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Guerra na Ucrânia

Com a vitória da Ucrânia em Lyman e os avanços em Kherson, “estamos a passar de um desaire militar para um desastre político na Rússia”

Com a vitória da Ucrânia em Lyman e os avanços em Kherson, “estamos a passar de um desaire militar para um desastre político na Rússia”
YEVGEN HONCHARENKO/Reuters

A Ucrânia conseguiu nos últimos dias a maior vitória na guerra, desde os avanços em Kharkiv. Retomou o controlo de Lyman, o que torna "muito provável" a conquista de todo o Donbas, no leste do país. O Inverno pode travar os avanços no terreno, mas a Rússia dificilmente recuperará. "Entretanto, as pessoas deixaram de acreditar". Dois especialistas analisam as recentes conquistas das forças ucranianas e antecipam a guerra dos próximos meses

Com a vitória da Ucrânia em Lyman e os avanços em Kherson, “estamos a passar de um desaire militar para um desastre político na Rússia”

Helena Bento

Jornalista

Com a vitória da Ucrânia em Lyman e os avanços em Kherson, “estamos a passar de um desaire militar para um desastre político na Rússia”

Jaime Figueiredo

Jornalista/Coordenador-Geral de Infografia

Com a reconquista há dias da cidade estratégica de Lyman, em Donetsk, pela Ucrânia, considerada a maior vitória desde os avanços em Kharkiv, está aberto o caminho para as tropas ucranianas.

Cidades como Lisichansk, Severodonetsk e Rubizhne, localizadas na região separatista de Luhansk, "estão agora ao alcance da artilharia ucraniana e a ser bombardeadas" — e o próximo passo poderá mesmo passar por uma ofensiva terrestre para recuperar efetivamente o controlo destas cidades. A análise é feita pelo major-general Isidro Pereira, antigo representante de Portugal na NATO, na sequência dos recentes e importantes avanços da Ucrânia na guerra que trava há meses com Moscovo.


Depois das "batalhas sangrentas" que tiveram lugar em maio em Lisichansk e Severodonetsk, com a conquista destes territórios pela Rússia, "o mais provável é que a Ucrânia volte a assumir o controlo destas cidades" e, mais importante ainda, que consiga "num futuro próximo" retomar o controlo de Luhansk e Donetsk, duas das cinco regiões ucranianas anexadas pela Rússia desde 2014.

"A contraofensiva da Ucrânia no Donbas continuará a ter êxito. Luhansk e Donetsk podem ser libertadas ainda antes do inverno", sublinha o major-general. De acordo com o mais recente relatório do Institute for the Study of War, que acompanha a evolução dos conflitos no terreno, publicado a 3 de outubro, as tropas ucranianas "continuam a conquistar território à volta de Lyman" e "podem já ter atravessado Luhansk em direção a Kreminna", onde estão parte das tropas russas que foram derrotadas.

Não há “resistência” que demova as tropas ucranianas

Além dos avanços significativos no terreno que a reconquista de Lyman permitirá que sejam feitos daqui em diante, a queda da cidade veio tornar evidentes, uma vez mais, as fragilidades das forças russas no terreno, sublinha o major-general Arnaut Moreira, especialista em geopolítica e geoestratégia. "Quando cai Lyman, não é apenas Lyman que cai. É todo o território à volta da cidade. São praticamente 1.000 quilómetros quadrados".

O que mostra a "incapacidade" da Rússia “em acudir em profundidade a estas penetrações ucranianas". "As forças russas estão mal articuladas. O dispositivo no terreno é muito permeável, não tem densidade nem profundidade. Uma vez derrotada a primeira linha dos combates, as forças ucranianas conseguem avançar dezenas de quilómetros até encontrarem de novo resistência que as obrigue a parar. Com isto, têm recuperado territórios de uma dimensão absolutamente extraordinária", avalia ao Expresso.

Também Arnaut Moreira antecipa dificuldades para a Rússia no Donbas. “As várias estradas que conduzem ao interior da região vão sendo sucessivamente tomadas pelas forças ucranianas, obrigando a afastar cada vez mais da região as operações de natureza logísticas." De resto, é essa a expectativa do Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. No sábado passado, 1 de outubro, depois de as forças ucranianas assumirem o controlo de Lyman, um importante entroncamento ferroviário no leste da Ucrânia, garantiu que "haverá ainda mais" bandeiras içadas no Donbas.

