Dois anos de guerra na Ucrânia

“Ao fim de dois anos de guerra, todos nós morremos em parte”. Uma crónica do escritor ucraniano Andriy Lyubka para o Expresso

“Ao fim de dois anos de guerra, todos nós morremos em parte”. Uma crónica do escritor ucraniano Andriy Lyubka para o Expresso
ALINA SMUTKO/Reuters
Andriy Lyubka tem 36 anos. É poeta, escritor e ensaísta. Começou a publicar muito cedo, em 2007, com “Oito Meses de Esquizofrenia”, o seu primeiro livro de poemas. Em 2009 escreveu “O Terrorismo”, em em 2012, “40 Dólares Mais Gorjetas” e “O Assassino”, uma coletânea de contos. O seu primeiro romance, “Karbid”, ficou entre os cinco melhores livros de 2015 da BBC Ucrânia e a tradução polaca esteve na lista de finalistas para o prémio literário Angelus, que distingue obras de autores da Europa Central. Recentemente, recebeu o prémio literário da Fundação Kovalev (EUA) e o Prémio Sheveliov para o melhor livro de ensaios de 2017 na Ucrânia. Neste texto para o Expresso fala de dois anos de sufoco pessoal e coletivo. Diz que já não escreve romances porque “o turbilhão de histórias fazem a ficção capitular perante a realidade”. O Expresso publica uma série de artigos sobre os dois anos de guerra na Ucrânia: análises, história, testemunhos e reportagens para entender o conflito

Andriy Lyubka (escritor), Oleksandra Boychenko (tradução)

E onde estavam vocês naquela manhã, quando começou a grande guerra?

Eis a minha história: a guerra falou-me através de estrondos de explosões distantes para lá das janelas, mas não acreditei logo, crendo estar ainda a morar no sono. E então, no segundo andar do apartamento de amigos meus, nos arredores de Kyiv, ouviu-se o bater de uma porta e o ruído de chinelos a descer as escadas.

“Começou a guerra, fecharam o espaço aéreo”, disse Katya, a dona da casa. Falou-me do espaço aéreo porque sabia que eu teria de partir para Vilnius naquela manhã, para uma apresentação da tradução de um livro meu. Arrancada ao sono, a sua voz parecia áspera e máscula, rouca, de fumadora. Também soava assim o terror animal. Um cão enorme estava na cozinha, junto à janela, e observava o céu escuro, ladrando, assustado, ao ouvir o som de mísseis e aviões de guerra.

Nastya Telikova (D.R.)

Todos os ucranianos se lembrarão para sempre da manhã escura de 24 de fevereiro de 2022, quando começou a invasão em larga escala. Uns acordaram com as explosões, outros com as chamadas preocupadas dos mais próximos – mas toda a gente se recorda desse segundo até ao mais ínfimo detalhe. Será a memória que atravessará toda a nossa vida. A comunhão desta mesma experiência não nos torna apenas um único povo, mas também uma comunidade mais próxima e íntima. Algo semelhante a uma família, que viveu aquele instante junta.

Depois disso, houve mais momentos, ansiedade e lágrimas, dor e raiva, mas aqueles primeiros segundos fazem-me lembrar um filme em câmara lenta. Lembro-me de todos os pormenores à minha volta: a temperatura do ar, os copos na mesa depois das bebidas de ontem, o ponteiro do relógio por cima da porta, o cheiro do cão na sala, os azulejos frios do chão. Foi o momento mais importante da minha vida, depois do qual tudo correu mal e todos os meus planos foram por água abaixo. Talvez me lembre de forma igualmente pungente e profunda do momento em que vou ouvir que a guerra acabou. Se eu sobreviver para ver esse momento, claro.

Desde então, passaram dois anos terríveis. O que mudou em nós e à nossa volta? A mudança mais importante é que estamos habituados à guerra, que faz parte das nossas vidas, da nossa rotina diária. É a mudança mais terrível, porque nos habituámos a algo completamente anormal, terrível, aprendemos a viver sem lhe prestar atenção.

