A Rússia fez avisos claros ao longo dos anos, não só em relação à Ucrânia, mas também na Chechénia e no caso da Geórgia, em 2008. Estes avisos foram incompreendidos ou não foram levados a sério pelo Ocidente?
Penso que os avisos foram compreendidos pelos ucranianos. A Rússia já tinha anexado a Crimeia em 2014 e fomentou a guerra na região do Donbas ainda no verão desse ano. Os ucranianos já tinham compreendido que algo deste tipo poderia acontecer. No entanto, antes de a guerra começar, em fevereiro, havia outra opinião por parte do Governo ucraniano acerca de como aconteceria. Se os russos invadiriam em fevereiro era matéria de debate. Penso que o exército e os serviços de informação ucranianos estavam mais perto daquilo que eram as intenções da Rússia. Entre os civis e o Governo, havia opiniões diferentes e incerteza. Isso contribuiu para uma falta de mobilização por parte da Ucrânia até ao último instante.
Para Washington e Londres, também era claro desde o verão. Os Estados Unidos da América e o Reino Unido já tinham manifestado que tinham os serviços de informação a indicar-lhes o que aconteceria. Ambos disseram-no publicamente no ano passado. Isto estava bem compreendido... Não necessariamente a longo prazo, mas a curto prazo. As pessoas sabiam que isto iria acontecer.
São claros os objetivos russos nesta guerra, ou encontram-se numa área cinzenta?As aspirações gerais tornaram-se muito mais claras. Em termos daquilo que a Rússia pretende, no curto ou médio prazo... As aspirações que parecem óbvias não são necessariamente alcançáveis. A Rússia queria, claramente, ou anexar a Ucrânia, ou instalar um Governo fantoche que seria cúmplice e submisso aos interesses de Moscovo. Isso é impossível. Ainda assim, a Rússia ainda quer destruir a Ucrânia de todas as formas que conseguir. Também está a tentar coagir a população, vergando-a. A forma como os militares russos atiram sobre os civis com toda a artilharia, a forma como tratam a população ucraniana nas áreas que controlam... É bastante evidente que estão apenas a tentar 'quebrar' a população ucraniana. Isso não é alcançável, também. Pelo contrário, a Ucrânia está, sem dúvida, a endurecer contra a Rússia. Há uma grande distância entre as aspirações e aquilo que é possível.
Claro que o recuo de tropas em torno de Kiev e o reenvio dessas forças para o leste tornam a concentração militar russa mais realista. A invasão total inicial era extremamente irrealista. Primeiro, porque não esperavam resistência, mas também porque, ao abrirem uma invasão em muitas frentes, não tinham realmente força em nenhuma das frentes para conseguirem atingir objetivos.
A Rússia tem alterado objetivos à medida que se apercebe de quão mal se está a sair nesta guerra.
Sim, tem ajustado os objetivos para que sejam menos ambiciosos. No entanto, ainda não é claro aquilo que pensam poder concretizar. Penso que o próximo mês, quando o conflito se tornar mais agressivo no Donbas, veremos o que é possível ou plausível que a Rússia conquiste. É bastante claro, por causa do comportamento dos russos, que estão em desvantagem. Não esperavam este nível de resistência. Esperavam que metade da população ucraniana lhes desse as boas-vindas e a outra metade se tornasse cúmplice. E esperavam que essa força da opinião pública ucraniana ajudasse à queda do Governo. É como se estivessem em território inesperado e ainda estão a ajustar-se a isso. Penso que é bastante claro, por aquilo que é a mensagem transmitida pela Rússia. Não esperavam esta reação internacional. Esperavam que o Governo de Kiev colapsasse e que, assim, pudessem fazer a defesa plausível do seu discurso sobre esse Governo. Dessa forma, o Governo russo poderia argumentar que o Governo ucraniano realmente não era legítimo. De outra forma, não colapsaria tão facilmente.
A Rússia está a lidar com sanções que não esperava ter de gerir. O Banco Central da Rússia tem bens e reservas congelados na Europa e na América do Norte, o que é um desastre para a Rússia. Eles pensavam que poderiam usar essas reservas para atenuar o impacto de quaisquer sanções que pudessem sofrer. O custo de tudo isto é um desastre. Também queimaram a maior parte das suas pontes diplomáticas. A China e a Índia ainda estão disponíveis, por exemplo, mas queimaram as restantes. A reputação internacional da Rússia está em cacos. E a ideia de que é um país a ser temido também está tremida. Alguma incerteza acerca do desempenho da Rússia e acerca do quanto se modernizou a Armada russa tinham criado um grande receio, mas foi demonstrado que essa modernização não foi profunda o suficiente. Querem parecer o mais credíveis possível, mas a Rússia não é tão assustadora como costumava ser. Por isso, isto é uma tragédia para a Rússia. Uma absoluta tragédia. Ainda assim, continuam a insistir na via militar. Estão a tentar também usar a via diplomática, mas os líderes, nos órgãos de comunicação e publicamente, tentam usar narrativas... Tentam adaptar-se à nova situação, mas ficaram encurralados nela e não estão a lidar bem com isso.
