Guerra na Ucrânia

Mandado de detenção torna Putin um "pária internacional", mas é mais provável que venha a ser julgado pelos tribunais russos

Vladimir Putin
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A transferência ilegal de crianças ucranianas para a Rússia motivou o mandado de detenção do Tribunal Penal Internacional dirigido ao Presidente russo. Mas o que significa a decisão na prática? Que jurisdição tem a instituição de Haia para aplicar a medida de coação?

Quatro visitas do procurador Karim Khan, durante o ano passado, levaram o Tribunal Penal Internacional (TPI) a concluir que “há motivos razoáveis ​​para acreditar que Putin tem responsabilidade criminal individual” pela deportação de crianças ucranianas para a Rússia. A emissão de mandado de captura pelo TPI visa a comissária russa para os direitos da criança, Maria Alekseyevna Lvova-Belova, mas também Vladimir Putin, que se tem vindo a expressar sem pudor sobre a chegada de menores ucranianos a território russo.

Não é a primeira vez que a medida atinge um chefe de Estado. Em 2009, um mandado de detenção de Omar Hassan al-Bashir, antigo Presidente do Sudão, foi emitido pelo Tribunal Penal Internacional. “Ele esteve em funções por mais dez anos, e, durante esses dez anos, não houve a possiblidade de executar o mandado de detenção”, lembra Francisco Pereira Coutinho, professor na Nova School of Law e especialista em Direito Internacional. Durante aquele período, Omar Hassan al-Bashir chegou a partir em viagem para o estrangeiro, nomeadamente para países incluídos no Estatuto de Roma. “Esses Estados tinham a obrigação de executar esse mandado, mas surgiu uma questão jurídica muito complexa", refere o professor da Nova School of Law. "Se com o Sudão não foi possível, com a Rússia muito menos.” Há uma regra costumeira do direito internacional que reconhece a imunidade dos chefes de Estado. "A ideia fundamental é a de que o chefe de Estado representa a soberania do Estado, e, portanto, não pode ser julgado por outros Estados. Isso colocaria em causa a natureza soberana do próprio Estado." O TPI acabou, no entanto, por esclarecer que "esta ideia das imunidades não se aplica a um mandado de detenção internacional".

“Há alguma incerteza legal sobre se a imunidade que recai sobre Putin como chefe de Estado em exercício impediria a detenção ou transferência”, admite Yuval Shany, professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade Hebraica, em Israel. “No passado, o Tribunal criticou os partidos estatais que não conseguiram prender o Presidente do Sudão. Este novo caso é, no entanto, um pouco diferente, juridicamente falando, uma vez que os processos de Bashir foram respaldados por uma resolução do Conselho de Segurança que tem um peso especial no direito internacional, o que fica aqui a faltar.” Politicamente, o mandado de captura coloca Putin na posição de suspeito de crimes de guerra e de “fugitivo da justiça”, o que constitui um golpe significativo contra a sua posição internacional e contra a legitimidade diplomática, acrescenta Yuval Shandy.

A Rússia retirou a sua assinatura do Estatuto de Roma, num "gesto meramente simbólico que mostra que tem alguma hostilidade em relação ao Tribunal Penal Internacional", considera o analista Francisco Pereira Coutinho. Mas nem o facto de a Federação Russa ter deixado de ser signatária do Estatuto de Roma em 2016, alegando que não reconhecia a jurisdição do tribunal, é decisivo para a execução do mandado. De acordo com Jennifer Trahan, jurista do Centro de Assuntos Globais da Universidade de Nova Iorque e membro do grupo de trabalho que apoia o tribunal especial para os crimes de guerra na ONU, na prática, o que a medida implica é que “Putin não possa viajar para os 123 Estados integrantes do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, sem recear ser preso”. Em síntese, todos os 123 Estados em causa (grupo de que a Ucrânia também não faz parte) têm agora a obrigação de deter Putin, quando o chefe de Estado russo viajar para os seus territórios.

