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Ucrânia: A Rússia dominou a tática “more tanks, more talks”. Estamos a viver “a semana mais importante para a Europa em 30 anos”?

Ucrânia: A Rússia dominou a tática “more tanks, more talks”. Estamos a viver “a semana mais importante para a Europa em 30 anos”?

Esta segunda-feira marca o início oficial das conversações entre russos e norte-americanos com vista ao restabelecimento de alguma normalidade na Ucrânia. As expectativas para que esta semana de esgrima diplomática venha mesmo a terminar num compromisso são baixas, tão baixas que os principais analistas de relações internacionais não colocam de lado que a guerra possa voltar a Europa

A criação da União Europeia já não é um acontecimento assim tão recente na história do século XX: as crianças que nasceram em Portugal em 1986, o ano da nossa adesão, já têm idade para ser pais. Os filhos deles sim, nasceram já num mundo de paz quase total daqui até à Rússia, passando pelos Balcãs. Esta segunda-feira discute-se em Genebra o equilíbrio e a estabilidade da Europa e por isso “esta é uma das semanas mais importantes, se não a mais importante dos últimos 30 anos”, diz ao Expresso o analista de relações internacionais Miguel Monjardino. Este é um momento diferente dos outros: se a Rússia não avançar agora, “perde o poder de pressão porque já não avançou o ano passado e corre o risco de que o Ocidente deixe de acreditar em outras ameaças futuras”.

Do primeiro dia de negociações ainda não há progressos dignos de nota. É esta a conclusão das primeiras sete horas de negociações em Genebra, entre a Rússia e os Estados Unidos, sobre as ameaças de Moscovo sobre Kiev. A Rússia voltou a dizer que não tem planos para invadir a Ucrânia, uma certeza que já deu outras vezes, não tendo por isso feito regressar das fronteiras os militares destacados. Se a Rússia vai aceitar recolher as suas fileiras é uma pergunta para a qual a Secretária de Estado norte-americana, Wendy Sherman, não tem resposta, disse a própria aos jornalistas presentes na capital da Suíça. 

“Numa altura em que o foco dos Estados Unidos se direciona para o Pacífico e Sudeste Asiático qual é o empenho que eles vão conseguir colocar nesta negociação, enquanto a Rússia luta para estabelecer o seu próprio caminho, que Putin não vê, de todo, como apenas um parceiro júnior da China?”

Sónia Sénica, Investigadora do IPRI

Os EUA e a Rússia tiveram “discussões úteis”, mas não negociaram detalhes específicos, disse Sherman. A delegação dos EUA rejeitou as propostas russas – “simplesmente inválidas” – que previam um compromisso da NATO em nunca admitir a Ucrânia. “Não permitiremos que ninguém feche a política de portas abertas da NATO”, é a frase oficial dos negociadores norte-americanos desde que a lista de exigências russa foi tornada pública. Mas só o facto de haver conversações já pode ser visto como uma vitória para Rússia. “A política externa russa consegue uma vitória ao transformar aquela frase ‘more tanks, more talks’ em negociações reais. Obrigaram a contraparte ocidental a ter de trabalhar num diálogo para reformular a arquitetura de defesa que existe hoje”, analisa ao Expresso a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais, Sónia Sénica.

E esta não é a primeira surpresa no que toca ao poder da diplomacia russa, auxiliada, claro, por essas tais movimentações militares. Quando Biden e Putin falaram ao telefone o ano passado sobre este mesmo assunto, “a Rússia teve o reconhecimento de ser considerada um grande poder” e “sentiu-se com as condições necessárias asseguradas para poder exigir as garantias que considera essenciais para o relacionamento estável entre as duas partes”. 

Três pontos de pressão e tropas perto de Kiev

Em dezembro do ano passado, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, decidiu partilhar com a comunicação social alguma informação que tinha estado até então no segredo dos serviços de informações, de forma a alertar os parceiros da NATO que os planos bélicos da Rússia na Ucrânia eram mais consistentes do que haviam sido em abril de 2021, um outro ponto quente nas relações entre os dois países. 

Esta segunda-feira, quando Estados Unidos e Rússia se sentaram à mesa em Genebra, a Rússia sabia que a NATO sabe que existem perto de 100 batalhões de forças especiais russas em movimento para a fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, num total estimado de 175 mil militares disponíveis, mais artilharia e outro equipamento de combate. 