Um dos argumentos usados pelo Kremlin é o de que foi prometido à Rússia que a NATO não se alargaria para tão perto, para os territórios fronteiriços. Como a Guerra Fria terminou, não há qualquer argumento que suporte este alargamento, exceto se a Rússia continuar a ser vista pelo Ocidente como ameaça ou como inimigo: é isto que Vladimir Putin alega. Mas o objetivo da NATO e do seu alargamento não é intimidar a Rússia, correto? Qual é?
Eu compreendo a narrativa de Putin e discordo dela. Ele fala de algo que foi dito pelo Presidente Ronald Reagan a Mikhail Gorbatchov, nos anos 1980. Penso que isso foi apenas um dos aspetos que foram discutidos naquela época. Não era um compromisso vinculativo. Muitas coisas foram ditas, em muitas frentes. Não havia um acordo escrito sobre isso. À medida que os Estados Unidos e a Rússia negociavam nos anos 1990... Vemos que o panorama geral era bem mais complexo. Richard Holbrooke, um diplomata norte-americano marcante daquela época, muito proeminente durante a crise na Bósnia, reportou algumas das conversas que aconteceram com os russos, sobre a expansão da NATO. Os Estados Unidos da América interpretavam que a NATO poderia alargar-se sem ser vista como uma ameaça pela Rússia, que a Rússia poderia ser vista como um parceiro para a segurança. Portanto, várias outras coisas foram ditas...
Quando Putin diz que as promessas feitas foram quebradas, não está a espelhar corretamente a situação. Também quando falamos da expansão da NATO... É mais correto dizer que a NATO tem uma política de portas abertas. Qualquer país que se queira juntar pode juntar-se. Desde que respondam aos critérios de adesão, podem juntar-se.
Pode ser descrito como uma teoria da conspiração, porque todos os membros da NATO se juntaram voluntariamente e é preciso atender a condições. Esta ideia de que se trata de um esquema abrangente e global por parte dos EUA não reflete a realidade. A forma como a Rússia se comporta com a Ucrânia demonstra como os argumentos do Kremlin são facciosos. Os Estados do leste juntaram-se à NATO precisamente porque querem garantias de segurança contra a ameaça deste tipo de agressão. O facto de a Rússia ter iniciado esta ofensiva contra a Ucrânia explica realmente por que estes países queriam juntar-se à NATO.
Os Estados Unidos investiram, nos últimos anos, numa política de vigilância global e de instalação de malware em sistemas estruturais em alguns setores de vários países. A Rússia também tem desenvolvido a sua capacidade de realizar ciberataques. Se este conflito escalar, a guerra híbrida poderia acontecer entre estes dois países?
A Rússia poderia tentar, mas é difícil dizer... Os Estados Unidos já foram alvo de grandes ciberataques no passado. Estou a falar do ramsonware usado no setor da energia, que foram muito prejudiciais. A hipótese de a Rússia ou outro país ter a capacidade de realmente desligar partes críticas das infraestruturas norte-americanas é mais questionável. Penso que ninguém realmente sabe.
Algumas empresas de comunicações ucranianas queixaram-se de terem sofrido ciberataques, mas esta estratégia pode ser alargada, quiçá para outros países?Pode. Talvez a Ucrânia seja o melhor exemplo, porque é um país onde a Rússia tem estado mais ativa e com menos limitações. E a Ucrânia é a prioridade neste momento, e há medidas nesse domínio. Este pode ser o teste para a Rússia, para perceber o quão boa ou eficaz é em ciberataques.
