O ministro russo dos Negócios Estrangeiros acusa o Ocidente de não estar interessado nas negociações de paz e sugere que quem está assustado com uma eventual guerra nuclear deve preocupar-se com os seus líderes. Em entrevista ao correspondente da RTP em Moscovo, Serguei Lavrov repetiu a retórica que tem vindo a ser utilizada pelo Kremlin para justificar a invasão da Ucrânia e disse que o massacre de Bucha foi “uma das encenações mais cínicas que conhecemos”.
Ao longo dos 50 minutos da entrevista, transmitida esta sexta-feira, o chefe da diplomacia russa repisou algumas das ideias há muito consolidadas na linha oficial de Moscovo. “Não fechamos as portas ao Ocidente. São eles que procuram isolar-se de nós”, acusou, descrevendo o Presidente da Ucrânia como “uma figura que não tem a mínima autonomia”. “Dizem-lhe o que deve fazer, traçam-lhe uma linha de conduta e, seguindo essa linha, ele, claro, improvisa, dependendo do estado das coisas em cada dia concreto. De facto, não faz sentido conversar com ele”, afirmou, referindo-se a Volodymyr Zelensky.
E, de resto, “a fórmula de paz” do Presidente ucraniano é “amplamente conhecida”, desdobrando-se em três momentos: a capitulação da Rússia, a sua punição e a obtenção de reparações por parte da Ucrânia. “Só depois poderiam seguir-se negociações e entendimentos de paz”, referiu Lavrov. Mas o Presidente dos EUA também “não tem mostrado interesse” nas negociações, disse, acusando a Administração Biden de ter recusado acordo por considerar “precoce parar com as ações de guerra”. De novo, a insistência: “não fomos nós que desistimos das negociações”, exemplificando com o entendimento a que Moscovo e Kiev chegaram no mês seguinte à invasão – portanto, em março do ano passado – mas que “Washington e Londres proibiram Zelensky de aceitar”.
As justificações para a guerra, o falhanço do espaço “de Lisboa a Vladivostok” e o medo nuclear
Lavrov descreveu o massacre de Bucha, onde morreram mais de três centenas de pessoas, como “uma das encenações mais cínicas que conhecemos”. Foi, aliás, “um episódio aproveitado para desistir da assinatura dos entendimentos de paz com a Rússia”, sustentou. Mais: “A operação militar especial foi um passo absolutamente justo, sem alternativas e dado para defender a nossa segurança, as pessoas que habitavam desde há séculos naqueles territórios e que o regime de Kiev tentou privar do direito ao seu idioma, à sua religião, à sua cultura, aos seus valores. Foi a nossa forma justa de reagir às atitudes nojentas dos neonazis instalados em Kiev, com o apoio dos EUA.” E, além disso, seguiu-se “a longos anos em que tentámos esclarecer o Ocidente que a mentira sobre a não-ampliação da NATO para o leste iria acabar mal”.
No início da entrevista, o ministro reconheceu o falhanço do projeto de um espaço comum de Lisboa a Vladivostok, idealizado após o fim da Guerra Fria. “Voltando à época em que se proclamavam objetivos de um espaço económico e social comum, espaço de segurança do Atlântico ao Pacífico, é curioso notar que a última vez que esses nobres objetivos foram referidos foi no contexto da assinatura dos acordos de Minsk”, disse. Para, logo de seguida, sentenciar: “O Ocidente não pode gozar mais da nossa confiança nem na área de segurança nem noutras áreas, que se tornaram elementos de chantagem.”
Quando os responsáveis da União Europeia (UE) e da NATO “ameaçam, diária e repetidamente pelo mundo inteiro, derrotar estrategicamente a Rússia, um país nuclear, convém que os vossos telespectadores tenham em conta essa questão”, sublinhou – “para distribuírem de forma equiparada os receios que têm”. “Eles”, prosseguiu, em referência a quem se mostra assustado, “têm de recear mais pelos seus próprios governos”. “A UE e a NATO alinham todos numa fileira e todos, como se tivessem corda dada, afirmam o mesmo: ‘Não podemos admitir que a Ucrânia perca. A única saída desta situação passa pela derrota estratégica da Rússia.’”
Os “problemas existenciais” com o Ocidente, o grupo Wagner em África e o “mundo multipolar”
A dada altura, o correspondente da RTP disse não conseguir imaginar como seria possível “eliminar fisicamente um país com 11 fusos horários e com 146 milhões de habitantes”. E perguntou a Lavrov “que ideia tem sobre a solução dos problemas existenciais entre a Rússia e o Ocidente, numa perspetiva do pós-guerra, seja ela qual for”. “Em relação à sua opinião particular, de que não imagina como se pode eliminar a Rússia... É uma afirmação razoável. Nós não estamos a procurar confrontos. Mas nunca nos deixaremos ofender”, respondeu o chefe da diplomacia russa. Questionado sobre se não descarta, então, uma solução militar, Lavrov afirmou: “Estamos a tratar, de momento, de uma solução militar para o problema que se chama guerra do Ocidente contra a Federação Russa, com o aproveitamento da Ucrânia como material dispensável, cujos soldados recebem injeções de drogas para não sentirem a dor, antes de serem puxados como gado para a linha da frente.”
E qual será o destino das forças do grupo de mercenários Wagner presentes em países africanos? “Depende das atitudes dos governos” que convidaram o grupo para os seus países, “acordando com ele as respetivas condições”, disse Lavrov. “Essas condições foram acordadas sem a participação das autoridades da Rússia. O Estado russo mantém as suas próprias relações com muitos estados de África no âmbito da cooperação militar e técnica. As condições em que governos de países africanos firmaram acordos de cooperação com o grupo Wagner não são da nossa competência”, acrescentou.
O governante viria ainda a referir-se a um “mundo multipolar” que se está a construir “de forma objetiva”, sendo disso exemplo países com a China, a Índia e o Brasil, mas também a Turquia, a Indonésia e “alguns países africanos que pretendem aproveitar os recursos que Deus deu a esse continente”. Este processo de mudança também se reflete nas estatísticas, destacou, notando que “o PIB do G7 já é inferior ao dos BRICS [de que a Rússia faz parte]” e que “a China já atingiu a liderança em vários parâmetros de desenvolvimento e a tendência é tornar-se imparável”.
No final da entrevista, Lavrov sugeriu: “Não assuste os seus telespectadores. Ou, então, assuste com os líderes ocidentais, não com os russos.”