Em 10 de fevereiro de 2007, a cidade de Munique acolhia a 43ª Conferência de Política de Segurança. O discurso de meia hora que o Presidente Vladimir Putin ali fez serviu para lançar as fundações da Rússia tal como ele pretendia que fosse doravante olhada. A ideia nuclear rejeitava a ordem europeia que muitos naquela audiência tinham passado anos a construir. Do púlpito do Bayerischer Hof para o mundo, Putin acusou os Estados Unidos de criar um mundo unipolar “no qual só há um mestre e um soberano”, o que acaba “por ser pernicioso”, acrescentou.
Putin chamou aos Estados Unidos “um domínio monopolizador das relações globais” e criticou o seu “quase incontido hiper uso da força nas relações internacionais”.
No discurso, que ficou conhecido principalmente na Rússia como o Discurso de Munique, Putin declarou que o resultado da dominação americana era “ninguém se sentir seguro, porque ninguém pode sentir que a lei internacional é como uma parede sólida que os protege. E claro que tal política estimula uma corrida às armas”.
Naquele discurso, o Presidente russo aproveitou para citar o discurso que Manfred Wörner (político e diplomata alemão, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e secretário-geral da NATO de 1988 a 1994) fizera em 1990 para apoiar a sua própria argumentação, no qual a aliança Atlântica tomava o compromisso de prometer não expandir para novos países da Europa de Leste.
“O discurso de Putin em 2007 foi recebido com choque por todos aqueles que tinham investido um esforço substancial para trabalhar com a Rússia incluindo-a no sistema de estabilidade global do pós-Guerra Fria – e que, na altura, ainda acreditavam que isso fosse possível. Uma década e meia depois, a maciça operação militar russa em torno da Ucrânia pode estalar a qualquer momento. Não devemos ficar agora surpreendidos nem confusos. Já em 2007 ele deixou as suas intenções bem claras”, lê-se num artigo de opinião publicado no “Politico” em 18 de fevereiro último.
“Putin mostrou hoje como realmente pensa, mas não pensa assim há uma semana. Pensa há muito tempo”, diz Miguel Monjardino ao Expresso esta terça-feira, justificando o tom do último discurso do líder russo, para quem a ordem regional de segurança e defesa em que nos habituámos a viver nos últimos 30 anos é inaceitável”, defende o professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e também colunista do Expresso.
Após a conferência de Munique viveram-se meses de tensão e subida de tom da retórica entre os dois lados do Atlântico ainda que se recusasse voltar a usar os termos de uma nova guerra fria.
De igual modo, alguns voltaram agora a um o ensaio escrito por Vladimir Putin no último verão, “Sobre a Unidade Histórica dos Russos e dos Ucranianos”. À semelhança do discurso feito esta segunda-feira, “abundam nesse ensaio emoções como o medo, a zanga, a fúria, e uma visão muito paranóica das relações internacionais”, compara Monjardino.
“Quando me perguntaram pelas relações russo-ucranianas, eu disse que os russos e os ucranianos são um povo – um único povo. Estas palavras não se devem a considerações de curto prazo nem pelo contexto político atual”, escreveu Putin em julho de 2021. “Foi o que eu disse em numerosas ocasiões e é aquilo em que acredito firmemente”. Para Putin, russos, ucranianos e bielorrussos são todos descendentes da Antiga Rus, “que era o maior Estado na Europa”.
História serve de alimento e argumento para o Presidente russo
A História é alimento e argumento para a reflexão do Presidente russo que, no fim, resume a questão da atualidade, ou seja, dos últimos 30 anos: “Gostaria de começar por enfatizar que a parede que emergiu nos anos recentes entre a Rússia e a Ucrânia, entre as partes do que é essencialmente o mesmo espaço histórico e espiritual, na minha opinião é a nossa maior desgraça e tragédia. Estas são, antes de mais, as consequências dos nosso erros de períodos diferentes de tempo. Mas são também o resultado de esforços deliberados pelas forças que procuraram minar a nossa unidade. A fórmula que aplicam é conhecida de todos os tempos: dividir e reinar. Não há nada de novo. Daí as tentativas de jogar com a ‘questão nacional’ e semear a discórdia entre as pessoas, sendo o objetivo primeiro dividir e depois virar as partes e as pessoas umas contra as outras”.
Putin tornou-se Presidente em 2000, altura em que declarou a sua intenção de restabelecer a grandeza da Rússia.
“O que é mais surpreendente”, insiste o artigo do Politico, é “como os Estados Unidos e a Europa, apesar do aviso óbvio em Munique e das muitas ações da Rússia ao longo de 15 anos, se agarraram ainda à noção de que podemos de algum modo trabalhar juntos com a Rússia de Putin a nível estratégico”.
O artigo defende ser finalmente tempo de o Ocidente encarar os factos. “Quer Putin lance ou não uma nova grande invasão à Ucrânia, ele rejeitou a arquitetura de segurança europeia do pós-guerra e insiste nisso”. Putin está num deliberado e dedicado “caminho para construir uma Rússia maior, um império no lugar onde antes estiveram os soviéticos”.
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