Em janeiro, a Rússia atacou ministérios ucranianos e foi um evento crítico de ciberataques, porque permitiu extrair uma série de moradas e registos de veículos de civis. Pelo que percebemos, isso faz parte de um 'mapeamento' e de um plano de monitorização de civis para auxiliar a invasão. Isso deu-lhes muita informação e acessos que permitem concluir que estavam a identificar pessoas. Sabemos que fizeram isso. Estavam a identificar os civis que poderiam oferecer resistência e aqueles que poderiam favorecer uma invasão russa. A Rússia analisou a população ucraniana ao pormenor e, se pensarmos sobre como podemos controlar uma população inteira, é útil associarmos pessoas a casas e carros, para saber se se deslocam e para onde se deslocam. Isso permite estabelecer alvos entre estas pessoas, sobretudo se resistirem. Vimos que, em Bucha, um dos métodos utilizados foi a perseguição de pessoas que os russos pensavam que poderiam resistir.
No entanto, a Rússia falhou na tentativa de bloquear as telecomunicações na Ucrânia, exceto em Mariupol. Parte disso deve-se à resiliência das três principais empresas de telecomunicações ucranianas: Kyivstar, Lifecell e Vodafone Ukraine, que juntaram os seus serviços, logo a 25 de fevereiro. A rede conjunta fez com que os ucranianos pudessem continuar a comunicar. A Ucrânia tem recolhido muita informação a partir daquilo que os cidadãos gravam e publicam nas redes sociais, o que dá um conhecimento muito mais vasto ao Governo ucraniano. Agrega toda a informação e fornece uma imagem muito completa daquilo que os russos estão a fazer em território ucraniano. O que tem sido atribuído à Rússia - as suas ações - é muito prejudicial para este país, politicamente falando. Também ajuda a perceber qual é a artilharia e o material de ataques aéreos que têm sido usados. Por isso, se a Rússia atingisse realmente as telecomunicações ucranianas, seria muito crítico. Falharam nesse objetivo, exceto em Mariupol, porque destruíram as torres de forma material, com ataques aéreos. Diria que as capacidades russas na área dos ciberataques não parecem ser muito eficazes. Têm algumas competências, mas, para se ter domínio da cibersegurança, é preciso afetar, destruir estruturas críticas.
Donald Trump foi eleito, em 2016, com a interferência russa. Existe agora a possibilidade de uma situação semelhante acontecer em França, dada a proximidade de Vladimir Putin e Marine Le Pen?
A única coisa que posso dizer é que estou preocupado.
A oposição interna na Rússia ainda não causou qualquer problema ao regime. No entanto, há um número considerável de baixas entre as forças russas. As famílias não estão a manifestar-se nas ruas, chorando a dor da perda dos seus filhos, netos... A contenção conseguida por meio de intimidação nos 'media' é suficiente para adiar, por muito mais tempo, uma explosão de contestação por parte da população?
A Rússia tem sido muito bem-sucedida internamente a vender os seus argumentos e a sua versão daquilo que está a acontecer na Ucrânia. Controlando as televisões, levando ao encerramento dos 'media' independentes... A única forma de outra informação entrar é através de 'media' estrangeiros ou da internet. E, entre as gerações mais velhas, que consomem a informação tradicional, a propaganda é bastante bem sucedida. Há uma grande parte da população russa que acredita na narrativa do Governo russo. Mesmo entre as pessoas que estão reticentes, ou que não acreditam necessariamente no Governo, 15 anos de prisão, como consequência de protestos, são um fator dissuasor bastante forte.
Há mães que protestam, claro, mas é um fenómeno restrito. É preciso procurar cautelosamente nas redes sociais, nos locais certos. Isso não se está a traduzir em manifestações organizadas. Com pessoas como Alexei Navalny na prisão - e não é apenas Navalny, porque ele nem é assim tão popular; é apenas respeitado por um grupo pequeno de pessoas, mas não é visto como um líder de uma oposição séria -, não há também pessoas que possam assumir o papel de opositor. Não há celebridades a protestar contra a guerra; a maior parte das celebridades russas, ou está em silêncio, ou transmitem a narrativa do partido no poder. Não há líderes que pareçam estar perturbados com isto.
Porém, a situação vai tornar-se mais difícil nos próximos meses. O número de militares russos que já morreram e que estão hospitalizados... Os hospitais na Bielorrússia estão cheios de corpos dos russos que morreram. Um número desproporcional de militares mortos nasceu em 2003. São miúdos com 18 anos e meio... A Rússia não tem sido muito eficaz na recolha dos corpos do seu pessoal, em recuperar os seus mortos. Há também muitos corpos de militares russos que foram recolhidos pelos ucranianos. Alguns dos russos que morreram poderiam ter sido salvos se socorridos com prontidão, a tempo; muitos não chegaram aos hospitais. Muitos ferimentos não seriam fatais, se tivesse havido tratamento. Estes óbitos vão ter eco nas próximas semanas ou meses. Muitas pessoas vão ser dadas como desaparecidas e outras vão ficar incapacitadas.
