Guerra na Ucrânia

Ataques a civis ucranianos com bombas de fragmentação foram liderados pelo general russo que arrasou Alepo, na Síria

Família chora a morte de civil, na guerra da Ucrânia
Família chora a morte de civil, na guerra da Ucrânia
Anadolu Agency

Há semelhanças nos estragos e derramamento de sangue vistos em Kharkiv, na Ucrânia, e Alepo, na Síria. As ordens para utilização de sistemas de munições múltiplas são do mesmo coronel general, Alexander Zhuravlyov

As forças lideradas por Moscovo tinham lançado contra Kharkiv (Carcóvia) múltiplos foguetes cluster Smerch de 300 mm, projéteis que libertam 72 munições para atingir uma área equiparável à de um campo de futebol. Margarita Kiriukhina, que aguardava numa fila para conseguir água potável para a família, tentava alhear-se dos estrondos nas proximidades. Um assobio precedeu uma série de gritos. Passaram-se apenas alguns instantes até Margarita Kiriukhina sentir a perna cortada, e a mão e a testa atingidas também por estilhaços. Na fila, um dos homens perdeu dois dedos. As imagens captadas em vídeo mostram ainda um pé decepado a apenas alguns metros de distância, e os esforços de uma mulher que, vendo outra caída e quase decepada, usa uma coleira de um cão para a tentar salvar.

A história é contada pela CNN, que avança que os foguetes Smerch não foram apenas disparados contra Kharkiv nos últimos dias de fevereiro, logo após o começo da guerra na Ucrânia. Munições deste tipo, que causam efeitos devastadores, foram recursos muitas vezes utilizados na guerra civil na Síria. Os ecos dos bombardeamentos em Kharkiv assemelham-se aos dos inúmeros ataques realizados pela Rússia para ajudar o Presidente sírio Bashar al-Assad, em 2015.

O mesmo coronel general

Através da análise de imagens de satélite, em colaboração com o Centro de Resiliência na Informação e investigações no terreno, a CNN identificou a brigada que lançou o ataque com munições de fragmentação nos bairros residenciais da segunda maior cidade da Ucrânia, no dia em que Kiriukhina e os vizinhos foram atacados. Essa brigada responde diretamente ao mesmo líder militar que supervisionou um dos capítulos mais brutais da guerra na Síria, o coronel general Alexander Zhuravlyov. Trata-se da 79.ª Brigada de Artilharia russa, com sede na região de Belgorod, na Rússia.

Kharkiv
Anadolu Agency

De acordo com os especialistas militares ouvidos pela CNN, Alexander Zhuravlyov é o único comandante com autoridade para ordenar um ataque com foguetes Smerch no território sob sua jurisdição, já que está em causa uma arma cuja utilização necessita de "aprovação sénior". Zhuravlyov, de 57 anos, esteve destacado na antiga Checoslováquia pela então URSS, na década de 1980. Após o colapso soviético regressou à Rússia para servir, inicialmente, em unidades de tanques.

Mobilizado para a Síria por três vezes, Alexander Zhuravlyov tornou-se o comandante das tropas russas no país em julho de 2016: Moscovo via-se a braços com uma luta sangrenta para capturar a parte leste de Alepo, controlada pelos rebeldes.

Alexander Zhuravlyov, à direita de Putin
ALEXEY NIKOLSKY

Sob a liderança de Zhuravlyov, os militares multiplicaram rapidamente os ataques ao território controlado pelos rebeldes e completaram o cerco da cidade. A consequência direta foi um grande número de mortos, mas cristalizou-se também uma tática que veio a definir a intervenção da Rússia na Síria: sitiar, fazer as cidades sucumbirem à fome, bombardear e esperar uma rendição.

Sob o comando de Alexander Zhuravlyov, deu-se um aumento dramático nos ataques com munições cluster. De acordo com o Centro de Documentação de Violações na Síria, que documenta o desrespeito dos direitos humanos no país, foram usadas por 137 vezes em Alepo entre 10 de setembro e 10 de outubro de 2016, marcando um aumento de 791% no número médio de ataques deste tipo em relação aos oito meses anteriores. Apesar das provas e relatos, o Ministério da Defesa da Rússia rejeitou as acusações de que estaria a usar munições cluster na Síria.

"As feridas são as mesmas"

Ativistas e organizações humanitárias procuraram alertar o mundo. Sonia Khush, a então diretora da "Save the Children" na Síria, chegou a referir que havia "crianças com membros recém-amputados ou com materiais esféricos embutidos nos seus tecidos musculares por causa do uso dessas armas terríveis e indiscriminadas".

A CNN conversou com várias testemunhas oculares em vários dos bairros que foram alvos de 11 ataques com foguetes Smerch entre 27 e 28 de fevereiro, em Kharkiv. As munições de fragmentação deixaram as ruas carregadas de feridos, carros em chamas e vidros na via pública. Uma testemunha ocular detalhou que cerca de 12 pessoas ficaram feridas apenas no seu prédio após um único ataque. "Pedaços que explodem e espalham estilhaços perigosos" foram vistos por vários civis. Os restos de foguetes detetados em Kharkiv, bem como as marcas das queimaduras provocadas pelos projéteis, permitiram à CNN apurar a direção do ataque, bem como a sua origem: Belgorod, na Rússia, perto da fronteira com a Ucrânia.

As grandes pilhas de munições por detonar levaram Mark Hiznay, especialista em armas da Human Rights Watch, a considerar que os ataques com munições cluster aconteceram a uma escala que não era vista há anos. O recurso a este material de guerra supera, por exemplo, a guerra de 2006, entre o Líbano e Israel, durante a qual os militares israelitas lançaram cerca de quatro milhões de munições de fragmentação, de acordo com as Nações Unidas.

As bombas de fragmentação são proibidas ao abrigo de um tratado internacional - a Convenção de 2010 sobre Munições Cluster - que proíbe o uso, transferência, produção e armazenamento destas armas. Isto porque muitas munições podem não explodir com o impacto, deixando materiais perigosos em campos e áreas urbanas que podem matar ou mutilar pessoas. Rússia, Ucrânia, Estados Unidos da América e Israel estão entre os países que não são assinaram o tratado.

Ataques em Alepo, Síria
Anadolu Agency

No entanto, o ataque indiscriminado a civis pode ser interpretado como crime de guerra, como deslinda a CNN e o Expresso já explicou. Estão em causa violações às Convenções de Genebra e ataques desproporcionais à necessidade militar - por isso, a comprovar-se em sede própria o que apurou a investigação da CNN, o general Zhuravlyov e outras pessoas da cadeia de comando podem ser acusadas.

Um médico que tratou os feridos de guerra em ambos os conflitos ficou impressionado com as semelhanças. As pessoas chegavam ao hospital de Kharkiv cortadas por estilhaços, marcadas na pele e nos músculos, com amputações, fraturas expostas ou traumatismo craniano. O cirurgião ortopédico com nacionalidade síria e norte-americana Samer Attar, que trabalhou em Alepo enquanto as tropas de Zhuravlyov sitiavam a cidade, foi de Chicago até à Ucrânia, alimentando a esperança de ajudar os médicos ucranianos a lidar com a vaga de feridos de guerra.

O especialista descreveu as feridas que tratou em Kharkiv e as que viu em Alepo, em 2016, como "as mesmas".

Feridas de guerra, em Kharkiv
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As mais altas honras militares: "Herói da Federação Russa"

Em dezembro de 2016, os rebeldes no leste de Alepo renderam-se e o Governo sírio e as forças russas recapturaram o território. Com o fim dos combates em Alepo, Zhuravlyov deixou o comando na Síria e regressou à Rússia, onde foi premiado com as mais altas honras concedidas a um comandante russo: as de "Herói da Federação Russa".

Promovido duas vezes no ano seguinte, e já comandante do Distrito Militar Ocidental, Zhuravlyov disse, em entrevista, que a Síria lhe tinha ensinado o valor da "engenharia militar" e que as lições aprendidas no terreno estavam a ser integradas como um "componente orgânico" de todo o treino militar russo.

Outro general russo que serviu na Síria ao lado de Zhuravlyov – o tenente-general Aleksei Zavizion – foi nomeado vice-general de Zhuravlyov no mesmo mês. Um ano antes, Aleksei Zavizion tinha liderado um grupo de combatentes separatistas que ocuparam território na região do Donbas, de acordo com os serviços secretos da Ucrânia. Os serviços de informação militar da Ucrânia também acusam Zavizion de ser autor de ataques com sistemas de lançamento múltiplo de foguetes em áreas residenciais no Donbas. Aliás, em 2017, a Ucrânia chegou a indiciar Zavizion, acusando-o de realizar crimes de guerra.

Os dois altos responsáveis militares russos serão, de acordo com a CNN, os responsáveis ​​pelos alegados crimes praticados contra civis em Kharkiv e noutras cidades.

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