Putin reconhece a independência das províncias separatistas da Ucrânia. O que é que isto significa para as negociações de paz?
Um militar ucraniano perto da cidade de Marinka, em Donetsk, uma das duas províncias do leste da Ucrânia que grupos de separatistas russos conquistaram em 2014 FOTO: ALEKSEY FILIPPOV/AFP / Getty Images)
Luhansk e Donetsk vão ser declaradas “repúblicas independentes” pelo Kremlin. Quais as vantagens para Moscovo em reconhecer estes territórios? Não parecem ser assim tantas, mas esta segunda-feira o presidente da Rússia, Vladimir Putin, deu um salto no desconhecido: este reconhecimento destrói o que restava dos Acordos de Minsk que ele sempre disse respeitar
Desde esta segunda-feira, as “repúblicas” controladas por separatistas russos de Luhansk e Donetsk já são, no entender de Moscovo, independentes. A informação já está a ser divulgada nas agências de notícias oficiais, como a TASS, como se pode verificar pela publicação no Twitter que se pode ver em baixo.
Numa reunião, esta manhã, com o Conselho de Segurança da Rússia, a ideia de reconhecer estes territórios como entidades políticas independentes já tinha ficado bastante clara. “O objetivo [da reunião] é ouvir os membros do Conselho e determinar os próximos passos nessa direção, incluindo o apelo que dois líderes destas repúblicas lançaram à Rússia, pedindo o reconhecimento da sua soberania”, disse Putin.
Poucos analistas parecem conseguir explicar quais as grandes vantagens imediatas que este passo poderia ter para a Rússia, em comparação com a muito mais direta e robusta influência que a Rússia teria em Donbas dentro dos Acordos de Minsk, mas parece cada vez mais que será esse o caminho escolhido.
O Expresso já escreveu sobre a questão da mudança de foco dos russos para Donbas, com a ajuda de académicos especializados em risco militar e política russa e a conclusão é uma: a vantagem é “apenas” aplicar pressão sobre a Ucrânia. “Uma das coisas que os Acordos de Minsk reconhecem é que a Constituição da Ucrânia deveria ser alterada para ter em conta a opinião das autoridades que governam hoje essas repúblicas. Moscovo, sabendo que a Ucrânia pode nunca aceitar tal coisa, força a situação, com uma incursão ou com a tal declaração unilateral de apoio à independência, que permitiria a Moscovo não perder a face, mostrar que tem poder”, disse Lívia Franco, da Universidade Católica.
Afinal os Acordos de Minsk já não interessam a Putin?
Sob os termos dos Acordos de Minsk, a Ucrânia deveria dar às duas regiões autonomia significativa em troca da recuperação do controlo da sua fronteira com a Rússia. A atual liderança ucraniana vê este acordo como uma autoestrada para a Rússia conseguir influenciar o Governo em Kiev, porque o estatuto especial que as províncias viriam a ter poderia redundar na alegoria do cavalo de Tróia. O voto destas regiões em decisões do Governo central ucraniano, principalmente em questões de política externa como são todas as que digam respeito a uma aproximação política, económica e militar ao Ocidente, poderiam assim ser influenciadas pela Rússia, através da voz destas repúblicas, promovendo uma viragem governativa em Kiev – sentido leste.
Além disso, como disse Roman Tsymbalyuk, ex-correspondente em Moscovo da agência de notícias ucraniana Agência de Informação Independente, ao site de análise geopolítica “OpenDemocracy”, “o reconhecimento dos territórios vai impossibilitar que a Rússia continue a dizer ‘nós não estamos lá’, ‘eles não querem saber dos Acordos de Minsk’, ‘não sabemos de onde vêm estas armas'”.
Logo depois de o texto passar na Duma, a Ucrânia anunciou, através do ministro dos Negócios Estrangeiros, que qualquer apoio à independência de Donetsk e Luhansk levaria à anulação dos Acordos de Minsk, um série de passos para a pacificação da zona, assinados primeiro em 2014 e, de forma mais bem-sucedida, em 2015, que a Ucrânia contesta. Kiev assegura que os aceitou numa altura em que se encontrava sob enorme pressão militar russa.
Uma ucraniana em Simferopol, a segunda maior cidade da Crimeira, quando ainda havia protestos contra a tomada da península ucraniana pela Rússia FOTO Spencer Platt/Getty Images
Ora, Putin tem aqui um problema porque já disse por diversas vezes que não quer a guerra e que é a favor da implantação dos Acordos de Minsk, o que significa que assinar qualquer documento que reconheça a independência dos territórios separatistas é voltar com a palavra atrás. A inversão de marcha já começou a ser feita nesta reunião do Conselho de Segurança, bem coreografada. Putin afirmou que não existe qualquer perspetiva de aplicação desses acordos, acusando novamente Kiev de os sabotar, afirmação proferida imediatamente após o seu encarregado das negociações de paz na Ucrânia, Dmitri Kozak, ter dito que os Acordos de Minsk estão “estagnados” desde 2019 e que as autoridades ucranianas “nunca” aplicarão os acordos.