Por exemplo, da frente a norte, em Kiev, muitos regressarão a casa com graves impactos psicossociais, mas ainda não vimos isso a manifestar-se. É algo a que temos de estar atentos nos próximos meses: o impacto que isto terá internamente na política russa. O impacto das sanções também vai tornar a vida mais difícil. Só que o Governo altera a história e acusa o Ocidente, a comunidade internacional, em especial a NATO. É provável que a população conclua que este é só mais um exemplo de como a NATO é prejudicial. É difícil saber como isto se vai repercutir internamente, mas haverá uma dinâmica política que pode evoluir em uma ou outra direção.
A população russa estará alinhada com o Kremlin no sentido de pensar esta guerra com paciência, pensando que há tempo para a obtenção de objetivos? É recorrente a impaciência tomar conta dos povos, quando se começam a aperceber que as tais 'operações militares' não são rápidas e, na verdade, nunca mais acabam...
Penso que a população russa não está mobilizada para uma guerra ainda, e é algo que quer evitar. Isto tem sido divulgado, entre a população média, como uma operação especial e não como uma guerra a larga escala. O Governo russo está bastante relutante quanto a admitir isso e acredito que, quando precisarem de dizer que, para dominarem partes da Ucrânia, tiveram de recorrer a uma mobilização a grande escala, será muito prejudicial para a imagem do Kremlin. É algo que não deixará a população russa satisfeita. Apesar de parecer que o povo russo apoia Putin, muitas pessoas que não estão certas daquilo que poderá estar a acontecer, ou que culpam a NATO, entendem, ainda assim, que a Rússia invadiu a Ucrânia. Se internamente se disser que o conflito escalou, isso não será bem compreendido no país. Acredito que correrá muito mal, sobretudo somando-se a isso o efeito das sanções. O tempo, aliás, joga a favor da Ucrânia, mais do que da Rússia. Uma guerra longa será extremamente má para a Rússia.
Afinal em que se radica a nostalgia de Putin?
Para os especialistas é bastante difícil compreender o que se passa dentro da cabeça de Putin, mas podemos analisar as suas declarações públicas. Parece que ele subscreve a ideia de que a Ucrânia faz parte da sua História e que cai na esfera de influência da Rússia. Parece claro que Putin acredita que a Ucrânia deve ser parte da Rússia ou ser-lhe submissa.
Isso não é necessariamente 'nostalgia soviética', porque as declarações de Putin sobre a União Soviética têm sido ambíguas e contraditórias. No entanto, quanto às ideias que tem sobre a Ucrânia... Se há algo da União Soviética que colhe a sua nostalgia é o domínio da Ucrânia.
Já dissemos que estrategicamente a Rússia não se está a sair bem, apesar de uma preparação que terá sido de anos. Que mudanças táticas podemos esperar na guerra contra a Ucrânia?
Já começamos a ver essas mudanças.
Estão a dirigir-se para leste...
Sim, estão a ir para leste. Ainda têm cinco linhas de esforços. Ao abandonarem Chernihiv, Sumy e Kiev, têm uma tarefa mais fácil. Estão a avançar para sul, a partir de Kharkiv, para Kramatorsk. Estão a apoiar os separatistas de Donetsk e Luhansk, empurrando diretamente quem vem do Ocidente nas linhas de contacto. Esta linha de avanço é particularmente importante, porque força as tropas ucranianas que lá estão a enfrentarem outros combates. Os ucranianos parecem bastante reticentes em abdicar de território, sobretudo depois do que aconteceu em Bucha.
O cerco a Mariupol está praticamente completo. A cidade deverá capitular nos próximos dias. Está a lutar até à morte. No fim de semana, as forças russas conseguiram furar o cordão da resistência ucraniana e dividiram-no ao meio. Agora, a resistência ucraniana está dividida em duas pequenas partes, por isso as tropas russas conseguem avançar mais livremente na cidade. Os movimentos são lentos, mas a situação ucraniana é muito má, porque as forças têm muito poucas munições, muito pouca comida e água. Os russos também estão exaustos, mas as tropas ucranianas já não têm condições para lutar.
Acredito que Mariupol cairá muito brevemente. Posso estar errado. Espero estar errado. Quando isso acontecer, também libertará as forças russas para lutarem em outros lugares. Se Mariupol se aguentar por muito mais tempo, os russos enfrentarão o dilema de onde deverão instalar ou manter os seus esforços.