Exclusivo

Guerra na Ucrânia

Keir Giles: "A Rússia sabe que a probabilidade de ser responsabilizada por crimes de guerra é bastante remota"

Keir Giles
Keir Giles
Direitos reservados

Keir Giles viveu, durante vários anos, na década de 1990, na Rússia e noutros territórios da antiga União Soviética. O especialista em conflitos na Eurásia e em questões de segurança da Rússia garante que a Europa não tem motivos para estar descansada, já que a guerra iniciada na Ucrânia acabará por se estender a países que parecem para já improváveis, como a Finlândia e a Polónia

Especialista em questões de segurança que afetam a Rússia e as Forças Armadas da Federação Russa e diretor de investigação do Centro de Estudos de Conflitos, Keir Giles passou os primeiros anos da década de 1990 na Rússia e em países pós-soviéticos. O autor britânico, especialista em questões da Eurásia, vê sem surpresa a guerra que, como diz, tem como primeiro alvo a Ucrânia, mas que não se ficará por aqui. Polónia e Finlândia, antigas ambições da URSS, farão parte dos planos belicistas de Putin.

Em entrevista ao Expresso, Keir Giles acusa as forças russas de recorrerem a métodos similares àqueles que foram aplicados pelos nazis durante a II Guerra Mundial, e deixa um alerta à União Europeia (UE) e à NATO: é preciso alargar as ajudas à Ucrânia, porque esta é uma guerra contra a Europa.

Bucha marca uma viragem na guerra? Devemos esperar que os acontecimentos deste conflito se precipitem de alguma forma, que se tornem mais violentos?
Acredito que o que Bucha mostra é que o que está em risco para a Ucrânia é cada vez mais claro. Talvez seja até um dissuasor da disposição ucraniana de fazer concessões para atingir um cessar-fogo ou até de render-se à Rússia. Ainda ouvimos políticos ocidentais dizerem que os combates devem chegar ao fim, também por parte da Ucrânia, que deve encontrar termos que sejam aceitáveis para a Rússia. Mas, agora que se está a tornar cada vez mais claro o que está a acontecer nos territórios ocupados, deve ser óbvio que a Ucrânia não tem outra hipótese a não ser lutar para se libertar dos assassinatos, violações e deportações. Por isso, estes acontecimentos fazem com que haja menos desculpas por parte dos aliados ocidentais para diminuírem os seus esforços de apoio à Ucrânia, como no envio de equipamento militar, ou dissuade-os de tentarem encontrar um fim para o conflito que resulte numa Ucrânia partida.

Pelo contrário, estes acontecimentos devem servir para evidenciar que os países ocidentais devem aumentar o seu apoio, para que, não só a Ucrânia não perca a guerra, mas seja bem sucedida em empurrar a Rússia para trás, recuperando os territórios que estão sob domínio russo.

Volodymyr Zelensky já disse que os militares russos enfrentarão penas pesadas quando e se os crimes de guerra se vierem a comprovar. Estas trocas de acusações, mais acesas, podem ter um efeito negativo no decurso das negociações?
Penso que, diretamente, não. A Rússia sabe que a probabilidade de ser responsabilizada por crimes de guerra é bastante remota. Certamente o Presidente Putin não será levado a tribunal tão cedo. O cenário com que muitas pessoas sonham, de verem os russos julgados após a ocupação da Ucrânia, só poderá ocorrer bem depois de a Rússia ser derrotada. E estamos muito longe disso. Ao mesmo tempo, nos 'media' russos, além de não ser reconhecida a seriedade daquilo que está a acontecer na Ucrânia, há apelos para maiores esforços de genocídio contra os ucranianos. Os 'media' estatais já pedem que os ucranianos sejam eliminados de uma vez.

Por isso, não há qualquer indicação de que nada disto possa atenuar o comportamento da Rússia. Poderá é torná-lo pior.

Há algum fundamento nas dúvidas criadas em torno da autoria dos crimes praticados em Bucha?
Não há dúvidas quanto a isso: a reação por parte da Rússia é tão ensaiada e tão alinhada com outros momentos de negação de todas as atrocidades cometidas por Moscovo... Síria, MH17... Segue um padrão tão repetido que os especialistas em informação russa já tinham previsto os estados por que passaria a comunicação russa, antes mesmo de os eventos acontecerem. A Rússia, sem dúvida, seguiu o guião, um roteiro prévio.

Mas, qualquer pessoa que se sinta em dúvida e que considere que há um fundo de verdade na negação russa, tem apenas de analisar o que a Rússia está a dizer à própria população. Estamos a falar, não de negarem o genocídio, mas de apelarem a que este seja cometido.

