4 julho 2014 21:34

Houve ali algo de Forrest Gump
foto reuters
Se de facto certas pessoas são maiores do que a vida, Louis Silvie Zamperini, agora morto aos 97 anos, sem dúvida foi uma delas. Sobreviveu ao impossível, viveu mais que o possível. Zamperini só houve um.
4 julho 2014 21:34
Às vezes custava acreditar que o homem um dia havia de partir. Próximo dos sessenta, fazia rappel. Aos setenta descobriu o stake, que não largou durante mais de uma década. Ainda correria com o facho na abertura de vários Jogos Olímpicos. E pensar que era uma criança frágil, cujos pais tiveram de mudar a família para a Califórnia devido a ele e o irmão terem asma.
Obviamente, os ares da Costa Leste fizeram-lhe bem, mas não foi só isso. Também houve sorte, muita sorte. Começou aos dois anos, quando Zamperini sobreviveu à justa a um incêndio, e continuou logo a seguir quando escapou a um atropelamento que atingiu um amigo. As provas maiores, no entanto, ainda estavam para vir.
Há pessoas que ficam famosas por se verem envolvidas numa situação limite, à qual sobrevivem por milagre ou por uma capacidade de resistência absolutamente excecional. Isso aconteceu com Zamperini não uma vez, mas duas. A primeira foi quando o avião que pilotava caiu no oceano e ele e mais dois colegas tiveram de aguentar numa pequena balsa durante 47 dias. A segunda foi nos dois anos seguintes, durante o seu tempo como prisioneiro de guerra no Japão. Se uma experiência lhe revelou os limites da sua própria resistência física, a outra mostrou-lhe o que pode fazer o sadismo num contexto de poder quase ilimitado.
A julgar pelos efeitos, a segunda experiência foi a mais difícil, e depois da guerra Zamperini embarcou na proverbial viagem de autodestruição, que só terminou com a decisão definitiva de mudar a sua vida - decisão que ecoou outra, tomada na adolescência, quando seguia um caminho que o teria rapidamente levado a uma vida de marginal. Digamos que a evolução deste católico de origem, posteriormente (re)convertido pelo evangélico Billy Graham, gerou uma história inesperada.
O atletismo salva
Louis Silvie Zamperini nasceu a 26 de Janeiro de 1917 em Ocean, no estado de Nova Iorque. O pai, italiano de Verona, trabalhara como jardineiro para um oficial americano. Emigrara para os EUA e aí conhecera a sua futura mulher, uma austro-italiana. Louis foi o segundo de quatro filhos. Antes houve Pete - seu maior amigo ao longo de toda a vida - e depois chegaram mais duas irmãs. Tendo progredido de mineiro até eletricista graças a estudos feitos por conta própria, o pai passara a ganhar um pouco mais. Dos filhos esperava alguma contribuição, mas sobretudo que estudassem e não dessem problemas. Ora dar problemas era justamente o que Louis fazia.
As inquietações começaram quase logo que a família se mudou para Torrance, na Califórnia. O miúdo antes frágil e doente parecia ter desenvolvido uma urgência de compensar. Mesmo bebé, sempre manifestara inclinação para desatar a correr à mínima oportunidade. Agora corria com um propósito: fugir. Estava sempre a fazer traquinices e com o tempo estas tornaram-se sérias. Entrar em casa de um vizinho para roubar o jantar já preparado na cozinha não era nada que lhe repugnasse. Nem assaltar lojas, roubar cobre, pôr gordura nos carris do elétrico ou furar pneus.
A par com os roubos e outros vandalismos, havia as brigas. Inicialmente, o pai ensinara-lhe boxe para que se pudesse defender na escola. Os italianos eram vítima dos preconceitos e Louis sofria daquilo que hoje chamaríamos 'bullying' escolar, em versão dura. A partir do momento em que acertou o primeiro murro numa cara alheia, tudo mudou. Ver o lábio em sangue e os dentes partidos do outro rapaz foi inebriante. Tomou-lhe o gosto e passou a provocar esse género de situação, por vezes com gente indefesa a quem fazia tão vítima como ele próprio tinha sido.
A família desesperava. Mas quando tentavam controlá-lo, ia embora. Antes dos quinze anos já tinha andado de cidade em cidade, vivido debaixo de pontes e em vagões de comboios. Após dissabores vários, regressava sempre a casa. Mas entrara numa lógica perigosa, e aparentemente irreversível. Foi então que o irmão, sempre protetor, teve a ideia de o meter no atletismo. Afinal, se havia alguma coisa que ele fazia bem, era correr depressa. Já o pai fora desportista e o próprio Pete era um ávido corredor. Porque não aproveitar?
Contra as expectativas, resultou. O que salvou Louie de uma vida profissional como ladrão foi ter uma qualidade que, justamente, é das mais úteis nesse ramo.
A queda de avião
Nas primeiras vezes que foi treinar, não gostou. Ficou-lhe a doer o corpo e jurou para nunca mais. Mas na semana seguinte convenceram-no a tentar novamente. E novamente detestou. Mas um dia, durante uma prova entre escolas, ouviu alguém aplaudir o seu nome numa bancada. Não foi preciso mais nada. De repente, percebeu que havia uma forma positiva de obter a atenção que queria. Nessa noite, deitado na sua cama, resolveu que se ia realmente dedicar à corrida. Persegui-la-ia com o mesmo nível de obsessão com que tinha explorado as suas outras obsessões até essa altura.
O seu progresso ficou na história do atletismo. Uma série de vitórias em corridas escolares e interescolares - nos últimos anos de liceu, Zamperini não perdeu uma única - culminaram em 1936, quando se qualificou para os Jogos Olímpicos. Esse ano foi a célebre edição em Berlim e Zamperini era o mais novo dos atletas americanos. Durante a viagem transatlântica, e devido a toda a comida gratuita que havia a bordo, engordou seis quilos, que depois teve de perder. Em Berlim, não foi coroado com uma medalha: ficou em oitavo na corrida final dos cinco mil metros. Mas a sua rapidez durante a volta final foi bastante notada e o Fuhrer fez questão de o conhecer.
Em 1939 começou a II Guerra Mundial. Dois anos depois, após Pearl Harbour, os Estados Unidos entraram oficialmente na guerra. Zamperini alistou-se e foi treinado como piloto. Entre 42 e 43, conduziu missões em vários pontos do Pacífico. A 27 de Maio de 43, quando procuravam um camarada desaparecido, ele e mais dez caíram no oceano. Zamperini começou a ser arrastado para o fundo. Esgueirando-se por uma janela, inflacionou o colete de salvação e foi levado à superfície. Quando emergiu no meio de uma cena de destroços, viu o seu piloto, Phil, de cuja testa jorrava sangue, e um artilheiro chamado Mac. Seriam os seus companheiros durante as semanas seguintes.
Alimentando-se de peixe cru e albatrozes, tentando aproveitar cada minuto de chuva que caía perto deles, e mantendo uma disciplina mental rigorosa - em grande parte instilada por Zamperini, que ia ao ponto de fazer menus detalhados, totalmente imaginários, para as três refeições principais do dia -, os homens foram aguentando. Mac, menos preparado fisicamente, morreu ao 33º dia. Os seus companheiros sobreviveram até serem apanhados pelos japoneses, quando se aproximavam de uma ilha.
Desaparecido em combate
As experiências de Zamperini como prisioneiro de guerra seriam idênticas às de muitos outros. O único elemento excepcional, se tal o podemos considerar, foi a presença de um comandante de campo chamado Mutsuhito Watanabe, conhecido pela alcunha "Pássaro", cuja brutalidade era lendária. Aos constantes espancamentos que eram norma nesses campos, ele juntava um sadismo peculiar, alimentado por uma quase esquizofrenia que o fazia pôr-se a consolar um preso em tom suave e no momento seguinte começar a desancá-lo com os punhos ou com uma catana.
Também aqui a força mental de Zamperini lhe serviu. Depois da guerra, vários homens que o tinham acompanhado nos campos contaram como ele os ajudou, alimentando-lhes a imaginação e o ânimo. Mas mesmo ele sentia-se muitas vezes derrotado pelo desespero. Aliás, como a generalidade dos seus camaradas, julgava que não ia escapar vivo. Os japoneses desprezavam os soldados que se rendiam em lugar de cometer suicídio e era previsível que os executassem quando percebessem que tinham perdido a guerra.
Por acaso, não aconteceu assim. Após Hiroshima e Nagasaki e a rendição japonesa, os presos foram libertados. Mas Zamperini encontrava-se em muito mau estado, e não só fisicamente. A princípio tudo foram festas. Mas quando percebeu que as sequelas da prisão o impediriam de voltar a competir como atleta, caiu em depressão e numa boémia desregrada. A mulher com que entretanto casara resolveu divorciar-se, mas antes levou-o a uma sessão pública com Billy Graham. E então operou-se o milagre. Zamperini decidiu uma vez mais mudar de vida e não olhou para trás.
Anos depois, abriu o seu próprio projeto de assistência a jovens delinquentes. Com uma mistura de campismo, desporto e instrução vocacional - mais as histórias pessoais que Zamperini contava aos miúdos sentados à noite em volta de uma fogueira -, muitos seriam reencaminhados para vidas úteis e realizadas. De tudo o que fizera e ainda viria a fazer, esse projecto, o Victory Boys Camp, aberto em 1954, é a obra de que mais se orgulhou.
Quanto ao facto de ter ao longo dos anos visitado todos os seus antigos carcereiros que conseguiu encontrar para lhes dizer que lhes perdoava (só Watanabe recusou recebê-lo), foi apenas uma questão de saúde. Ou, se quisermos, de sobrevivência. O ódio estava a consumi-lo e a vida ainda tinha muito para lhe dar.
Em 2010, Angelina Jolie fez um filme sobre Louie, com estreia prevista para breve. Zamperini morreu em Los Angeles, de pneumonia, aos 97 anos. Ainda tivera tempo de ver - e aprovar - algumas cenas que a realizadora lhe mostrou.