais do que preocupado com o Governo ou com o seu novo estatuto de segundo maior partido, a prioridade agora é o poder local.

"Se o Chega quer mostrar que é um partido de alternativa e não de protesto, não lhe basta ter 30% nas eleições ou um Governo sombra". O próximo desafio é outro e Ventura joga as armas de sempre: "O meu desafio é dizer assim, vamos ter bons autarcas para resolver os vossos problemas, de violência, de insegurança, de imigração ao pé das vossas casas. Ganhámos em Rabo de Peixe, porque quando há mama as pessoas reagem". Ricardo Leão e Sónia Sanfona (lembram-se?) foram trucidados no PS por, em Loures e Alpiarça, alinharem com teses securitárias ou quererem filtrar o Estado Social e a subsidiodependência, mas há fortes probabilidades de serem chamados à mesa antes do próximo combate.

A 18 de maio, o mapa ficou azul de Lisboa para baixo e Ventura sonha alastrar a mancha nas autárquicas do outono. O PS leva uma enorme vantagem, o PSD tem uma malha histórica no poder local e o Chega ainda é um menino do côro nesta frente, mas o poder atrai poder, um segundo partido a nível nacional ganha poder de atração, quem já se senta à mesa dos grandes consegue mobilizar gente mais qualificada, talvez fuja ao refugo, talvez escape aos larápios, quem sabe se não atrai transfugas de outros partidos, a frase de Ventura é simples - "Temos esperança de assistir em outubro à implementação local do Chega" - PS e PSD vão ter que se cuidar.

O Governo sombra da direita radical, para já, é uma bandeirola, mas o embrulho de André Ventura começou a mudar. Menos terrorista, mais institucional, aparentemente menos infrequentável, teoricamente mais responsável, "Estabilidade, trabalho, trabalho, trabalho". Com o PS à nora e a AD a precisar do cinto de segurança que, por não ter maioria absoluta, procurará e sabe encontrar nos socialistas talvez para quatro anos, André Ventura vai continuar a querer crescer por fora. A forma muda, mas o âmago da estratégia é o mesmo, contra o centrão, contra o mainstream, contra o sistema. A bolha anda desde dia 18 a discutir o acesso do Chega aos lugares do Estado a que passa a ter direito por ser o segundo maior partido? Ventura diz que se preocupa zero com isso, "já estão preocupados com os tachos, fiquem com os lugares que quiserem, façam os acordos que quiserem, eu estou preocupado é em mudar o país".

É mentira. Se tentassem ignorar o Chega no acesso ao Tribunal Constitucional, aos Serviços de Informações e Segurança ou ao Conselho de Estado, Ventura incendiaria a praça para se vitimizar da ‘panela’ do costume. E também por isso, Luis Montenegro tem estado calado, fez bem e não é caso para menos. Pressionado pelo Partido Socialista para uma relação preferencial que sabe ser o mais fácil, o mais natural, o mais apetecível, mas o mais arriscado, terá que ter a habilidade de preservar a maioria ao centro sem deixar o Chega à solta. A AD tem duas maiorias à mão, uma com o PS, a outra com Ventura. E o que lhe ouvimos até agora aponta para ir falando com todos, sem exclusões ou exclusividades. Sem trair o ‘não é não’, mas sem cair no ‘sim é sim’ que os socialistas (agora) querem.

Se o objetivo for sobreviver, é fácil e pode durar. Se quiser mudar o país, fia mais fino, mas não é impossível. Pode baixar impostos para tentar estimular a economia (o Chega quer), pode recuperar PPPs na Saúde para dar músculo ao SNS (o PS de Carneiro não se importa), pode abanar o garantismo excessivo da Justiça (talvez Chega e PS concordem), pode continuar a regular a imigração e pode e deve aceitar (será desta?) mexer no Estado e reformar a administração pública (quem avançar ganha e quem quiser travar perde). Montenegro sabe que com o PS, sobretudo de José Luis Carneiro, tudo será mais fácil. Mas nem o PS pode ser uma auto estrada para a AD, nem a AD pode deixar Ventura à solta.

Há um dermatologista de um hospital público que recebeu 50 mil euros por um dia de trabalho? O líder do Chega quer que todos os anos, antes da apresentação do Orçamento, o Governo apresente um relatório exaustivo dos números de desperdício no Estado. Demagogia? Inexequível? O programa de Ventura elevaria o défice acima dos 10% e atiraria o país para a bancarrota? A resposta é sim, mas vai ser assim. E vem aí um outono quente.

O PS deve ouvir Leão e Sanfona. E Montenegro, pelo sim, pelo não, talvez deva voltar a Fátima.

Até para a semana

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: AVSilva@expresso.impresa.pt

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