Exclusivo

Guerra na Ucrânia

Ucrânia: “sistemas pensados para ser usados entre exércitos” estão a ser “usados contra civis” e esse “legado” perdurará muitos anos

Campo minado em Donetsk, em janeiro de 2022
Campo minado em Donetsk, em janeiro de 2022
ALEXANDER NEMENOV

Minas e bombas de fragmentação são armas proibidas pela lei internacional, mas o seu uso tem sido documentado na Ucrânia. Quando os exércitos partem, os explosivos ficam para trás e têm um “efeito psicológico importante”, causam baixas e atrasam a reocupação. Desminar será um “processo complexo e demorado”, alerta tenente-coronel ouvido pelo Expresso

“Na Ucrânia, o legado de um único mês de guerra levará décadas a resolver.” As palavras são de António Guterres numa mensagem divulgada a 4 de março para assinalar o Dia Internacional de Consciencialização sobre os Perigos das Minas Terrestres.

Ao 50º dia de guerra a situação é agora ainda pior. As forças russas saíram de várias áreas que ocuparam durante semanas, mas ao rasto de morte e destruição que deixam para trás soma-se um perigo deixado escondido.

“Os invasores deixaram minas em todo o lado. Nas casas, nas ruas, nos campos. Minaram as propriedades das pessoas, os carros, as portas. Conscientemente, fizeram de tudo para tornar o retorno a essas áreas após a desocupação o mais perigoso possível”, afirmou no mesmo dia Volodymyr Zelensky.

O Presidente da Ucrânia fala em “dezenas se não centenas de milhares de objetos perigosos” deixados no norte da Ucrânia após a retirada das tropas do Kremlin. “Estes são munições que não explodiram, minas, armadilhas.”

Segundo dados avançados pelos serviços de emergência ucranianos na terça-feira pelo Telegram, estão a ser removidos em média seis mil explosivos por dia. No total, desde o início da invasão, já foram encontrados mais de 54 mil dispositivos.

Pedro Marquês de Sousa considera ser “difícil estimar” quanto tempo poderá demorar o processo de limpeza do país. Embora ache que as décadas apontadas pelo secretário-geral da ONU possam ser um “exagerado”, o tenente-coronel do Exército na reserva sublinha que este “é um processo complexo e demorado” que no caso ucraniano será ainda mais complicado por se concentrar sobretudo nas áreas urbanas.

Míssil na vila de Lysychansk, Donbass, a 11 de abril de 2022
Anadolu Agency

Minas terrestres estão a ser usadas pelos dois lados

As minas terrestres são engenhos explosivos colocados no chão que visam causar dano no inimigo, explodindo quando este passa por cima ou na proximidade do dispositivo. Existem dois tipos de minas: as antipessoais e as anticarros.

“As minas, por princípio básico na tática militar, são utilizadas por quem está à defesa”, explica o militar português. “O exército da Ucrânia, por exemplo, utilizou minas anticarro em 2014 perante a ameaça dos separatistas em Donbas”. Desde o início da invasão, tiveram um importante papel para travar o avanço das tropas russas.

“Por outro lado, à medida que o exército que fez a ofensiva vai controlando áreas, cria campos de minas para interditar e impedir o exército ucraniano de recuperar determinadas zonas. Quanto teve que abandonar algumas cidades, o exército russo deixou os edifícios armadilhados para causar baixas durante a reocupação.”

Estas armadilhas podem também incluir EEI (engenhos explosivos improvisados). Por exemplo, são usadas granadas de mão para armadilhar portas que quando abertas causam uma detonação.

O resultado tem um “efeito psicológico importante” por representar um risco constante tanto para militares como civis. No dia 4 de abril, relata o New York Times, um homem de 40 anos morreu perto de Hoholiv, a 40 quilómetros de Kiev, depois de abrir uma bagageira de um carro abandonado que estava armadilhada. Os serviços de emergência já pediram à população que não entre nas casas sem chamar as autoridades.

Os mecanismos são muito mais sofisticados do que as imagens que temos dos filmes

Por outro lado, os russos estão também a usar minas de “última geração”, as POM-3. Também conhecidos por “medallion” (“medalhão”), estes engenhos estão equipados com um sensor sísmico que capta os passos que se aproximam e distingue eficientemente entre humanos e animais.

Tipicamente lançadas por foguetes, aterram com paraquedas e ficam armadas no chão. Quando detectam um alvo, lançam a carga que explode no ar (a cerca de 1,5 metros de altura) e espalha estilhaços com capacidade de mutilar e matar quem for apanhado num raio de 16 metros.

“A mina antipessoal tradicional era pequenina e redonda, sendo colocada à mão pelos sapadores, e implicava ou uma pessoa ou uma viatura pisar [o engenho]. A pressão premia um precursor, como se fosse uma agulha que picava carga explosiva e iniciava detonação”, explica o ex-professor da Academia Militar.

“Agora já não é preciso propriamente pisar a mina. As POM-3, por exemplo, e as minas modernas anticarro funcionam por aproximação.” Há também modelos com temporizador. Simultaneamente, são ainda mais difíceis de detectar porque têm cada vez menos partes metálicas, sendo substituído por plástico ou até cartão.