As limitações do Tribunal Penal Internacional

Francisco Pereira Coutinho acredita, contudo, que a "efetividade desta decisão será sempre muito diminuta". Apesar da relação errática dos Estados Unidos da América com aquele tribunal internacional - por preocupação de que venham a ser processados, como analisa o jornal “The New York Times” -, pela qual o Governo de George W. Bush foi o principal responsável, o juiz sul-africano Richard Goldstone, com vasta experiência com crimes de guerra, considera que o apoio dos EUA à iniciativa do TPI pode ser significativo. "Os EUA apoiam os processos por crimes de guerra contra Putin, bem como contra aqueles que colaboram com ele. Ficaria surpreso se não apoiassem as acusações apresentadas hoje, bem como a emissão de um mandado de detenção."

No entanto, Richard Goldstone admite as limitações do Tribunal Penal Internacional. "O crime de agressão não pode ser instaurado pelo TPI contra um país que não ratificou o Estatuto de Roma. A melhor maneira de o fazer seria através de um tribunal especial estabelecido, em conjunto, pela Ucrânia e pela Assembleia Geral das Nações Unidas."

Vladimir Putin e a comissária Maria Alekseyevna Lvova-Belova teriam de ser entregues ao órgão de justiça internacional para que fossem julgados pela instituição ou então detidos em viagem ao estrangeiro. Francisco Pereira Coutinho analisa que será, então, mais provável que Putin seja levado às barras dos tribunais russos. "O Presidente Omar Hassan al-Bashir foi julgado e está preso no Sudão. O Presidente Putin poderá vir a ser julgado um dia, mas quase de certeza nos tribunais russos, porque a jurisdição do Tribunal Penal Internacional é complementar; só é exercida se os tribunais nacionais não o fizerem. Sendo a Rússia uma superpotência e membro do Conselho de Segurança [da ONU], num dia em que se dê uma mudança de política, serão os tribunais russos os primeiros a querer julgar Putin. Provavelmente não o vão enviar para um julgamento de um tribunal internacional, porque ele terá cometido crimes também na Rússia."

O crime em causa

Para os três peritos, contudo, a emissão dos mandados de detenção transmite uma mensagem muito importante à comunidade internacional. A curto prazo, rotula Putin como um pária internacional”, ilustra Jennifer Trahan, que admite tratar-se de um momento “extremamente significativo” para o Estado de Direito, para a justiça internacional e para o Tribunal Penal Internacional. "O TPI defendeu a verdade e o Estado de Direito contra o poder instituído." Em teoria, a existência de um mandado de detenção poderá limitar a presença do chefe de Estado russo em fóruns internacionais, por exemplo. E é expectável que mais crimes - ainda por apurar - venham a motivar novas iniciativas semelhantes, reconhece a jurista Jennifer Trahan. "Acredito que mais mandados venham a surgir. A procuradoria do TPI precisa de ter evidências claras de um crime significativamente grave e evidências da ligação desses crimes com os seus autores. Sem dúvida avaliaram muitas cenas de crime. Isto é só o início. O escritório do procurador do TPI sente claramente que tem fortes evidências desses crimes e das evidências de ligação, por isso estava preparado para começar por estas acusações."

O tribunal adotou uma estratégia fragmentada que permite agir contra crimes distintos que considere suficientemente graves e em relação aos quais tenham sido reunidas provas suficientes para iniciar um processo. Yuval Shany aponta que a natureza pública da política de transferências e adoções ajudou o tribunal a reunir as provas necessárias rapidamente. “Também é possível que, com a rapidez do processo, o tribunal quisesse dissuadir a Rússia de continuar com a prática de deportação e adoção de crianças ucranianas.”

Os sequestros mencionados pelo tribunal de Haia visaram crianças retiradas de instituições estatais ucranianas nas áreas ocupadas (Kherson, Kharkiv, Zaporíjia, Donetsk e Luhansk, bem como uma pequena área da região de Mykolaiv). Trata-se de crianças enviadas pelos pais para “acampamentos de verão” administrados pelos russos dos quais nunca mais voltaram. São ainda visadas crianças cujos pais foram detidos pelas autoridades de ocupação russas e crianças que ficaram órfãs depois da grande invasão. A Rússia admitiu manter pelo menos 1400 crianças ucranianas que descreve como “órfãs”, mas, em flagrante contradição, também veiculou que pelo menos dois mil menores viajaram para a Rússia desacompanhados. Várias centenas de crianças dos territórios ocupados permanecem na Rússia depois de terem frequentado campos de “reeducação” com o consentimento dos pais, não tendo sido depois devolvidas.

