“Não é apenas uma questão de semântica”: guerra na Ucrânia ainda é uma “operação militar especial” e isto tem consequências
CLODAGH KILCOYNE/Reuters
Marina Miron, investigadora do King's College London e especializada em temas de Defesa e Segurança, observa, nesta entrevista com o Expresso, como é marcante esta fase do conflito na Ucrânia e reflete sobre a importância de distinguir uma guerra de uma “operação militar especial”. Declarar “guerra” poderá ser mesmo o último recurso a que Moscovo quererá recorrer
A anexação de territórios ucranianos pode ter sido um ponto de viragem no conflito na Ucrânia. Apesar de o processo ter sido ilegal e de não ter merecido o reconhecimento da comunidade internacional, para a Rússia é o pretexto certo para poder alegar que o território russo está a ser atacado pelas forças ucranianas. De acordo com Marina Miron, investigadora do King's College London nas áreas de Estudos de Defesa e Segurança, o conflito transita agora para uma escalada, passando de uma “operação militar especial” para uma operação antiterrorista.
A analista do Centro de Ética Militar da universidade londrina esclarece que não se trata de uma visão pró-russa da guerra, nem sequer de uma “questão de semântica”. Reduzir a guerra à escala de uma “operação militar especial” significa que a Rússia ainda não mobilizou os meios nem empreendeu os esforços que poderia reunir se o enquadramento legal fosse outro. Putin ainda tem muitas possibilidades, mas fala mais alto o medo de pronunciar a palavra ‘guerra’ perante um país que ainda se recorda do envolvimento da União Soviética no conflito afegão em 1979.
Nesta entrevista com o Expresso, Marina Miron admite que a Ucrânia venha a sentir-se desmoralizada com os crescentes ataques a infraestruturas do país, o que poderá quebrar o “moral” ucraniano e enfraquecer a contraofensiva iniciada em setembro.
O que muda a lei marcial nas regiões ucranianas anexadas pela Rússia? É uma mudança dramática que pode alterar os esforços de guerra? Temos de começar por falar dos fracassos. Desde o início da guerra, a Rússia calculou mal a dimensão do apoio militar dos países ocidentais à Ucrânia. Os russos têm de desimpedir território, porque neste momento estão numa posição defensiva. Há uma lógica inerente, que é a de salvar a situação. Nós, os académicos, temos sido acusados por usarmos o termo 'operação militar especial'. Muitas pessoas dizem que somos pró-Rússia por não falarmos em 'invasão'. E isso acontece porque há um significado legal, e tem um significado no sentido em que a limita em termos de alcance militar; não é uma guerra, e é por isso que tenho sempre usado o termo 'operação militar especial'. Não devemos confundir: não é apenas uma matéria de semântica. Reconhecemos a ilegitimidade das ações russas, mas o termo diz-nos algo sobre como as tropas são usadas no campo de batalha.
Com a anexação, depois de Putin 'perder' território, obviamente dá-se um grande momento de viragem. Anexar as regiões ucranianas colocou-as numa posição diferente, porque significa que os russos estarão a perder território para a Ucrânia. É uma grande mudança de paradigma dizer que as forças ucranianas estão em território que pertence à Rússia, e isso acontece no mesmo momento em que Moscovo designa um novo comandante militar, Sergei Surovikin, para supervisionar as operações. Toda a 'operação militar especial' tem sido criticada desde que a Rússia começou a 'perder' território.
“O que estão a dizer é: 'É o nosso território, queremos todas as pessoas fora para podermos, de uma forma ilimitada, defender linhas de defesa que os adversários estão a atacar.'”
Vimos a mobilização parcial a ser decidida praticamente ao mesmo tempo que a anexação e que a nova designação do líder militar que comanda as operações. Vimos também um aumento dos ataques fora do campo de batalha. O passo seguinte é evacuar esses territórios para passar de uma operação militar especial para uma operação antiterrorista. É expectável que sejam mais violentos naqueles territórios, e, por isso, querem que os civis não estejam no caminho. O que estão a dizer é: 'É o nosso território, queremos todas as pessoas fora para podermos, de uma forma ilimitada, defender linhas de defesa que os adversários estão a atacar.' É essa a lógica russa subjacente.
É neste momento que se pode começar a falar em 'guerra'? O que teria de acontecer para assumir que houve essa mudança de paradigma? Não é exatamente guerra, mas uma operação antiterrorista. Abre mais possibilidades militares. Putin não quer chamar 'guerra' a isto, porque isso significaria uma maior dificuldade em conter a insatisfação popular. Quando ele anunciou a mobilização parcial, houve protestos nas ruas. As pessoas não queriam isso; foram psicologicamente preparadas para uma operação limitada - como na Síria -, mas não estavam, nem estão, preparadas para uma guerra. Putin tem de conseguir um equilíbrio entre os críticos 'de linha dura' - como Kadyrov, líder da Chechénia, e Prigozhin, que comanda o grupo Wagner -, que pedem uma abordagem mais decisiva, e a população, já muito mais cética quanto ao que está realmente a acontecer e por que está a prolongar-se por tanto tempo. Claro que é muito mais atroz o que acontece no campo de batalha, mas uma pessoa normal também se preocupa com o que está a acontecer em volta: vêem que os russos estão a 'perder' território e a estão a morrer, apesar de o Ministério da Defesa nada dizer sobre essas perdas. Estão a destruir as forças russas e o seu equipamento, mas tudo está a correr dentro do que tinha sido planeado? Não é preciso ser-se um analista militar para se compreender que isto não está a correr bem. A população russa não tem qualquer simpatia pela ideia de mobilização total.
Putin vê-se obrigado a analisar a situação e dar mais margem às suas tropas para fazerem mais do que aquilo que fariam ao abrigo do conceito de 'operação militar especial'. A transformação disso numa operação antiterrorista dá-se porque se torna mais fácil de justificar certas ações. Um exemplo de uma operação antiterrorista é a da Chechénia, que estava historicamente em guerra com a Rússia desde o século XVIII. Durante a operação antiterrorista, nos anos 1990, havia bombardeamentos e baixas de civis, era brutal. Nessa época, no entanto, era mais fácil manipular as pessoas, porque não havia acesso à internet. Não havia vídeos no Twitter. Putin precisa de tomar medidas para evitar que as pessoas se revoltem contra ele assim que começar a ultrapassar alguns limites.
Para que pudesse falar em 'guerra', Putin teria de o verbalizar? Teria de ser dito que é de facto uma guerra? Para designarmos como guerra em larga escala, Putin teria de o dizer e adaptar legalmente a sua abordagem. Dessa forma, poderia enviar mais tropas para a Ucrânia. De acordo com o Ministério da Defesa, teriam cerca de 20 milhões de pessoas que poderiam ir para a Ucrânia. Neste momento, apenas puderam mobilizar 300 mil militares, o que não é comparável com o tamanho potencial do Exército russo. A tecnologia de guerra que temos observado na Ucrânia também não é a melhor, o que demonstra que o alcance do conflito é limitado. A única forma de alargar a abrangência entre uma operação militar especial e uma guerra é elevar o estatuto a uma operação antiterrorista. É mais fácil justificar determinadas ações que o Exército russo venha a ter, porque Putin pode dizer: "Eles são terroristas que estão a atacar o nosso território. Por isso, temos de recorrer a todos os meios possíveis para os expulsar." Mas isso não significa que se formalize a designação de guerra, porque a população soviética ainda traz consigo a cicatriz mental da guerra no Afeganistão, em 1979. As pessoas não querem uma guerra. É comparável com o 'síndrome do Vietname' que os EUA têm. Putin tem de ter cuidado.
“Para a Rússia faz sentido tentar defender as áreas estrategicamente mais importantes, já que não tem tropas suficientes e não consegue capturar todo o território.”
