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Guerra na Ucrânia

Depois de Kherson, caminho aberto para Zaporíjia e Crimeia? Ainda não é “o princípio do fim da guerra”, mas o “fim do princípio”

Depois de Kherson, caminho aberto para Zaporíjia e Crimeia? Ainda não é “o princípio do fim da guerra”, mas o “fim do princípio”

Zaporíjia e Crimeia são possibilidades na mira da contraofensiva ucraniana, depois da retomada de Kherson. A Ucrânia já recuperou 74 mil quilómetros quadrados, cerca de metade do território capturado pela Rússia desde 24 de fevereiro, mas os analistas ouvidos pelo Expresso acreditam que o fim à vista para o conflito, que Zelensky proclamou, é uma realidade mais distante

Depois de Kherson, caminho aberto para Zaporíjia e Crimeia? Ainda não é “o princípio do fim da guerra”, mas o “fim do princípio”

Jaime Figueiredo

Jornalista/Coordenador-Geral de Infografia

Ainda não é o “princípio do fim” da guerra, como anunciado pelo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. A retirada russa da cidade de Kherson terá implicações para o curso da guerra e ambos os lados querem dar os passos certos à conquista de território. O Instituto para o Estudo da Guerra [Institute for the Study of War] acredita agora que a Rússia se prepara para lançar uma nova ofensiva em Donetsk, reforçada pelos soldados retirados da parte ocidental de Kherson. Mas o que farão as Forças Armadas ucranianas?

Os analistas ouvidos pelo Expresso estão convencidos de que Zaporíjia estará no radar dos ucranianos. Já o Instituto para o Estudo da Guerra defende que a Ucrânia pode fazer conquistas na região de Luhansk, no leste ucraniano, com as tropas dispensadas de Kherson a auxiliarem a linha da frente. Os ucranianos terão uma tarefa logística difícil se quiserem estabelecer-se na margem leste do rio Dniepre.

O princípio do fim ou o fim do princípio?

Mark Cancian, antigo conselheiro do Departamento de Defesa norte-americano, lembra que a conquista em Kherson reforçou a motivação e auto-estima das tropas ucranianas. “Os ucranianos estão a ficar mais fortes ao longo do tempo, à medida que mais equipamentos são entregues e as tropas recebem treino militar. Embora as condições sejam difíceis, com o piso lamacento e a aproximação do inverno, os combates provavelmente continuarão a alto nível.”

É por isso também que o analista norte-americano em matéria de Defesa diz ser “improvável que este seja o começo do fim da guerra”, como proclamou Zelensky. “Os russos têm agora linhas mais defensáveis ​​e estão a receber tropas do processo de mobilização parcial. Serão, por isso, capazes de fixar uma forte defesa, e os avanços ucranianos serão lentos.”

Cedric Leighton, analista militar da CNN antigo responsável dos serviços secretos da Força Aérea norte-americana (onde trabalhou durante 26 anos), também não tem dúvidas de que a libertação de Kherson tenha sido “um marco importante na guerra”, podendo até marcar o início de uma nova fase no conflito. “Podemos esperar que o Presidente Zelensky esteja certo, mas podemos estar mais perto de alcançar o fim do início da guerra do que o fim da própria guerra”, argumenta o analista de riscos estratégicos.

Mas a Ucrânia já libertou cerca de 74 mil quilómetros quadrados desde o início da guerra, o que representa cerca de metade do território que os russos capturaram desde 24 de fevereiro. “A principal cidade libertada é Kherson, embora os ucranianos tenham também as ameaças que pairavam sobre Kiev e Kharkiv”, destaca Mark Cancian. “Se incluirmos o território conquistado pela Rússia a partir de 2014, a Ucrânia recuperou pouco mais de um terço do território que inicialmente perdeu para Moscovo”, aclara Cedric Leighton.

Para que frente é o caminho?

Há alguns fatores importantes que a Ucrânia deve considerar à medida que avança. De acordo com Cedric Leighton, as forças ucraninas “provavelmente terão de consolidar as conquistas recentes na parte oeste do rio Dniepre antes de avançarem com as operações na parte leste”. O caminho até à Crimeia - uma região de especial simbolismo para ucranianos e russos, por estar sob domínio dos pró-russos desde 2014 - ainda se apresenta cheio de obstáculos. “O largo rio Dniepre e o facto de que todas as principais pontes que o atravessam foram destruídas tornam as operações imediatas em direção à Crimeia muito difíceis de realizar", sustenta o antigo militar.