Ana Baiao

Agora, quando a sirene de ataque aéreo soa em Kyiv*, quase ninguém se apressa a procurar o abrigo mais próximo. As pessoas continuam a fazer o seu trabalho habitual sem pressa. A morte adquiriu as características de uma tragédia grega, é agora governada pelo destino, e temos pouca ou nenhuma influência sobre ela. Pode acontecer que um míssil atinja a vossa casa hoje, caia sobre o café onde pedimos um cappuccino, destrua a estação de comboios onde nos encontramos com amigos. É quase impossível defendermo-nos contra isso, por isso temos de o aceitar como possibilidade diária. Que seja feita a vontade de Deus, dizemos nós, ateus.

Há muita morte à volta. Na primavera de 2022, quando os primeiros caixões dos soldados mortos na frente foram trazidos para a minha cidade, cada morte foi sentida como um luto pessoal. Quando o carro funerário passava pelas ruas, as pessoas ajoelhavam-se nos passeios, as flores cobriam o pavimento e as multidões juntavam-se para o funeral. Agora, o cemitério municipal tem um sector inteiro de sepulturas de guerra, com uma bandeira ucraniana hasteada sobre cada uma delas.

O caixão é acompanhado por familiares, colegas da vida civil e camaradas da linha da frente; normalmente, é um cortejo pequeno. Nas ruas, as pessoas param para prestar homenagem, mas já não choram nem se ajoelham. Em geral, sentem-se mais à vontade para desviar o olhar ou correr para a loja mais próxima para evitar um encontro pessoal com a morte de um homem que pagou com a sua vida pelo nosso direito de viver numa retaguarda relativamente pacífica.

Ana Baiao

Não se apressem a condenar estas pessoas. Elas não são cínicas nem estão empedernidas. Houve tanta morte, dor e luto nos últimos dois anos, tantas as lágrimas que foram choradas, as emoções desvaneceram-se, e o choque de cada nova notícia trágica ainda paralisa, mas passa depressa. Temos de reunir as nossas forças e seguir em frente. É fácil enlouquecer com as emoções e experiências avassaladoras e, por vezes, parece-me que todos enlouquecemos coletivamente.

Não estou a exagerar, acreditem. Eis duas notícias desta manhã. Em Kharkiv, uma família inteira, pais e três filhos, foi morta por um bombardeamento russo. Os russos atacaram um depósito de petróleo e, após a explosão, o combustível derramou-se, escorrendo pela rua e incendiando dezenas de casas. Foi um verdadeiro inferno na terra: as pessoas foram queimadas vivas. Um pai e um filho no corredor a tentar fugir. Uma mãe e dois filhos na casa de banho. O filho mais novo, Pavlo, tinha 7 meses e a mãe segurava-o ao peito. O bebé ficou tão queimado no incêndio que até os ossos desapareceram – só restavam as cinzas.

É possível não enlouquecer depois de uma realidade destas? E será que enlouqueci mesmo se o meu primeiro pensamento foi: seria melhor se fosse um míssil, para que todos morressem instantaneamente, porque assim todos sentiram medo e dor no fogo?

A segunda notícia é a de que um soldado ucraniano, acabado de regressar do cativeiro russo em dia 31 de janeiro, onde fora mantido sob humilhação e torturas durante dois anos. Foi atropelado por um camião num cruzamento, a 8 de fevereiro. Depois de ter sido libertado do cativeiro, nem sequer teve tempo de ver a filha, Valeria Halkina, que mora como refugiada em Lisboa. Ela escreveu no Instagram: “Hoje o meu pai faleceu. Não foi morto pela guerra, nem por uma bala, nem por 2 anos de cativeiro. Estava a atravessar a estrada e foi atropelado por um camião. Isto é surreal. Não acredito que seja real. Peço desculpa por tudo. Estava à espera do teu telefonema, como me prometeste, mas não posso esperar mais…”

Serviços de socorro num local que foi alvo de ataque pelas forças russas, em Kharkiv, a 10 de fevereiro de 2024.
EPA / YAKIV LIASHENKO

Estas não são as histórias mais impressionantes da guerra, são apenas duas notícias desta manhã. É assim que tem sido a vida quotidiana durante dois anos seguidos, 730 manhãs seguidas. Todos os dias morrem civis: pessoas indefesas, inocentes, completamente comuns, que a Rússia mata no supermercado, na rua, nas suas próprias casas.