Muito usadas nas últimas décadas, as minas antipessoais estão banidas pela lei internacional desde 1997. “O Tratado de Ottawa só cobre minas antipessoais porque considerou-se que estas não conseguem distinguir um combatente de um inocente. As minas anticarro, nesse contexto, permaneceram sempre válidas porque se assume que são enterradas fora do asfalto (visando os combatentes, o que é mentira, porque civis também saem da estrada)”

Mais de 160 países ratificaram este tratado, incluindo a Ucrânia e Portugal. Mas os países que têm indústria militar, nomeadamente Rússia, EUA, China e Índia, nunca aderiram. A guerra na Ucrânia abre um precedente. Pela primeira vez, um país não-assinante está a usar armamento proibido no território de um país assinante. Na opinião de Pedro Marquês de Sousa, isto pode constituir “entre tantos outros, eventuais casos que possam depois ter o tratamento de crimes de guerra e um sancionamento internacional”.

Minas não são os únicos vestígios perigosos no chão ucraniano

Na Ucrânia, há um outro perigo no solo: as bombas de fragmentação. Trata-se de um tipo de míssil (“cilindro gorducho”) que quando acionado liberta uma “chuva” de fragmentos que podem atingir uma área do tamanho de um campo de futebol.

Neste caso existem três tipos: antipessoais (para usar contra tropa em campo aberto), anticarro (visa veículos blindados) e incendiárias (com uso estratégico, como destruir órgãos logísticos como paióis ou reservas de combustíveis).

É este tipo de armamento que se acredita ter sido utilizado na semana passada no ataque à estação de comboios em Kramatorsk (e que causou pelo menos 59 mortos). No caso, o especialista português acredita que o mais provável é que tenha sido uma combinação de dois tipos de bombas de fragmentação (incendiária e antipessoal) lançadas por lançador Toshka (modelo soviético que tanto Rússia como Ucrânia usam).

Na fotografia do míssil encontrado vemos o resto do míssil, nomeadamente o seu motor. A ogiva foi acionada libertando 50 munições que por sua vez largam 316 submunições (modelo 9N24). “A bomba mãe que lança submunições e isso é que terá causado as baixas que causou”, explica Pedro Marquês de Sousa.

“O problema destas munições é que muitas destas submissões não detonam. Ficam no terreno armadas e despertam o interesse de crianças e da população civil, que vai lá mexer. É uma munição que não detonou mas pode detonar. É quase o equivalente a uma mina antipessoal, muito parecida às POM-3.”

Esta margem de erro contribuiu para que também este tipo de munições estejam proibidas pela lei internacional. O tratado, assinado na Conferência de Dublin em 2008, não foi ratificado nem pela Ucrânia nem pela Rússia.

“Estes sistemas estão pensados para ser usados entre exércitos. Esta guerra fica na história porque os estão a usar contra civis”, afirma o tenente-coronel.


Um legado prolongado que mata sobretudo civis e crianças

O problema das minas e outras munições não detonadas é complexo e tende a prolongar-se no tempo. “As guerras deveriam terminar quando cessam os combates”, defende o Comité Internacional da Cruz Vermelha no seu website. “Porém, as minas antipessoais continuam a matar e mutilar muito tempo depois do fim do conflito”.

O relatório do Landmine Monitor de 2021 indica que, em 2020, pelo menos 7.073 mortas e feridas em 50 países por este tipo de dispositivos. Os civis são as principais vítimas (80%) e mais de metade são crianças.

Nas áreas contaminadas, as pessoas arriscam a vida para fazer as atividades normais do quotidiano. Cumulativamente, o problema afeta frequentemente populações já fragilizadas, uma vez que estão a recuperar dos efeitos de um conflito armado.

Há pelo menos 60 países assinantes do Tratado de Ottawa que declaram ter áreas minadas em 2020. A lista já incluía a Ucrânia, que ainda antes deste conflito já tinha sido declarada pela ONU uma das áreas mais contaminadas do mundo devido aos vestígios da revolução de 2014 e dos conflitos com separatistas no leste do país. A desminagem ainda não estava concluída quando o novo conflito rebentou.

Da lista constam também três países lusófonos (Angola, Guiné-Bissau e Moçambique).

Principalmente no norte de Moçambique, as minas foram muito usadas durante a guerra colonial e causaram pesadas baixas nas forças portuguesas, como analisa Pedro Marquês de Sousa no livro que lançou no ano passado, "Os Números da Guerra de África" (Editora Guerra e Paz). O problema agravou-se na guerra civil subsequente.

A situação foi semelhante em Angola, país escolhido pela realeza britânica para realizar ações de sensibilização para este problema. Tanto a princesa Diana (1997) como o príncipe Harry (2019) caminharam em campos de minas no país.

Portugal chegou a ter minas antipessoais (adquiridas durante a guerra do Ultramar). Como assinante do Tratado de Ottawa (e de Dublin também), este armamento foi destruído.

No caso da Rússia, a utilização de armamento proibido não é uma novidade. A Human Rights Watch registou uso de minas de origem soviética/russa em mais de 30 países, frequentemente coincidindo com as intervenções do exército russo nestes locais (incluindo Síria, Ucrânia e Líbia). “A Síria foi para os russos um palco excelente [para testar] estas coisas todas e que ninguém ligou porque não era tão fácil ter informação e era noutro lado.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: calmeida@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate