Guerra na Ucrânia

“Os judeus foram associados ao diabo, Putin preenche essa imagem com os ucranianos. Chamar-lhes nazis é ironicamente a mesma coisa”

"Putin está a manipular - ou a tentar manipular - a população russa, e a manipulação é sempre um ato de profundo desrespeito"
"Putin está a manipular - ou a tentar manipular - a população russa, e a manipulação é sempre um ato de profundo desrespeito"
NurPhoto

É irónico que “judeu” e “nazi” possam ter a mesma conotação para a propaganda do ódio, mas, com décadas de intervalo, é isso que David Livingstone Smith tem visto acontecer. Para o filósofo norte-americano, o perigo que Putin representa é similar à ameaça Hitleriana. Em entrevista ao Expresso, o autor que discursou perante o G20, em 2012, sobre atos de violência em massa, recupera mitologia medieval para justificar como as raízes do discurso de ódio são seculares e perenes

O apresentador da televisão russa Vladimir Solovyov, um homem descrito pelo Departamento de Estado dos EUA como “talvez o mais enérgico propagandista do Kremlin atualmente”, comparou a guerra iniciada pela Rússia ao ato de desparasitar um gato. Nessa comparação, o povo ucraniano é representado como uma população de vermes parasitas, e a sua eliminação como um procedimento médico, uma ‘limpeza’. É uma imagem mental que, como defende o filósofo David Livingstone Smith, poderia ter sido retiradas das páginas do “Der Stürmer”, um semanário nazi publicado entre os anos 1920 e o final da Segunda Guerra Mundial.

Vladimir Solovyov usou a desparasitação como uma analogia para a desnazificação. Um artigo de Timofey Sergeyev intitulado “O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia?” defendia que “a desnazificação é necessária quando um número considerável da população (muito provavelmente a maioria) foi submetido ao regime nazi e envolvido nos seus objetivos, isto é, quando a hipótese “boas pessoas, mau governo” não se aplica”. O historiador Timothy Snider chegou a chamar-lhe “o manual genocida da Rússia”, e Putin serviu-se do documento. De acordo com a narrativa de Moscovo, os ucranianos são nazis, mesmo Volodymyr Zelensky, cuja família viu muitos elementos morrerem no Holocausto.

Em obras como “The Most Dangerous Animal: Human Nature and the Origins of War” e “Less Than Human: Why We Demean, Enslave and Exterminate Others”, David Livingstone Smith, investigador e professor de Filosofia na Universidade de New England, explica como a desumanização é a semente para a guerra e como se mantém a germinar de forma latente na mente humana ao longo de anos a fio. David Livingstone Smith defende agora que os “nazis” de Putin são os “judeus” de Hitler, isto é, que a desumanização concebida por ambos os líderes tem a mesma ambição genocida. Nesta entrevista com o Expresso, o filósofo norte-americano ilustra que o perigo de criar “monstros” é secular e esclarece como Putin o tem feito.

Por que é estratégico para um Estado com a História que tem a Rússia chamar 'nazis' aos ucranianos para que a população aprenda a odiá-los?

Se se quer cometer atos de violência completamente injustificados contra os outros, é útil projetar a imagem desses 'outros' como perigosa, demoníaca e agressiva. É útil apresentar a própria violência como um ato de autodefesa. A História dessa era é bastante complicada, mas o processo que hoje vemos, a forma como a Rússia está a caracterizar a Ucrânia como um covil de nazis demoníacos, é bastante comum quando se quer justificar e legitimar a agressão. A História da Segunda Guerra Mundial ainda está muito presente e desempenha certamente um papel.

O Batalhão Azov, na Ucrânia, foi inicialmente uma organização neonazi. A minha interpretação é de que já não é. E, claro, a Segunda Guerra Mundial deixou uma grande marca na mente dos russos e na sociedade da Rússia. A Rússia rompeu a corda da agressão nazi, mas perdeu 27 milhões de pessoas em alguns meses. Na Rússia, chamar nazi a alguém tem uma conotação emocional muito poderosa.

A propaganda nazi conseguiu disseminar o antissemitismo por toda a Europa. Pelo contrário, o sentimento que a maior parte dos países alimenta, neste momento, pelos ucranianos é positivo. Putin é pior estratega do que Hitler - ou está rodeado de estrategas menos eficientes?

Penso que o que Putin está a fazer baseia-se parcialmente na vontade de absorver a Ucrânia e reestabelecer o império russo, mas, por outro lado, também é uma mensagem para o Ocidente. Não acredito que Putin esteja particularmente interessado em tornar-se popular no Ocidente. Pelo contrário, está sempre a desafiar o Ocidente.

Curiosamente, chamar 'nazi' ou 'judeu' a alguém tem sido, ao longo da História, um instrumento de ódio...

Sim, o que penso sobre isso é que a imagem do judeu, particularmente na Europa Central e do leste, remonta há muito, muito tempo, e é uma espécie de modelo. Pode colocar-se qualquer grupo nesse papel e caracterizá-lo da forma como os judeus foram definidos há centenas de anos e até ao presente praticamente, ao longo do século XX.

Num discurso muito recente de Putin, em que celebrava a anexação de regiões ucranianas, ele falava de um Ocidente "satânico". Ele disse que o Ocidente substituiu a religião pelo satanismo. Essa é uma ideia muito antiga, que foi aplicada aos judeus. Se olharmos para as decrições da Idade Média e para a forma como os nazis as reanimaram, percebemos que os judeus foram associados ao diabo e a uma influência que corrompe, isto é, foram caracterizados como satânicos. Esse modelo, esse papel é intemporal, está sempre presente. Putin está a preenchê-lo com os ucranianos. Chamar-lhes nazis é ironicamente a mesma coisa. A imagem de um nazi, para os russos, como para muita gente no mundo, é uma imagem de absoluto mal e de satanismo.

“A imagem de retirar os parasitas do pêlo de um gato, criada pelos russos, é ilustrativa disso. É um discurso clássico de genocídio.”

Os judeus eram comparados com vermes e os ucranianos são associados a parasitas. Esta estratégia define também os povos atacados como incapazes de se autogovernarem e de autodeterminarem.

É realmente isso. Por aquilo que li, o discurso incide muito na purificação e na 'limpeza'. A imagem de retirar os parasitas do pêlo de um gato, criada pelos russos, é ilustrativa disso. É um discurso clássico de genocídio. A propaganda de genocídio associa-se à ideia de 'limpeza', de purificação. Quando os nazis exterminaram os judeus na Europa, usaram o termo 'limpeza' judaica. É bastante perturbador.

Os ucranianos também têm sido comparados com o cancro, um cancro que tem de ser cirurgicamente removido. Essa é uma imagem profundamente desumanizante, e é algo que as pessoas usavam durante a Segunda Guerra Mundial quando se referiam aos judeus.

Devido ao caráter beligerante da atuação de Putin, acredita que os atos de genocídio, tal como os de Hitler, podem espalhar-se além da Ucrânia?

Claro que sim. A invasão da Ucrânia é apresentada como um ato de autodefesa e de defesa dos 'etnicamente russos' em algumas das áreas ucranianas. Mas claro que não é disso que se trata, trata-se de expansão territorial. Não tenho dúvidas de que os antigos membros da União Soviética tornar-se-ão alvos para Putin.

Os atos genocidas, como lhes chama, podem também tomar conta das regiões recentemente anexadas?

Sem dúvida.

“Assim que estas ideologias se estabelecem, não desaparecem facilmente. Podem ficar latentes, podem não estar à superfície, podem passar-se anos, décadas e séculos sem que sejam postas em prática”

A desumanização pode permanecer por mais gerações e ser usada para novas guerras iniciadas pela Rússia nos próximos anos?

Sim, assim que estas ideologias se estabelecem, não desaparecem facilmente. Podem ficar latentes, podem não estar à superfície, podem passar-se anos, décadas e séculos sem que sejam postas em prática, mas basta que uma crise financeira e propaganda eficaz reapareçam para que sejam reavivadas facilmente. É por isso que são tão perigosas. São robustas e persistentes.

A forma como a mentira e a propaganda grosseira ainda conquistam os seus adeptos num mundo tão cheio de informação é uma discussão mais abrangente, mas, no caso de um Estado autocrático, é relativamente fácil?

A população russa tem sido privada de informação sobre o que se passa, informação essa a que nós temos acesso. Estas histórias, combinadas com a memória histórica da Segunda Guerra Mundial, são emocionalmente muito poderosas, são apelativas mas aterradoras. A forma como pessoas em cargos de poder nos fazem apoiar atrocidades é assustando-nos. Pela forma como Putin encontrou apoio entre a população russa, eu diria que só pode ter sido utilizando a propaganda para incutir medo, fazendo as pessoas pensar que a Ucrânia é, de facto, um Estado nazi e uma ameaça existencial para a Rússia.

Mas claro que muita gente não está enganada. Têm acontecido manifestações massivas, muitas pessoas foram detidas. Quando Putin anunciou a mobilização parcial, de mais 300 mil pessoas, a população tentou fugir o mais rapidamente possível do país. Não sei realmente até que ponto a população russa está convencida quanto a esta aventura imperialista de Putin.

O regime demonstra, com a propaganda, que, ou não quer saber dos factos, ou os usa para dizer algo e o seu absoluto contrário...

E eu não sei o que é e como é ser russo neste momento. É um exercício muito complicado de se fazer. Nenhum de nós está naquela atmosfera. Putin está a manipular - ou a tentar manipular - a população russa, e a manipulação é sempre um ato de profundo desrespeito. No entanto, não é desumanização. A desumanização é pensar e retratar as pessoas como seres sub-humanos, como animais, monstros e seres demoníacos. Ele não faria isso aos russos, porque precisa do apoio da sua população.

A desumanização da população ucraniana é a semente de que futuro?

Se as coisas continuarem a correr mal aos russos, a Rússia usará armas nucleares, e isso pode espoletar uma sequência de eventos que nenhum de nós quer imaginar. Essa é uma hipótese assustadora, mas há outra. Vamos assumir que a Rússia consegue submeter a Ucrânia e anexá-la: o que se segue e o que significa isso para a geopolítica mundial? Não cometamos erros: a propaganda transmitida pela televisão estatal russa é cheia de discurso genocida. "A Ucrânia deixará de existir, a Ucrânia será varrida da superfície da Terra." É aterrador.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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