Para a Rússia, os separatistas são interlocutores legítimos, para a Ucrânia são terroristas – um ponto comum de onde iniciar um diálogo é muito difícil de encontrar.
Viagem no Tempo: Geórgia, 2008
A ideia de reconhecer estas províncias não vem de agora, foi precisamente o que aconteceu na Geórgia, em 2008, onde governos pró-Kremlin lideram as regiões da Abecásia e Ossétia do Sul. Moscovo reconheceu essas regiões como independentes na altura e procedeu ao envio das suas tropas para ambas. Também agora o pode fazer, garantindo assim que o conflito em Donbas duraria anos, senão décadas. Um outro problema que tem sido pouco explorado é precisamente o tamanho da área que estes separatistas dizem dominar. Neste momento, apenas cerca de 7% das províncias separatistas estão de facto “separadas” mas os líderes das “repúblicas” reclamam toda a área de Donbas – a região formada coletivamente pelas províncias de Donetsk e Luhansk.
O fogo de artilharia agora ouvido ao longo da fronteira entre as milícias apoiadas pela Rússia e as forças armadas ucranianas inevitavelmente nos remetem para o cenário que deu início à Guerra na Geórgia, em agosto de 2008. Até o facto de a Rússia ter dito que estava a retirar armamento da fronteira é uma página de um capítulo que já lemos.
A Rússia também anunciou que estava a reduzir as forças após exercícios militares e obras de construção de ferrovias na Abecásia, pouco antes de efetivar a incursão na Geórgia. Também a Geórgia estava a tentar aproximar-se do Ocidente nessa altura, isto apesar de as situação não serem idênticas. Foi a decisão do então presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, em atacar a capital da Ossétia do Sul com rockets que levou à invasão total do sul do país. A lição da História para o presidente da Ucrânia, Volodomyr Zelinskiy, é clara: não se responde a provocações.
Tensões em alta
Os ucranianos dizem que os bombardeamentos dos separatistas apoiados pela Rússia estão no ponto mais alto em quase três anos, dados que são confirmados pelos últimos relatórios da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), que só no sábado registou 1500 quebras ao acordo de cessar-fogo de 2015 (que nunca foi totalmente respeitado).
Por sua vez, os separatistas alegam que os ucranianos estão a atacar áreas civis. Uma retirada em massa de pessoas destas zonas mais próximas da fronteira teve início da sexta-feira, logo após os líderes destas “repúblicas” autoproclamadas terem vindo dizer que as vidas dos “seus” cidadãos corriam perigo. Pelo menos 60 mil pessoas já terão saído destas zonas, escreveu esta segunda-feira o correspondente do diário britânico “The Guardian”. Yuri Afonov, um deputado do Partido Comunista, que propôs o decreto de lei para o reconhecimento da independência das “repúblicas” disse, também ao “OpenDemocracy”, que acredita que o reconhecimento pode impedir uma “aventura militar” das forças armadas ucranianas, citando o facto de que mais de 700.000 pessoas que vivem nas “Repúblicas Populares” agora possuem passaportes russos.
Fotografias de autocarros em direção à Rússia e de vários pavilhões cheios de camas de campanha têm sido amplamente divulgadas nos canais de televisão próximos do Kremlin mas não é possível saber exatamente qual a dimensão desta evacuação, devido à utilização constante de desinformação como arma de guerra nos últimos dias. No Twitter, como se pode ver em baixo, o minsitro dos Negócios Estrangeiros ucranianos, explicou todas as coisas que a Ucrânia não fez, apesar de ter sido acusada pela Rússia de todos os prontos.
No, Ukraine did NOT:
❌Attack Donetsk or Luhansk ❌Send saboteurs or APCs over the Russian border ❌Shell Russian territory ❌Shell Russian border crossing ❌Conduct acts of sabotage
“O reconhecimento de Luhansk pela Rússia permitirá a prevenção da perda de vidas de cidadãos da república, 300.000 dos quais são russos”, disse o líder da “República Popular de Luhansk”, Leonid Pasechnik, num vídeo transmitido em vários canais de televisão russa. Quase simultaneamente, Denis Pushilin, chefe da “República Popular de Donetsk”, foi à televisão estatal russa para também pedir a Putin que reconhecesse este território como estado independente.
“A utilização da Ucrânia como instrumento de confronto com o nosso país representa uma ameaça grave, muito grande para nós”, disse Putin nesta mesma reunião extraordinária afirmando que a prioridade de Moscovo “não é o confronto, mas a segurança”. Jake Cordell, jornalista do Moscow Times, disse à France 24 que “os russos consideram que os Estados Unidos estão apenas envolvidos num jogo de altos e baixos, a ver como as coisas se resolvem, e não, de facto, preocupados em oferecer qualquer garantia de segurança”.