Guerra na Ucrânia: analistas pró-Rússia questionam invasão, à medida que aumentam rumores de "desastres militares" no terreno
Imagens revelam que a artilharia ucraniana destruiu vários pontos de passagem russos
DIMITAR DILKOFF
'Bloggers', comentadores e familiares de militares russos desaparecidos ou mortos começam a questionar a competência das forças russas. À medida que as informações acerca dos fiascos de Moscovo na guerra começam a ser difíceis de rebater, até os antigos apoiantes da invasão surgem em público para fazer críticas aos líderes militares e ao Kremlin
"Temos o mundo inteiro contra nós." Na televisão estatal russa, o comentador de defesa Mikhail Khodaryonok usou as palavras que têm o peso do momento. A avaliação dura que faz da 'operação militar especial' orquestrada por Moscovo já não esconde que a ajuda internacional armará a Ucrânia até aos dentes, ou, como detalha, fornecerá armamento para "um milhão de homens". Olga Skabeyeva, a apresentadora que recebeu o apelido de "boneca de ferro da televisão de Putin" devido às suas críticas à oposição russa, estremece. Ensaia algumas perguntas para demover Mikhail Khodaryonok. Diz-lhe que uma série de desaires ucranianos compõem 'o todo' para que tem de se olhar.
O comentador tem outra opinião. Evocando uma máxima do marxismo-leninismo, Mikhail Khodaryonok já não esconde que a vontade ucraniana de "defender a terra-mãe" pode determinar o desfecho da guerra, porque, num conflito, vence o exército com a motivação mais inflamada. E arrisca outra análise: o isolamento internacional começa a estrangular a Rússia.
As declarações em plena televisão estatal são reveladoras de como a bolha criada pelo Kremlin começa a ser furada. Os fiascos das tropas russas, que já tiveram de realinhar estratégias, já não parecem ser opacos à opinião pública. As imagens captadas por satélite e drone começam a contar uma história de devastação a que nem as forças de Moscovo escapam. Dezenas de tanques russos, veículos de combate de infantaria e camiões foram destruídos, e alguns afundaram-se mesmo nas águas do rio Donets. As mais recentes fotografias mostram ainda uma ponte destruída.
A 11 de maio, o comando russo teria enviado cerca de 550 soldados da 74.ª Brigada de Fuzileiros Motorizados do 41.º Exército de Armas Combinadas para cruzar o rio Donets, em Bilohorivka, na região leste de Luhansk, numa tentativa de cercar as forças ucranianas perto de Rubizhne. O que as fotografias contam é que o número de tentativas de atravessar o rio, durante a ofensiva no leste, foi tal que a ação resultou em pelo menos 485 mortos e 80 veículos destruídos, de acordo com as estimativas dos analistas. O jornal "The Guardian" conta que, à medida que a Rússia tenta esconder a dimensão das perdas na Ucrânia, mais e mais informações vão sendo divulgadas, e as famílias dos soldados russos começam a mudar de opinião em relação à invasão.
Ver o Governo "de forma diferente"
Na última semana, as provas da derrota de Bilohorivka fizeram com que até alguns líderes pró-Rússia vissem a sua fé na liderança militar do país abalada. Este episódio vem somar-se a outro, ocorrido há cerca de um mês: o ataque à embarcação russa Moskva.
"Eu vejo o meu Governo de uma forma totalmente diferente desde que a guerra começou", disse, ao jornal britânico, Tatyana Efremenko, de 39 anos, cujo filho, Nikita Efremenko, era um recruta no grande navio Moskva, que se afundou há um mês, após um ataque com mísseis ucranianos. A matriarca russa continua à procura do filho. "Tenho algumas coisas muito duras a dizer sobre a nossa liderança, mas talvez seja melhor eu não o fazer, porque iria para a prisão por isso."
Um mês após o naufrágio do Moskva, o Governo russo apenas confirmou a morte de um membro da tripulação e disse que outros 27 se encontravam desaparecidos. Mas as famílias dos tripulantes dizem que o número de mortos pode chegar aos 200, e muitos familiares não receberam nenhuma informação sobre o que aconteceu com os maridos, irmãos e filhos. Nikita Efremenko foi mesmo forçada a "assinar um documento" em que "aceita" que o filho morreu e que será "compensada" pela sua morte.
Entre os mais de 80 familiares que mantêm conversas pela rede social Telegram, quase todos contam a mesma história: foram instruídos a não falar com a imprensa ou a manifestarem-se sobre isso em público.
Enquanto as forças ucranianas iniciam um contra-ataque que já atingiu a fronteira russa perto de Kharkiv, os soldados sob as ordens de Moscovo são acusados de abandonar os aliados da região do Donbas. Na parte leste da Ucrânia controlada pelos russos, mulheres de combatentes denunciaram, perante as câmaras, que os maridos foram deixados para trás quando soldados russos recuaram pela fronteira perto de Kharkiv. "Eles não são desertores", gritou uma mulher a um funcionário da autarquia local.