Francisco Pereira Coutinho considera "muito importante" que o crime que tenha motivado o mandado de detenção tenha sido a deportação de crianças da Ucrânia para a Rússia, uma ação que tem sido amplamente promovida pela propaganda russa. "Isto é absolutamente crucial para perceber a origem do conflito. É muito simbólico que os mandados de detenção digam respeito a estes crimes de deportação de crianças, porque Putin, no discurso de Ano Novo, garantiu às famílias que iriam receber estas crianças." Para Francisco Pereira Coutinho, nesse ato oficial, ficou comprovado que a deportação de crianças ucranianas é agora "uma política pública russa deliberada que assenta na ideia de que esta é uma guerra de libertação, porque a existência do povo russo está em causa numa Ucrânia governada por nazis".

A ideia de que "é preciso salvar as crianças e deixá-las ser russas" é essencial para perceber a origem do conflito: a alegação de que a Ucrânia tem empreendido, nos últimos anos, “uma campanha de desrussificação da sociedade”, vinca o professor. “É um crime internacional, são crimes de guerra, e o tribunal fez muito bem em qualificá-lo desta maneira. Se os russos acham que o superior interesse da criança passa por deportá-las para a Rússia para educá-las como russas, esta decisão do tribunal mostra a total rejeição desse argumento identitário.”

A instituição de Haia transmite, assim, que atos desta natureza não podem ser aceites pela comunidade internacional. Com esta ação, o tribunal quis fazer com que a sua presença fosse sentida, de forma a dissuadir a prática de outros crimes e transmitir que ninguém - incluindo o titular do mais alto cargo político na Rússia - pode gozar de impunidade. Segundo Yuval Shany, “também pode haver uma mensagem indireta para os Estados que estão a pensar em estabelecer um novo tribunal, mostrando que o TPI pode chamar à responsabilidade todos os níveis mais altos do Governo”.

Jennifer Trahan saúda a decisão do TPI e diz manter a esperança de que Vladimir Putin não saia impune da guerra. “Este é um momento muito significativo para o campo da justiça internacional. Quanto a Putin ser levado a julgamento, eu diria ‘nunca diga nunca’. Em tempos, não parecia evidente que Slobodan Milosevic terminasse no Tribunal Jugoslavo em Haia, mas aconteceu. Da mesma forma, não se pensava que o antigo Presidente da Libéria, Charles Taylor, acabasse por ser detido na Serra Leoa e tivesse de responder perante o Tribunal Especial para o país, mas aconteceu.” Putin não deverá ser julgado num futuro próximo, mas poderá ser responsabilizado por 123 Estados (que integram o Estatuto de Roma do TPI). “Pode até haver Estados que não são membros do TPI que garantiriam a detenção”, sustenta a jurista.

Alguns casos da Jugoslávia, dos Tribunais do Ruanda, do Tribunal do Camboja, do Tribunal Especial da Serra Leoa e do TPI resultaram em penas de prisão, mas de autoridades hierarquicamente inferiores a um chefe de Estado. O tempo da “justiça” ainda pode chegar para Putin, e não só, garante Jennifer Trahan. “É verdade que Bashir ainda não está em Haia, mas agora que é um ex-chefe de Estado, as probabilidades de ir lá parar certamente aumentaram exponencialmente.”

Em última análise, em quase todos os casos, a prisão e a rendição seguiram-se à mudança de regime. “Discutíveis, os mandados de detenção internacionais podem desempenhar um papel às vezes importante no encorajamento da transição política”, salienta Yuval Shany.

Para Richard Goldstone, a solução mais viável continua a ser a criação de um tribunal especial internacional. Richard Goldstone. “O crime de agressão é o mais grave de todos os crimes de guerra e resulta na prática de todos os crimes de guerra reconhecidos pelo direito internacional. Seria enviar uma mensagem importante para a comunidade global. Existe precedente para a ONU em termos de parceria com um Governo para estabelecer um tribunal internacional. Foi feito para os casos do Camboja e Serra Leoa.”

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