Fontes da CIA e outros pólos de informação sensível também indicaram, em declarações à “Axios”, que os meios de comunicação russos têm elevando bastante o nível de conteúdo contra a NATO, a UE e os Estados Unidos desde que Biden decidiu expôr a extensão da operação militar enviada para a fronteira. 

Uma mulher em Donetsk, no leste da Ucrânia, aponta para várias datas na parede do bunker que serve de abrigo anti-aéreo para as pessoas desta região desde 2014, quando teve início a guerra entre a Rússia e Ucrânia. As datas são os anos em que ela e outros habitantes passaram aqui a passagem de ano. Foto: Getty Images

Neste momento, os pontos de pressão da Rússia sobre a Ucrânia são pelo menos três: a norte, perto da interseção da fronteira da Ucrânia com a Bielorrússia e com a Rússia no leste, nas províncias já tomadas pelos russos de Luhansk e Donetsk e na península da Crimeia, a sul, que também já é posse territorial russa, ainda que não reconhecida pela comunidade internacional. As forças concentradas ao norte da Ucrânia, em áreas como Klintsy, estão a uma curtíssima distância da capital ucraniana.

Assim começa uma semana fria, muito fria, a mais fria, diz a Associated Press, desde o colapso da União Soviética. E ainda há uma nova sombra sobre tudo isto: o envio de tropas russas para o Cazaquistão, onde o Governo deu ordem à polícia para “atirar a matar” sobre os manifestantes que neste momento exigem nas ruas um alívio dos preços dos combustíveis e castigos efetivos para a corrupção das elites que governam o país.

Apesar de estar a tentar manter três “frentes” – Bielorrússia, Cazaquistão e Ucrânia -, ainda que todos estes cenários exijam diferentes níveis de dedicação, o grande teste desta negociação não é apenas para os russos – é até mais para os norte-americanos. “Há uma ascensão muito fulgurante da China e o foco dos Estados Unidos têm mudado, nestes últimos tempos, para o Pacífico e Sudeste Asiático então qual é o empenho que vão conseguir colocar nesta negociação enquanto a Rússia luta para estabelecer o seu próprio caminho, que Putin não vê, de todo, como apenas um parceiro júnior da China?, questiona-se Sónia Sénica.

“A ideia de um exército como uma espécie de Cruz Vermelha musculada, que serve maioritariamente para apagar incêndios e dar vacinas, acabava”.

Miguel Monjardino, especialista em assuntos internacionais

Nos próximos dias, a NATO e a UE também vão estar envolvidas nas conversas, mas “esta segunda-feira é a conversa mais importante porque Vladimir Putin viu que, numa negociação meramente europeia, não conseguiria ver realizadas as suas pretensões, então precisava de elevar o jogo ao mais alto nível, foi esse o objetivo da coerção militar, e conseguiu. Agora vamos saber até onde os Estados Unidos estão dispostos a ir”. E mais não é possível adivinhar. “Os Estados Unidos só têm uma saída: oferecer um escorrega por onde Putin possa sair de forma digna”.

Se isso não acontecer, se a Rússia avançar, toda a ordem atual ficará exposta às balas, reais ou figuradas. “A leste e nos Balcãs a instabilidade seria enorme, tudo ficaria muito mais confuso e as sociedades, lá e aqui mais perto, iriam voltar a despertar para as questões nacionalistas e de Defesa, a força armada seria de novo vista como um instrumento central e a ideia de um exército como uma espécie de Cruz Vermelha musculada, que serve maioritariamente para apagar incêndios e dar vacinas, acabava”.  

A Rússia “teme que a Ucrânia se torne muito europeia, muito anti-Putin e teme principalmente que, se perder esta janela de oportunidade, daqui a 10 anos a situação vai ser pior”. Mas há aqui um “paradoxo invertido”, diz Monjardino, e que pode estar contra os russos, aconteça o que acontecer, mesmo (principalmente?) uma invasão: “A questão é que a coerção russa ainda empurra mais os ucranianos para este lado, o da UE. Quanto mais o russos pressionam mais os ucranianos vão procuram Bruxelas e do ponto de vista de Moscovo eles sabem que podem muito perder esta batalha, ou seja, na ideia de Putin, se calhar é melhor dar agora a impressão de que têm os meios para atacar do que esperar até 2025 ou 2030, quando as forças ucranianas já estarão mais equipadas, mais integradas nas forças europeias”. 

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em Donbass, uma das linhas da frente na guerra com a Rússia, em fevereiro de 2021, quando as tensões estavam quase tão altas como agora FOTO Getty Images

É, portanto, o tudo ou nada do lado de Moscovo. “Putin já disse várias vezes que os ucranianos e os russos são um povo só. É estranho para nós mas Putin não vê a Ucrânia como nós, ele considera a Ucrânia parte da Rússia até porque culturalmente Kiev é um dos berços da cultura russa”. 

Sónia Sénica discorda dos analistas que preveem um conflito aberto: “Putin procura defender o mundo russo e vai buscar justificação para as suas incursões no leste da Ucrânia a essa ligação histórico-cultural com os falantes de russo que se espalharam por vários países aquando da implosão da União Soviética, evento que ele já classificou como uma das maiores tragédias da História”, começa por explicar. Mas nem essa defesa do mundo russo nem a necessidade de assegurar a sua própria segurança garantindo que o Ocidente não engole mais países perto das suas fronteiras poderiam justificar uma guerra. “Ele conseguiu projetar força e essa projeção, essa percepção, chega. Não teria nada a ganhar com uma invasão territorial, os custos não iriam compensar os benefícios”, diz a investigadora.

Até os analistas da era Trump foram chamados como conselheiros

É uma das histórias desta primeira semana de negociações: o conselheiro para a Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, o homem que vai liderar as conversações com a Rússia em Genebra, reuniu-se por Zoom com uma longa lista de especialistas em assuntos internacionais, muitos deles completamente fora da área política da atual administração de Joe Biden, para entender com o que contar durante as conversações e também para evitar que estas vozes, tendencialmente mais críticas de Biden, não se sintam tão à vontade para criticar os esforços diplomáticos em público, escreve a “Axios”. 

A reunião acontece após a publicação de uma carta aberta ao Executivo de Biden, escrita por diplomatas, académicos e mesmo ex-militares com conhecimento específico da política externa russa, na qual pedem que os Estados Unidos não percam tempo a enviar armas para a Ucrânia. A coisa mais importante que o Ocidente pode fazer agora é aumentar a força de dissuasão das forças armadas da Ucrânia, fornecendo assistência militar e equipamento, e o mais rapidamente possível”, lê-se na carta.

“Uma coisa Putin já conseguiu: reavivar a NATO. Ninguém acha, hoje em dia, que a aliança não é precisa”

Miguel Monjardino, especialista em assuntos internacionais

O vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Ryabkov, que chefia a delegação da Rússia nas negociações de Genebra, respondeu de forma bastante áspera à intervenção de Blinken no domingo. “As exigências dos Estados Unidos e de outros países da NATO para que aceitemos a redução dos exercícios militares que estão a ser realizados no nosso próprio território não são sequer tema destas negociações. É um argumento que nem sequer dá para iniciar uma conversa”, disse Ryabkov numa entrevista à agência de notícias Tass. Mas mesmo assim essa conversa está a acontecer.

Numa tentativa de impedir a tática russa de semear discórdia entre aliados, os assessores de Biden encheram os jornais e as televisões com frases como “Nada sobre a Ucrânia sem a Ucrânia” e “Nada sobre a Europa sem a Europa” mas evitar a ideia de que os Estados Unidos estão a negociar apenas com os russos o destino de milhares de pessoas que não são nem americanas nem russas. 

Uma mulher numa mnifestação em Kiev, dia 9 de janeiro, a pedir um “Não” a Vladimir Putin, Presidente da Rússia. FOTO Getty Images

O afastamento da UE destas conversações é, para Miguel Monjardino, “uma facada no orgulho dos europeus” e, além disso, são os europeus que mais podem vir a sofrer com uma possível “alteração estrutural da ordem geopolítica como a conhecemos”. É que esta guerra está mais próxima de todos nós do que a distância em quilómetros que os mapas nos mostram. O Eurostat, em 2018, colocava a dependência europeia de gás natural com origem russa nos 40%. A Rússia é o maior fornecedor de crude, gás natural e combustíveis da Europa.

Não só por isso, mas também por isso, Miguel Monjardino não acredita que a UE ou a NATO se venham a envolver em qualquer guerra que possa vir a acontecer na Ucrânia mas não descarta outras opções: os Estados Unidos podem aumentar o número de forças militares em vários países do leste da Europa, os Estados-membros podem começar a enviar armamento e até a Finlândia e a Suécia podem ver a futura adesão à NATO com outros olhos. “Uma coisa Putin já conseguiu: reavivar a NATO. Ninguém acha, hoje em dia, que a aliança não é precisa”.

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