Guerra na Ucrânia

Morte de Daria Dugina: teoria de ex-deputado russo é “altamente duvidosa” (e as versões de Kiev e Moscovo)

O ideólogo russo Alexander Dugin no velório da sua filha, Daria Dugina, que morreu no sábado à noite quando o carro que conduzia explodiu
O ideólogo russo Alexander Dugin no velório da sua filha, Daria Dugina, que morreu no sábado à noite quando o carro que conduzia explodiu
KIRILL KUDRYAVTSEV

Ilya Ponomarev, antigo deputado russo agora exilado na Ucrânia, apontou rapidamente o responsável pela explosão que matou a filha de Alexander Dugin: o Exército Nacional Republicano russo. Mas tal grupo nunca tinha sido mencionado até então, nem há provas de esta organização antiputinista seja real. Também a Ucrânia e a Rússia têm diferentes versões para a mesma história, acusando-se mutuamente pelo crime

Morte de Daria Dugina: teoria de ex-deputado russo é “altamente duvidosa” (e as versões de Kiev e Moscovo)

Mara Tribuna

Jornalista

Uma história com três versões. Daria Dugina, a filha de Alexander Dugin, conhecido como o “cérebro de Putin”, morreu no sábado à noite quando o carro que conduzia explodiu, aparentemente depois de uma bomba encontrada debaixo do automóvel ter sido detonada, em Odintsovsky, Moscovo. A Rússia culpa a Ucrânia pelo assassinato da jovem filósofa, a Ucrânia nega qualquer envolvimento e atira as responsabilidades para a Rússia, e um antigo deputado russo sediado em Kiev apontou inesperadamente o alegado autor do crime, nunca mencionado até então: o Exército Nacional Republicano russo.

Daria Dugina seguia sozinha no carro do seu pai. Os dois tinham acabado de participar no festival literário Tradição (“Traditsiy”), perto de Moscovo, mas uma mudança de planos de última hora ditou que o aliado do presidente russo fosse noutro carro, o que leva a crer que o alvo original — ou pelo menos principal — seria Alexander Dugin. O influente ultranacionalista russo é considerado um dos principais ideólogos de Vladimir Putin e um dos principais arquitetos da guerra na Ucrânia. Dugina, 29 anos, também estava alinhada com os ideais pró-Kremlin do seu pai.

A Ucrânia negou no domingo qualquer envolvimento na morte da comentadora política e jornalista. “Sublinho que a Ucrânia nada tem a ver com isto, porque não somos um Estado criminoso como a Federação Russa e não somos um Estado terrorista”, disse o conselheiro presidencial ucraniano Mikhail Podoliak. O conselheiro de Zelensky acrescentou que a Rússia está a começar a “desintegrar-se internamente” e que vários grupos estão a entrar em confronto numa luta pelo poder.

Daria Dugina seguiu os passos do seu pai, tornando-se uma personalidade mediática conhecida que trabalhou para canais de televisão pró-Kremlin, incluindo Russia Today e Tsargrad
TSARGRAD.TV

Horas depois, o ex-deputado da Duma (parlamento russo) Ilya Ponomarev — atualmente exilado em Kiev — disse saber quem era o responsável pela morte de Daria Dugina. “Esta ação, como muitas outras ações partidárias realizadas na Rússia nos últimos meses, foi levada a cabo pelo Exército Republicano Nacional”, disse numa emissão na “February Morning”, um canal de televisão de oposição em russo que lançou em Kiev no início do ano. “Um acontecimento memorável ocorreu perto de Moscovo na noite passada. Este ataque abre uma nova página na resistência russa ao Putinismo. Nova, mas não a última”.

Ponomarev foi o único deputado a votar contra a anexação da Crimeia, em 2014, e foi expulso por atividades anti-Kremlin, tornando-se cidadão ucraniano em 2019. O antigo parlamentar russo foi ainda autorizado a partilhar um manifesto que diz ser do Exército Nacional Republicano, um grupo que não era conhecido ou falado antes de 21 de agosto. Este manifesto foi partilhado através do seu canal do Telegram “Rospartisan” e, segundo Ilya Ponomarev, foi também através desta plataforma que os combatentes do Exército Nacional Republicano estabeleceram contacto.

Manifesto de um grupo dissidente

Segundo Ilya Ponomarev, o grupo terá dito que está empenhado numa luta contra o regime de Putin. Não é possível confirmar esta informação de forma independente, da mesma forma que não há, até agora, provas de que o Exército Nacional Republicano russo seja efetivamente real. Tudo o que existe é um manifesto difundido por Ponomarev e que apresenta o grupo como uma organização clandestina que opera dentro da Rússia com o objetivo de derrubar o regime putinista.

“Declaramos o presidente Putin um usurpador de poder e criminoso de guerra que alterou a Constituição, desencadeou uma guerra fratricida entre os povos eslavos e enviou soldados russos para uma morte certa e sem sentido. Pobreza e caixões para alguns, palácios para outros; é a essência da sua política. Acreditamos que as pessoas sem privilégios têm o direito de se rebelarem contra os tiranos. Putin será deposto e destruído por nós”. Este é apenas um fragmento do longo texto. Logo no início, os guerrilheiros apresentam-se supostamente como “ativistas russos, militares e políticos, agora partidários e combatentes do Exército Republicano Nacional, fora-da-lei belicistas”.

O manifesto também declara: “O nosso objetivo é parar a destruição da Rússia e dos seus vizinhos, parar as atividades dos homens de negócios do Kremlin que absorveram a riqueza do nosso povo e estão hoje a cometer crimes dentro e fora do país. Declaramos os funcionários do governo da Federação Russa e as administrações regionais cúmplices do usurpador: aqueles que não abdicarem dos seus poderes serão destruídos por nós”. Há ainda um apelo a todos os russos preparados para combater o Putinismo a juntarem-se às suas fileiras e a levantarem a “bandeira branca, azul e branca da nova Rússia, em vez da tricolor desonrada”. Lê-se ainda que a organização promete proteger quem seguir este apelo e libertar quem foi ilegalmente condenado pelo Kremlin imediatamente “após a vitória”.

Teoria de Ponomarev é “bizarra”

A imprensa ucraniana apressou-se a corroborar a versão de Ilya Ponomarev, mas vários investigadores rejeitaram a teoria do ex-deputado russo. Alegam que a ideia de um movimento terrorista anti-Putin e de uma resistência interna na Rússia é difícil de acreditar, parecendo mais legítimo tratar-se de uma operação engendrada internamente pelo FSB (Serviço Federal de Segurança da Federação Russa), principal sucessor da KGB.

“Um grupo estranho de que nunca ninguém ouviu falar na Rússia está a assumir a responsabilidade pelo bombardeamento [que matou Daria Dugina]. Tão bizarro”, escreveu no Twitter Olga Lautman, investigadora no Centro de Análise de Políticas Europeias (em inglês Center for European Policy Analysis, ou CEPA) que se tem debruçado sobre o Kremlin.

Reações incrédulas semelhantes seguiram-se. “O ‘Exército Republicano Nacional’, que surgiu para reclamar crédito pelo assassinato de Darya Dugina não teve nada a ver com isso, se é que tal organização sequer existe. É bastante claro que todos os sinais para os assassinos levam a um grupo nos serviços de segurança russos, provavelmente o FSB”, atirou Igor Sushkoo, do think tank Wind of Change focado nas relações EUA-Ucrânia, também no Twitter.

Por sua vez, o perito em segurança nacional e terrorismo, Kyle Orton, descreveu a autoria do ataque anunciado por Ponomarev como “altamente duvidosa”, acrescentando: “As duas opções mais prováveis aqui são: primeiro, Ponomarev está enganado/ a inventar isto; segundo, ele acredita estar em contacto com a tal organização, que é uma criatura da FSB modelada na operação TRUST", referindo-se à operação lançada pela Cheka, uma das primeiras organizações de polícia secreta da União Soviética, que criou um falso grupo de oposição para prender os opositores da ditadura comunista.

Numa entrevista ao jornal Meduza, de língua russa, publicada esta terça-feira, Ilya Ponomarev reiterou que mantém contacto com o Exército Nacional Republicano “há muito tempo”, comunicando com eles “desde abril”. O ex-parlamentar russo explicou que o grupo já tinha incendiado gabinetes de recrutamento militar, mas queria “fazer algo mais marcante” para se posicionar. “A certa altura, eles disseram: ‘Segue as notícias, vai acontecer hoje’”, continuou Ponomarev, referindo-se à explosão do carro onde seguia a filha de Alexander Dugin. “Quando aconteceu, enviaram fotografias da cena [da explosão] para confirmar que eram eles. E enviaram também o manifesto”, disse ainda, sem no entanto ter como o provar.

Rússia e Ucrânia acusam-se mutuamente

O FSB resolveu rapidamente o assassinato de Daria Dugina. O Serviço Federal de Segurança da Rússia afirmou, em comunicado citado pelas agências noticiosas estatais, que “o crime foi preparado e levado a cabo pelos serviços especiais ucranianos”. Em concreto por Natalia Vovk, uma mulher ucraniana que chegou à Rússia em julho com a filha e terá demorado um mês a preparar o ataque.

Segundo detalhou o FSB, Natalia Vovk alugou um apartamento no mesmo bloco de Daria Dugina e investigou o seu estilo de vida. A agente ucraniana terá participado num evento nos arredores de Moscovo no sábado à noite, no qual Darya Dugina e o pai se encontravam presentes, seguindo para a Estónia após o ataque.

Alexander Dugin culpou o “regime ucraniano” pelo “ato terrorista”. “A minha filha foi brutalmente assassinada à minha frente. Ela era uma linda mulher ortodoxa, patriota, repórter de guerra, especialista em televisão e filósofa. Só precisamos da nossa vitória. A minha filha sacrificou a sua jovem vida. Então, por favor, conquistem-na!”, acrescentou o filósofo russo.

Perante novas acusações, a Ucrânia voltou a rejeitar qualquer envolvimento. Esta terça-feira, o secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia, Oleksii Danilov, afirmou: “O nosso Serviço de Segurança não tem nada a ver com isso”, até porque Dugina “não tinha realmente importância” para a Ucrânia. O responsável disse ainda que se tratou de uma “execução realizada pelos serviços secretos russos”, que começam a livrar-se das pessoas que criticam os alegados sucessos militares da Rússia na guerra.

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