Têm surgido imagens de vários tanques russos destruídos na Ucrânia
Anadolu Agency
As incoerências russas
"Até que saibamos o nome do 'génio militar' que colocou um batalhão tático perto do rio e ele responda publicamente por isso, nunca haverá reformas no exército", escreveu Vladlen Tatarzky, o pseudónimo usado por um 'blogger' russo e ex-soldado que tem mais de 300 mil seguidores no Telegram. Este poderia ser um testemunho sem importância, não fosse o apoio que Vladlen Tatarzky sempre manifestou em relação à guerra.
Rob Lee, do Programa Eurásia do Instituto de Investigação de Política Externa que documentou as reações à guerra, observou que outro 'blogger' popular escreveu que era "idiota ou um ato de sabotagem cometer tal erro três meses depois do começo da guerra".
Igor Girkin, um comandante russo que serviu durante a invasão de 2014, criticou o Governo: "Já disse várias vezes o que tem ser feito na situação atual. Tornou-se claro que as nossas forças são incapazes de conseguir até mesmo uma derrota limitada em combate terrestre. Temos de preparar-nos para uma guerra prolongada, difícil e em grande escala".
Na segunda-feira, o Governo ucraniano também divulgou novos dados: o 1.º Exército Blindado de Guardas da Rússia perdeu 131 tanques apenas nas primeiras três semanas da guerra, um dos períodos mais sangrentos para o exército russo.
A Rússia divulgou os números de baixas pela última vez no final de março. Nessa ocasião, admitiu que 1351 soldados russos foram mortos e 3825 ficaram feridos durante o primeiro mês da guerra. O Governo de Moscovo não voltou a fornecer mais informações sobre óbitos no último mês e meio; apenas assumiu que são "significativos". As estimativas ocidentais chegam a ser dez ou até 20 vezes maiores. Algumas apontam que a Rússia perdeu mais de 30 mil soldados desde o início da guerra. Kiev diz ter em sua posse restos mortais de milhares de soldados russos, mas Moscovo não os aceita porque isso forçaria o Kremlin a admitir o elevado número de mortes de militares russos na guerra.
A influência dos 'bloggers'
À medida que a escala dos acontecimentos ganha contornos mais nítidos, o desastre militar russo começa a perfurar a bolha de informação controlada pelo Kremlin. O Instituto para o Estudo da Guerra, um órgão de investigação com sede em Washington, acredita que um grupo significativo de 'bloggers' começa a alimentar dúvidas quanto às perspetivas da Rússia nesta guerra e à competência militar russa, sobretudo as figuras que até ao momento tinham sido a favor da invasão.
À medida que as notícias das perdas na travessia do rio em Bilohorivka começaram a ser difundidas, alguns 'bloggers' russos deixaram de conter as críticas, e revoltaram-se contra o que disseram ser uma "liderança incompetente".
"Estou calado há muito tempo", disse Yuri Podolyaka, que tem 2,1 milhões de seguidores no Telegram. Num vídeo publicado na sexta-feira, o 'blogger' reconheceu que evitou criticar os militares russos até agora, de acordo com o jornal norte-americano "The New York Times".
Yuri Podolyaka ridicularizou a linha de raciocínio do Kremlin, segundo a qual a guerra está a correr "de acordo com o planeado". No seu vídeo de cinco minutos, apontou que faltavam ao Exército russo drones não tripulados funcionais e equipamentos de visão noturna. "Sim, eu entendo que é impossível não haver problemas na guerra. Mas, quando os mesmos problemas permanecem por três meses e nada parece mudar, então eu e milhões de cidadãos da Federação Russa começamos a ter perguntas para fazer a esses líderes da operação militar.”
Outra figura popular no Telegram, Starshe Eddy escreveu que o facto de os comandantes terem deixado grande parte das suas forças expostas não equivale a "idiotice, mas a sabotagem direta". Já Vladlen Tatarski manifestou que a ofensiva a leste se movia lentamente, não apenas por causa da falta de drones de vigilância, mas também "desses generais" e das suas táticas.
Analistas militares também estão impressionados com os fracassos
Analistas militares ocidentais também se debruçaram sobre as imagens de Bilohorivka e dizem que a tentativa de travessia do rio demonstrou uma impressionante falta de senso tático. Tudo indica que os comandantes russos, desesperados por conseguirem progressos, apressaram a operação. Se as estimativas de que centenas de soldados foram mortos e feridos estiverem corretas, este é um dos combates mais mortais da guerra até ao momento.
O conselheiro do autarca de Mariupol, Petro Andryshchenko, afirmou também que familiares dos mobilizados pelas forças da República Popular de Donetsk estão a realizar protestos em massa contra a mobilização militar na cidade de Donetsk.
Embora o Instituto para o Estudo da Guerra não tenha conseguido verificar estas denúncias de forma independente, o descontentamento nas áreas ocupadas pelos russos sugere uma "falta geral de planeamento por parte das autoridades russas", agora agravada por perdas cada vez mais evidentes entre o exército de Moscovo.