Outro aspecto que os militares ucranianos terão de considerar é o clima. “Se o inverno for relativamente ameno, será possível para os ucranianos seguirem em frente assim que estabeleçam pontos de travessia sobre o Dniepre. Se for um inverno frio, pode ser mais difícil para o avanço dos ucranianos.” Cedric Leighton antecipa que as forças russas tentem “escavar” e estabelecer posições defensivas a leste do rio. “No entanto, a qualidade das tropas russas é tão baixa que os russos podem não estar dispostos a lutar depois de perderem a cidade de Kherson. Se for esse o caso, a Ucrânia pode tentar tirar vantagens da situação e continuar a sua contraofensiva, mas acho que farão uma pausa antes disso.”

Antes da retirada dos russos, as autoridades ucranianas alertaram para a possibilidade de Moscovo transformar Kherson numa “cidade da morte”, o que, segundo o jornal “The Guardian”, tem vindo a confirmar-se. Na vila de Novoraisk, uma criança de 11 anos ficou ferida quando a família, de carro, passou por cima de uma mina alojada no solo. Os soldados russos transformaram toda a região num campo altamente minado. Fitas vermelhas circunscrevem muitas áreas, indicando que a cada dez metros, haverá um depósito de explosivos. Os esforços para retirar as minas podem demorar meses ou até anos. Especialistas ucranianos em desminagem alertam que, mesmo que a guerra terminasse amanhã, demorariam pelo menos uma década a erradicar a ameaça.

Se as áreas recém-libertadas de Kherson - particularmente a cidade - também ainda são vulneráveis ​​a ataques da artilharia russa e à ação de drones do lado leste do rio, os ucranianos farão mais movimentos no nordeste e no leste, conforme as oportunidades táticas se apresentem. O objetivo de longo prazo da Ucrânia é libertar todo o território que perdeu para a Rússia desde 2014, que inclui a Crimeia e as províncias orientais do Donbas, Luhansk e Donetsk. “Zaporíjia apresenta dificuldades semelhantes às enfrentadas em Kherson, com o fator adicional de ter a central nuclear na parte ocupada pela Rússia. Assim que acharem que estão prontos, espero que os ucranianos sigam em direção à fronteira da Crimeia.” Ali, diz Cedric Leighton, as tropas ucranianas tentarão eliminar qualquer ameaça de longo alcance aos seus portos marítimos ao longo do Mar Negro, particularmente Odessa. “Também vão querer recuperar todos os territórios que perderam a sul. Se fizerem isso, a posição russa será ainda mais fraca e os ucranianos ficarão mais perto de impedir o reabastecimento russo terrestre da Crimeia.”

Os ucranianos têm tropas suficientes para concentrar a ofensiva numa área, mas Mark Cancian não antevê, para já, progressos em direção à Crimeia. Os ucranianos terão de fazer escolhas e não dispersar esforços. “Os russos vêm atacando há meses na área do Donbas a sul de Bakhmut, mas com poucos progressos. Duvido que os ucranianos se concentrem lá. O meu palpite pessoal é de que atacarão na área de Zaporíjia, já que a região foi pouco defendida no passado. Nenhum dos lados tem tropas suficientes para equipar fortemente toda a linha de frente.”

O Instituto para o Estudo da Guerra afasta a possibilidade de um cessar-fogo ou de uma desaceleração das operações militares. Neste momento, a pausa no conflito funcionaria a favor de Vladimir Putin, já que os ucranianos têm aproveitado as oportunidades e o momento cujo ápice foi, até agora, a entrada em Kherson.

Da mesma forma pensa Cedric Leighton: “A Rússia continuará a tentar atacar infraestrutura ucraniana, especialmente centrais elétricas, estruturas de aquecimento e instalações de gestão de água, para tornar a vida o mais difícil possível para os civis ucranianos. Os russos também podem tentar aumentar os ciberataques, embora os ucranianos tenham lidado com eles de forma bastante eficaz até agora.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jdfigueiredo@expresso.impresa.pt

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