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Uma hora de ressentimento, saudosismo imperial e desvios da verdade. Quatro frases que são os pilares da narrativa de Putin sobre a Ucrânia

Foto: Getty Images
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Foi um dos discursos mais duros de sempre, diz quem ouviu já muitas horas de retórica de Vladimir Putin. Uma parte foi para consumo interno – é preciso justificar uma incursão militar que vai custar duras sanções sobre a economia russa -, outra para o mercado externo: a Ucrânia sempre fez parte da Rússia, desistam. O ultimado chegou envolto numa mentira: Putin mandou Kiev parar com o cessar-fogo mas as agressões chegam maioritariamente do seu lado

“Inacreditavelmente negro e beligerante.” É assim que Sam Greene, diretor do programa de Estudos da Rússia na Universidade King‘s College, em Londres, descreve o discurso de uma hora que o Presidente da Rússia proferiu esta segunda-feira aos seus compatriotas. Teve tempo de percorrer anos e anos de História da Rússia apenas para chegar à conclusão que a Ucrânia não tem razão para existir como entidade política soberana. Nem Lenine escapou à retórica irada que Vladimir Putin trouxe para este comunicado, gravado previamente na televisão estatal Rossiya 24.

Putin considerou o líder da revolução bolchevique de 1917 que derrubou o czar Nicolau II o “autor e criador” da Ucrânia. E deixou ameaças a Kiev, entre as quais que está pronto para mostrar “o que é a verdadeira descomunização”.

Habitantes das regiões de Donetsk e Lugansk chegam a Rostov, já na Rússia, depois de aconselhados pelos líderes das autoproclamadas repúblicas a saírem de suas casas por causa de ataques ucranianos. A Ucrânia nega estar a atacar as zonas separatistas FOTO: Maxim Romanov/Anadolu Agency/Getty Images

No final, o ultimato: cessar-fogo imediato nas “repúblicas” de Luhansk e Donetsk, controladas por separatistas pró-Rússia, mas parte do território reconhecido internacionalmente como da Ucrânia. Uma exigência feita para as câmaras, já que a violência na região está a ser causada, em grande parte, por atores russos ou com afinidades russas. Espera-se para breve a entrada de “forças russas para impor a paz”, em ambos os territórios. Até onde levarão a sua marcha é impossível de antecipar. 

“Não querem uma solução pacífica”

Já no fim do discurso, quando, após longa revisão da História da Rússia no século XX, Putin confirmou por fim que ia reconhecer as províncias de Donetsk e Lugansk como repúblicas independentes, o Presidente russo acusou a Ucrânia de não querer uma solução pacífica por “não querer aplicar os Acordos de Minsk”. É verdade que a Ucrânia não quer aplicar esses acordos, firmados em 2014-15, sem ver antes a total retirada de separatistas da sua região leste, mas não é certo que não deseje uma solução pacífica. Segundo os ucranianos, os ataques que Moscovo refere não têm acontecido, como escreveu esta segunda-feira, no Twitter, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia:

A frase de Putin sobre estes ataques — “quase todos os dias estão a atacar aldeias em Donbass e estão a reunir grandes conjuntos de tropas” — não parece ter correspondência com a realidade no terreno, muito menos as alegações de tortura e genocídio. “Há idosos e crianças torturados” e “não há fim à vista” para esta situação, disse Putin.

“Todo este discurso, com imprecisões históricas e outros pontos que são apenas mentira, serve para justificar uma invasão. Ele tem de explicar por que razão vai invadir, e tem de dar material suficiente aos meios de comunicação russos para poderem escrever e analisar todos os pontos do discurso”, diz ao Expresso o analista de risco militar Dionis Cenusa, do Centro para o Estudo do Leste da Europa. Em baixo, pode ler-se precisamente essa parte do discurso, recordada pelo correspondente do “Financial Times” em Moscovo: a Ucrânia é responsável pela violência em Donbass e será responsabilizada pelo “derramamento de sangue”.

“Através dos separatistas, e de muito ruído mediático, há uma clara tentativa de desacreditar a Ucrânia na opinião pública internacional, como se não tivesse direito a não aceitar aceitar as pretensões russas. Mas tem, está consagrado no direito internacional público de todos os estados soberanos”, diz ao Expresso Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacional da Universidade Nova de Lisboa, numa análise ao discurso do Presidente da Rússia.

Quanto aos Acordos de Minsk, a académica considera que a Ucrânia se viu pressionada a assinar um acordo que não pode viabilizar. “A Ucrânia não reconhece as eleições nas províncias separatistas, e não pode ceder neste aspeto, porque seria dar-lhes legitimidade para decidirem o seu próprio destino, arrasando a sua integridade territorial”

Dionis Cenusa antecipou ao Expresso o que acabaria por acontecer uma hora depois do discurso de Putin. “A Rússia não precisa de invadir nem de conquistar, apenas de enviar forças para ‘manter a paz’ e assim normalizar por completo a presença de forças russas. É uma cópia do que aconteceu na Geórgia e, em breve, será território com governos russos reconhecidos por Moscovo.”

“Ucrânia moderna é uma criação da Rússia”

Putin considera que a Ucrânia não tem direito a existir como país independente. Foi assim que abriu o discurso quando disse que a “Ucrânia moderna é uma criação da Rússia”, prosseguindo com uma dura crítica aos bolcheviques por terem tornado a Ucrânia uma entidade separada da restante Rússia. 

É facto histórico que a Ucrânia foi parte da União Soviética, mas há mais de 30 anos que é independente e, em 2014, grandes manifestações no país fizeram cair o Presidente Viktor Yanukovych, próximo do Kremlin. Putin é da opinião que esta onda de protestos, que tomou o nome de “Revolução da Dignidade”, foi um “golpe de Estado”, orquestrado por forças externas. “A Ucrânia não tem tradição de Governo próprio,  foi construída através da negação de toda a memória histórica que une de milhões de pessoas”, afirmou Putin, alegando que o Executivo em Kiev não passa de um “teatro de fantoches” e que a “embaixada dos Estados Unidos controla diretamente a agência anticorrupção da Ucrânia”, mais um “facto” que não conseguiu provar.

Soller explica que Putin está a escolher as partes da História que interessam à sua narrativa. “A realidade mais importante para explicar o momento que vivemos é que na II Guerra Mundial foi acrescentado à Ucrânia um território que tinha feito parte do império austro-húngaro, por isso temos pessoas que se sentem mais próximas da Rússia e outras que se socializam durante dezenas e dezenas de anos, dentro de moldes mais ocidentais. É contra esta parte que Putin está, a Rússia não aceita isto e, por isso, de cada vez que a Ucrânia elege um Presidente mais próximo do Ocidente, a Rússia entra em stresse. É preciso dizer o óbvio: a Ucrânia não foi sempre território russo.”

“A população da Crimeia disse claramente ‘não’ e iremos recordar isso”

O “não” de que Putin fala é na verdade um “sim”: num referendo, em 2014, a população residente nesta península manifestou a intenção de pertencer à Rússia, que a anexou em seguida. O problema é que esta incursão foi condenada por larga maioria nas Nações Unidas, além de sempre terem existido muitas dúvidas sobre a consulta popular. O resultado oficial da República Autónoma da Crimeia foi de 97% a favor da integração na Federação Russa, com a participação de 83% dos eleitores. Essa votação repetiu-se em Sebastopol, cidade autónoma e porto muito importante no Mar Negro.

As autoridades ucranianas queixaram-se na altura que as escolhas disponíveis no boletim de voto não incluíam manter o status quo da Crimeia e Sebastopol, na altura já regiões autónomas com poderes soberanos. Ou seja, entre “regressar à Ucrânia”, perdendo esse estatuto de autonomia em relação a Kiev, e “pertencer à Rússia”, qualquer das possibilidades significaria sempre uma mudança.  

Residentes de Donetsk celebram o reconhecimento da província como independente, mas só Moscovo aceita a autodeterminação destes territórios, que a comunidade internacional continua a considerar parte da Ucrânia. Por isso qualquer assistência internacional ou contratos de cooperação comercial serão impossíveis de alcançar na região, que depende e vai depender ainda mais da Rússia para sobreviver FOTO: Taisiya Vorontsova/TASS/Getty Images

Antes, durante e depois do referendo, a península da Crimeia esteve ocupada por soldados russos, responsáveis pela vigilância da votação. O mito de que a Crimeia sempre foi russa é apenas isso. Antes de 2014, e em toda a História mundial que conhecemos depois da invenção da escrita, a Crimeia foi russa durante 168 anos, tendo sido também bizantina, grega e um “Oriente em miniatura” durante o Império Otomano, como explica, num texto para a Chatham House que desconstrói mitos sobre as pretensões territoriais russas, a diretora do programa para a Eurásia, Orysia Lutsevych. Antes da anexação, em 2014, a Crimeia foi um território autónomo, que inclusive apoiou a independência da Ucrânia em 1991.

O Ocidente deu garantias de que a reunificação da Alemanha “não levaria à expansão da NATO”

“Os aliados europeus já sabiam que a adesão da Ucrânia seria perigosa, mas tiveram de ceder à vontade do membro mais velho”, disse Putin, referindo-se aos Estados Unidos, que abriram a porta à entrada da Ucrânia na Aliança Atlântica em 2008, na conferência de Bucareste. Até o Presidente francês, Emmanuel Macron, já referiu esta suposta traição das potências ocidentais à Rússia, mas é mais um mito. Em julho de 1990, o líder soviético Mikhail Gorbachev concordou com a incorporação da Alemanha unida na NATO. O secretário de Estado dos EUA na época, James Baker, dissera a Gorbachev que a jurisdição da Aliança não iria além da fronteira interna da Alemanha, mas Washington reviu essa posição depois de examinar os aspetos práticos de parte da Alemanha estar fora da Aliança.

No âmbito do acordo alcançado por Gorbachev e o chanceler da Alemanha Ocidental, Helmut Kohl, nenhuma força de outros países da NATO poderia ser implantada no território da antiga República Democrática Alemã (RDA) até à retirada das tropas soviéticas. No entanto, Gorbachev não pediu nem recebeu garantia formal de que não haveria mais expansão da NATO. “Mesmo que os dias do Pacto de Varsóvia estivessem claramente contados, não havia expectativa nas capitais ocidentais, no outono de 1990, de que a URSS entraria em colapso um ano depois”, explica, no mesmo texto da Chatham House, um dos seus investigadores, John Lough. 

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