Na semana passada, a Rússia atacou um edifício público em Vinnytsia (‘Veneza’), uma cidade ucraniana que tem sido poupada durante a guerra. Os mísseis mataram pelo menos 23 pessoas, incluindo três crianças, e Moscovo garantiu que tinha conseguido eliminar altas patentes da Força Aérea Ucraniana, que estariam a reunir-se com “representantes de fornecedores estrangeiros de armas”.
A Ucrânia falou num “ato aberto de terrorismo” e não confirmou esta informação. Depois, a autarquia de Berdichev lamentou a morte em Vinnytsia do Tenente-coronel Konstantin Puzyrenko, natural dessa cidade, morto no ataque; e o portal “Dnepr Operational” divulgou informações sobre os funerais do Coronel Dmitry Burdiko e do Coronel Oleg Makarchuk, associando as suas mortes a Vinnytsia. Os três homens eram altos responsáveis do serviço de armamento e logística da Força Aérea Ucraniana. Nenhuma informação credível foi avançada sobre eventuais representantes estrangeiros presentes no local.
Em entrevista ao Expresso, o Major-General Agostinho Costa não tem dúvidas: estes oficiais foram de facto mortos em Vinnytsia, e a “falha de segurança grave terá sido o catalisador” para Zelensky demitir a Procuradora-geral da República e o chefe dos Serviços de Segurança (seu amigo de infância). E avança uma hipótese: a reunião serviria para acordar o envio de aviões norte-americanos F-16 para a Ucrânia.
Considera que há uma relação entre o ataque a Vinnytsia e as demissões de altos funcionários do Estado ucraniano?
De acordo com as fontes que consultei, é plausível que o ataque a Vinnytsia tenha sido o catalisador para as demissões da Procuradora-geral da República [Iryna Venediktova], do chefe dos Serviços de Segurança ucranianos [Ivan Bakanov, amigo de infância de Zelensky], e de outros 60 funcionários. A reunião estava envolta em algum secretismo e realizou-se a cerca de 40 km da fronteira com a Moldávia. Se juntarmos a isto o pressuposto de que estavam presentes delegações estrangeiras, não se trata de uma causa menor [para as demissões].
Qual seria o motivo do encontro?
A reunião era sobre logística da força aérea e o funcionamento de aeronaves, provavelmente relacionada com o fornecimento de aviões ocidentais à Ucrânia. É especulação, mas possivelmente estaria em causa o envio de F-16 norte-americanos. Fala-se disso há algum tempo e até já há pilotos ucranianos a ter formação nos Estados Unidos, mas não há provas.
E isso faria sentido?
A Polónia enviou [jatos] MiG-29 para a Ucrânia, a Eslováquia também, e até os Estados Unidos enviaram modelos soviéticos que tinham comprado à Rússia para a guerra no Afeganistão mas acabaram por não ser usados. No entanto, tem havido uma erosão de material muito grande de parte a parte. O material soviético está a esgotar-se, os países que faziam parte do Pacto de Varsóvia já esvaziaram os paióis [locais onde é armazenado equipamento militar], e chegará uma altura em que terão de ser enviadas aeronaves ocidentais – tal como a Ucrânia tem pedido. Esta reunião pode ter sido importante nesse sentido, mas ainda não há confirmações sólidas.
Então acredita que as demissões foram uma decisão política motivada por falhanço militar?
A Ucrânia tinha de tirar consequências políticas. Foi uma falha de segurança grave, Zelensky fez o que qualquer líder político tinha de fazer. Aliás, algo parecido já aconteceu em Portugal, como sabemos: em 1983, um representante palestiniano [Issam Sartawi, membro da Organização para a Libertação da Palestina] foi morto num hotel em Albufeira durante um encontro de alto nível [congresso da Internacional Socialista organizado sob a liderança de Mário Soares]. Foi esse acontecimento que levou à criação do Grupo de Operações Especiais (GOE) da PSP, e é compreensível: é algo muito grave e que afeta a imagem externa de um país. Imagine o que seria uma delegação portuguesa visitar outro país e os seus membros voltarem num saco de plástico.
Mas as investigações por traição e as demissões do lado da Ucrânia têm acontecido desde o início da guerra.
Sim. É um trabalho reativo, como é normal nestas circunstâncias. Mas essas medidas têm sido adequadas, e Zelensky têm-nas tomado com assertividade sempre que não está satisfeito com os seus representantes políticos. Fez isso em Kherson e em Kharkiv, por exemplo.
Falou na hipótese de terem sido mortos representantes de outros países que estariam presentes na reunião. Há indícios disso?
Não tenho essa informação. Mas a nossa função é descodificar a propaganda e retirar conclusões daquilo que nos parece plausível. Das fontes que consultei, e são fontes abertas, todos têm acesso a elas…
Não tem nenhum contacto bem colocado em Moscovo?
[ri-se] Não, não, era o que faltava. Não tenho contacto com nenhuma entidade específica. As fontes são abertas. O que fiz foi analisar a notícia e a credibilidade das fontes, e tentar retirar o fumo.
Alguns analistas disseram que estas demissões mostram que Zelensky está a tentar fortalecer o seu poder à custa da separação de poderes.
Vi análises nesse sentido, que até apontam para uma luta interna pelo poder. Mas não me parece que isso corresponda à realidade. Quanto muito, é um indício da tensão entre o núcleo duro de Zelensky e a liderança militar.
E isso não é motivo de preocupação para a Ucrânia?
Conflitos entre políticos e militares são normais e já aconteceram antes. Mas o poder militar está sempre subordinado ao poder político. As demissões aconteceram por questões funcionais, e não para travar um eventual assalto ao poder. A posição de Zelensky é fortíssima interna e externamente, e os serviços secretos russos não teriam capacidade para afastá-lo. Antes de a guerra começar, Putin apelou às forças armadas ucranianas para deporem o Governo – e isso não aconteceu.