A lei marcial imposta nas regiões anexadas é uma resposta ao que está a acontecer em Kherson, onde os russos se arriscam a perder a maior cidade que ainda detêm? Sim, sem dúvida. Tem que ver com o facto de os russos estarem à espera de uma batalha por Kherson há muito tempo. Agora a maior parte de Kherson está divida pelo rio Dniepre. Num dos lados, está a cidade, que começou a ser evacuada, para que as tropas russas ganhem liberdade de movimentos.
A importância de Kherson para a Ucrânia é ser tão perto da Crimeia. É um lugar estrategicamente importante. E para a Rússia faz sentido tentar defender as áreas estrategicamente mais importantes, já que não tem tropas suficientes e não consegue capturar todo o território. O que vimos depois da contraofensiva ucraniana foi as tropas russas a retirarem-se sem combater. Mas há uma diferença entre recuar e fugir. Quando as tropas russas se retiram, levam o equipamento militar e começam a preparar um avanço mais lento. É uma operação logística complexa, por isso, em alguns lugares, os militares russos tiveram de deixar material para trás, não tiveram tempo. Em outros lugares, retiraram-se para diminuírem a linha de contacto para algo que possam defender, concentrando ali as suas forças. Os ucranianos estão a retirar informações junto dos serviços de informação e a reunir forças especiais para perceberem onde as Forças Armadas russas estão mais fracas, para ali atacarem.
Os russos também têm irritado a população ucraniana, atacando centrais elétricas, por exemplo. Não é uma estratégia nova, mas é algo que se renova agora nesta fase da guerra? Penso que sim. Atingir infraestrutura crítica é, por um lado, retaliação pela explosão na ponte na Crimeia. Por outro lado, é uma resposta aos críticos de Putin que têm uma visão mais violenta da guerra e que dizem que as forças não estão a fazer o suficiente em termos de ataques aéreos, visto que a Ucrânia não tem defesas antiaéreas robustas. Kadyrov escreveu no Telegram que não parariam até destruírem todos os postos de comando ucranianos.
Estes ataques não servem apenas para aterrorizar civis e fazê-los pressionar o Governo ucraniano, depois de deixarem as cidades sem água e sem eletricidade. A Rússia espera que os ucranianos vão para as ruas e digam: 'Presidente Zelensky, faça alguma coisa. Proteja-nos, estamos a sofrer. Queremos segurança, queremos a nossa eletricidade de volta; o inverno está a chegar e o frio também. Se não consegue ganhar, consiga um acordo.' A economia ucraniana está arruinada: o Produto Interno Bruto caiu em 30% e o Banco Mundial estimou que a Ucrânia necessitaria de cerca de 360 mil milhões de euros para reconstruir a sua economia [o primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal, estimou em mais de 700 mil milhões].
“Quem vai reparar as centrais elétricas? É preciso tempo e recursos. A Ucrânia não tem esses recursos, porque todas as verbas são necessárias para a Defesa. Isso cria um gigantesco dilema.”
Quem vai pagar essa conta? A NATO e os países europeus têm fornecido à Ucrânia equipamento militar, têm treinado as tropas ucranianas, mas não há dinheiro suficiente, num momento em que os países europeus também tiveram de aumentar as suas despesas de Defesa, têm dívidas próprias. Putin está a aproveitar-se disso, colocando ainda mais pressão sobre o Governo de Zelensky. O Executivo de Zelensky tem pedido mais sistemas de defesa antiaérea e Israel respondeu que não.
As tropas no terreno também têm de ser abastecidas e está a chegar o frio. Precisam de ter comunicações, têm de receber informação dos serviços secretos. Se não há internet nem eletricidade, não há nada, as tropas ficam sem saber o que se está a passar. Torna-se impossível conduzir uma contraofensiva e recuperar território se as tropas estiverem 'surdas e cegas' em relação ao que se passa nas várias frentes. Tem um efeito militar, mas também tem um propósito político estratégico. Quem vai reparar as centrais elétricas? É preciso tempo e recursos. A Ucrânia não tem esses recursos, porque todas as verbas são necessárias para a Defesa. Isso cria um gigantesco dilema, e Putin espera que isso empurre a Ucrânia para a mesa de negociações, porque sabe que, quando o inverno chegar, os países ocidentais terão de enfrentar os elevados preços da energia. Temos observado algum nível de descontentamento em Portugal, em Espanha, em França... A situação pode descontrolar-se se os governantes desses países não tiverem cuidado.
A destruição de barragens insere-se nessa estratégia também? Sim, ao destruírem barragens, garantem inundações. Dependendo de onde as destroem, se isso acontecer em zonas onde há atividade militar, torna muito mais difícil a contraofensiva ucraniana. Faz sentido militarmente, exigiria que os ucranianos tivessem de construir pontes improvisadas, e colocá-los-ia desprevenidos e desprotegidos para serem atacados. Isso também cria problemas imediatos à população ucraniana. Não se pode pensar em contraofensiva numa cidade inundada e sem eletricidade. Seria o caos, e é essa a ideia subjacente a esta estratégia de atingir infraestrutura civil crítica.
As armas nucleares são uma opção para as autoridades russas, ou fazem apenas parte de uma narrativa de medo? Seria bastante implausível a Rússia usar armas nucleares porque também se colocaria em risco. Quando falamos dessa possibilidade, estamos a falar de armas nucleares táticas. Isso deixaria muitas pessoas expostas a radioatividade perigosa. A Rússia tem mísseis e drones suficientes para causar estragos na Ucrânia, não precisa de recorrer a armas nucleares. Para usar armas nucleares táticas, as Forças Armadas russas teriam de usar aqueles fatos de proteção e segurança, como os usados em alguns ambientes, por causa da covid-19. A população não poderia proteger-se. Isso seria como um tiro no pé. Os Estados Unidos sabem onde se encontram as armas nucleares táticas russas, em bukers subterrâneos. Entre 2002 e 2013, os EUA ajudaram a Rússia na segurança dos repositórios. Se a Rússia fosse usar as armas nucleares táticas, os EUA saberiam que alguém tinha ido buscá-las. Seria uma operação muito complexa e visível, fácil de ser captada por satélites. Antes mesmo de Putin determinar a sua ativação, os países ocidentais tentariam travar o processo. Não faria sentido, porque a vigilância está a ser constante.
Que movimentos poderão ser esperados nas próximas semanas na Ucrânia? Provavelmente os ataques com mísseis e drones continuarão. É uma forma de a Rússia mostrar que tem mais trunfos guardados e que é melhor não irritarem Moscovo. Ninguém pensava que esta estratégia se mantivesse por tanto dias, e é por isso que Zelensky está em pânico e a pedir sistemas de defesa antiaérea. De outra forma, as Forças Armadas russas vão causar muita destruição.
“Está a ser encarada como uma questão de honra a tentativa de recuperação, face ao fiasco inicial. É perigoso sobrestimar o adversário, mas é ainda mais perigoso subestimar o adversário, como inicialmente a Rússia subestimou a Ucrânia.”
É uma abordagem que sucede a vários avanços da contraofensiva ucraniana. Acredita que terá um efeito desmoralizador para os esforços ucranianos? Acredito, sim. É uma ação muito destrutiva a que Putin está a conduzir neste momento. Os ucranianos têm uma janela de oportunidade bastante estreita neste momento antes de tudo sofrer um apagão. Podem tentar fazer avanços em Kherson, e Putin também prevê que isso aconteça. Mas a situação é bastante má para a Ucrânia, porque praticamente todos os esforços estão a ser dirigidos para parar os ataques com mísseis.
Depois da reconquista de Lyman, houve mudanças dramáticas do lado russo. Também não sabemos quão eficaz será a mobilização parcial, mas tudo indica que os russos possam estar muito mais motivados e espicaçados pelas críticas dos analistas militares. Está a ser encarada como uma questão de honra a tentativa de recuperação, face ao fiasco inicial. É perigoso sobrestimar o adversário, mas é ainda mais perigoso subestimar o adversário, como inicialmente a Rússia subestimou a Ucrânia.
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