Situação em Kherson é a “mais preocupante”

A situação "mais preocupante" é, contudo, a de Kherson, no sul do país, considera o major-general, lembrando que a cidade é "muito simbólica" para a Rússia e representa uma vantagem estratégica, ao permitir o acesso a Odessa. Kherson "beneficiou muito" da chegada do sistema de mísseis HIMARS (High Mobility Artillery Rocket Systems), que representou um reforço significativo da capacidade das forças ucranianas.

De acordo com o relatório do Institute for the Study of War, as forças ucranianas continuam a fazer "progressos substanciais" na região de Kherson nas últimas 48 horas", avançando de forma consistente sobre o norte da região. Na segunda-feira, 2 de outubro, foram "libertadas mais três localidades em redor de Kherson", aponta, por sua vez, Isidro Pereira, acrescentando que "a situação no teatro de operações não é de todo favorável para as tropas russas".

É neste contexto que a Rússia enfrenta "um dilema muito grande" — um dilema que é essencialmente militar, mas pode ter consequências políticas, avisa Arnaut Moreira. "Se a Rússia decidir defender Kherson e as coisas correrem mal, será deixado para trás equipamento militar muito sofisticado que fará falta, porque as tropas não estão a conseguir substituir equipamento à medida que este é destruído".

“Putin silenciou as vozes moderadas e deixou as radicais à solta. Estas são ótimas a falar sobre patriotismo, mas quando falam de insucessos militares conseguem alterar radicalmente a opinião da população russa.”

E Vladimir Putin não será poupado no seu país, aponta. "Kherson é a capital de uma região, designada também Kherson, que foi anexada recentemente pelos russos." A queda da cidade constituirá, assim, "um escândalo interno que nenhum mecanismo de controlo de informação conseguirá esconder". "Estamos a passar muito rapidamente do desaire militar para um desastre de natureza política", sublinha o major-general, acrescentando que está em causa a "estabilidade" do regime em Moscovo.

Lembra que mesmo a informação controlada vem de "setores nacionalistas que continuam a gozar de liberdade de expressão e são muito críticos do regime quando há falhas militares". "Putin silenciou as vozes moderadas e deixou as radicais à solta. Estas são ótimas a falar sobre patriotismo, mas quando falam de insucessos militares conseguem alterar radicalmente a opinião da população russa sobre o que está a acontecer."

Inverno será “difícil” mas Rússia não deverá recuperar

Para o major-general Isidro Pereira, é "muito importante" que as forças ucranianas façam avanços no terreno antes da chegada do Inverno, que “tornará as operações terrestres impraticáveis” devido às baixas temperaturas e às chuvas, que transformam as "planícies férteis ucranianas em lamaçais".

Nestas condições, as viaturas blindadas passam a só poder circular em itinerários e estradas pavimentadas, sem florestas, vegetação e árvores a servirem de proteção, o que as tornará facilmente localizáveis e vulneráveis a ataques. Os ataques ocorrerão essencialmente por via aérea. "Vamos assistir durante alguns meses a uma guerra de ataques aéreos e, na primavera, voltará a guerra do movimento e das manobras."

Até lá, será "difícil" para os dois lados do conflito, mas a Ucrânia partirá em vantagem, seja porque "conhece melhor" o terreno, seja porque as tropas ucranianas estão "mais motivadas" do que as russas. "Estão agora a ser mobilizados soldados cuja vontade de combater na Ucrânia é absolutamente zero". E isso poderá colocar em causa a "eficácia" das unidades no campo de batalha, diz o major-general.

Arnaut Moreira também considera que, apesar do inverno e das dificuldades em fazer progressos significativos no terreno nos próximos meses, a situação é mais favorável para a Ucrânia. "Moscovo está com muitas dificuldades em substituir o equipamento que está a perder." As tropas russas vão abandonando territórios ucranianos e deixando carros de combate para trás.

E os meses de inverno podem "não ser suficientes" para repor todo o equipamento. "A Rússia deixou para muito tarde esta capacidade de gerar poder. E não sei se ainda vai a tempo de o fazer. Entretanto, as pessoas deixaram de acreditar."

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: hrbento@expresso.impresa.pt

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