Mas não são apenas os civis que morrem ao acaso. A Rússia mata os nossos militares todos os dias. O mundo aceitou a ideia de que as mortes de militares são normais, são as estatísticas da guerra. Ora, os militares não são pessoas? Podem simplesmente ser mortos por alguém que invadiu o nosso país? Quem decidiu que matar militares não é crime?

O exército ucraniano é constituído maioritariamente por civis, pessoas que foram defender o seu país voluntariamente ou que foram mobilizadas como parte do recrutamento. Antes da invasão, não tinham formação militar e trabalharam como gestores em escritórios, motoristas de autocarros urbanos, rodavam a massa das pizas em restaurantes da moda. Pessoas como vocês.

O meu amigo Maksym Plesha, 32 anos, artista, hippie, um homem livre. Pintava retratos de pessoas nas ruas e restaurava quadros em igrejas para ganhar a vida. Ofereceu-se como voluntário para a guerra, apesar de não ter tido qualquer experiência militar na vida. Foi ferido duas vezes e, no inverno passado, sobreviveu às batalhas de Bakhmut. Depois dos ferimentos, brincámos com ele, dizendo que tinha nove vidas, como um gato.

Essas vidas extra salvaram-no mais do que uma vez, mas quando a guerra dura todos os dias durante dois anos seguidos, mesmo nove vidas não são suficientes para sobreviver. Maksym morreu no ano passado e o corpo dele – era um homem bonito – foi levado para o funeral num caixão fechado, porque estava muito mutilado. Matar um soldado destes é ou não é crime?

E agora vamos responder juntos a uma pergunta que me fazem muitas vezes em diferentes países: “Escreve ficção agora?” A resposta é óbvia.

Um soldado numa trincheira perto da linha da frente a sul
Ana Baiao

Todos os dias vivemos num turbilhão de histórias que fazem a ficção capitular perante a realidade. Nem um único romance pode competir com o fluxo de histórias quotidianas da vida dos ucranianos comuns. Não escrevo nada de ficção e, atualmente, não penso na literatura como algo imaginário, desligado da vida.

Porque a única função da literatura ucraniana hoje é ser testemunha, descrever destinos, registar crimes. Quando escrevi sobre Maksym, a sua família agradeceu-me por manter a sua memória viva um pouco mais e permitir que mais pessoas conhecessem a sua vida. A literatura torna-se uma espécie de psicoterapia, ajuda a sobreviver às maiores perdas, dando-nos esperança de que tudo isto não é em vão, de que seremos ouvidos.

Não são palavras vãs: durante a guerra, perante uma profunda crise económica, a circulação de livros ucranianos duplicou e o negócio do livro continuou a ser um dos poucos rentáveis no país. É um paradoxo, mas só à primeira vista: numa época de turbulência e incerteza, as pessoas precisam de livros, e a procura aumentou, porque livros são sobre pessoas, sobre o humano e o íntimo.

Ser escritor, nesta altura, é simultaneamente honroso e extremamente difícil, porque a literatura de hoje não entretém, mas ajuda e salva. Embora também represente um certo perigo: se tiverem uma grande biblioteca de papel no vosso apartamento, a vossa casa arderá muito mais depressa do que outras durante um ataque de mísseis, e os bombeiros poderão não conseguir lá chegar a tempo.

Mas isso não pode ser previsto e, ao longo dos dois anos de guerra, aprendemos, como já referi, a confiar no destino. Estamos habituados às mortes à nossa volta e aceitámos a ideia da nossa própria morte súbita. Já não reagimos tão fortemente a notícias terríveis, a nossa pele emocional tornou-se mais espessa. Ou foi-se extinguindo gradualmente, porque a cada dia de horror em que as nossas vidas se transformavam, estávamos todos a morrer lentamente. O humano, o normal em nós, estava a morrer. Todos se tornaram vítimas da guerra, tanto os que foram mortos por ela como os que tiveram a sorte (até agora) de sobreviver.

Durante dois anos, habituámo-nos à guerra e às tragédias, começámos a considerá-las como um novo normal, a vida quotidiana. E isso é o pior de tudo.

*O escritor solicitou que a grafia de “Kyiv” se mantivesse como se escreve na Ucrânia

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