De que forma?
Nas televisões russas, continua a ser veiculada a mesma narrativa que já tem dez anos, que é a de que a Ucrânia é administrada por fascistas. Nos órgãos de comunicação estatais, há explicações acerca de como a Ucrânia deve ser removida da superfície do planeta, e a ideia de que os ucranianos são, em grande parte, nazis.

Rejeita, por isso, que a Ucrânia possa estar a exagerar nas suas acusações, ou que a situação em Bucha leve o Governo ucraniano a dramatizar a realidade do resto do país?
Infelizmente, isto não são apenas alegações feitas pela Ucrânia. Os 'media', as testemunhas no local, as fotografias que documentam as mortes em Bucha e em outros locais... Todas estas fontes já desmantelaram uma das teorias russas: a de que estes corpos foram despejados nas ruas após as tropas russas abandonarem a cidade. O que foi mostrado é que os mesmos corpos estavam na via pública antes de os russos saírem. A documentação independente não vem desmentir a Ucrânia. Tudo isto era tão previsível que muitas organizações, como a minha, a Chatham House [anteriormente conhecida como "Royal Institute of International Affairs", é uma organização sem fins lucrativos, não governamental e sediada em Londres, que se dedica ao debate e estudo dos conflitos internacionais] pediam, desde o primeiro dia de guerra, que instituições internacionais se preparassem para recolher provas de crimes de guerra. Sabíamos que iriam acontecer, era apenas uma questão de tempo.

Espero que hoje essas entidades já estejam a documentar os crimes de guerra, formalmente e com organização, em vez de simplesmente tirarem fotografias.

Terá de haver agora uma acrescida capacidade de domínio das emoções por parte das forças ucranianas para não fazer o conflito resvalar?
A Ucrânia será muito cautelosa, no sentido de evitar qualquer ação que possa ser interpretada pela Rússia como algum tipo de resposta ou vingança. Porque, seja o que for que a Ucrânia venha a fazer, a Rússia vai aproveitar. Estou surpreso por ainda não ter visto isso a acontecer. Fará parte do guião russo que a Ucrânia está a cometer atrocidades contra os russos e a Rússia apontará o dedo para qualquer outro alvo para dispersar as atenções que estão centradas naquilo que tem vindo a fazer.

Acredita que a guerra chegou a um ponto em que serão tomadas medidas desesperadas ou em que se poderá perder o controlo dos acontecimentos? Quão delicado é o atual momento?
A Rússia quer que se pense que qualquer escalada levará a algo fora de controlo. Esta é a principal razão que faz com que Putin, de vez em quando, recupere a narrativa da ameaça nuclear. Ele sabe que, após um longo e intenso programa de preparação para este conflito, desenvolvido por uma rede de especialistas em propaganda e influência, que avisava que qualquer tentativa do Ocidente de se interpor no caminho da Rússia levaria a uma escalada fora de controlo, tudo o que tem de fazer é mencionar isso. Os políticos ocidentais ficam imediatamente alarmados e têm a tentação de se distanciarem deste conflito.

Têm sido feitas algumas comparações com conflitos anteriores. Alguma destas faz sentido? A Rússia está a repetir erros cometidos no Afeganistão ou talvez pelos EUA no Vietname?
Entendo... Mas penso que não. Não é um Vietname para a Rússia porque esse foi um conflito muito diferente para os Estados Unidos. O que a Rússia está a fazer assemelha-se muito mais às guerras de anexação nos anos 1940, quando a URSS anexou partes da Finlândia, Estónia, Letónia, Lituânia e Roménia. Há um paralelo direto entre as narrativas sobre as pessoas que a Rússia via como ameaças diretas, mesmo sendo civis inocentes. Foram cometidas atrocidades, homicídios massivos, violações, e foram postos em prática programas de deportação. É um espelho daquilo que a União Soviética e a Alemanha nazi faziam durante a década de 1940. O paralelo não deve ser feito com um conflito dos EUA, mas com a Alemanha nazi, porque estão a ser aplicados os mesmos métodos.

A Rússia está em guerra com a Ucrânia ou com a Europa?
Sabemos que a Rússia tem planos de expansão. O Presidente Putin já disse muito claramente o que quer fazer. A Ucrânia é apenas a primeira fase do seu plano. Ele já disse que quer corrigir aquilo a que chama "catastróficos erros" que se prendem com o fim do império russo, há cem anos. Isso significa que há outros países que farão parte desse império: Finlândia, que faz parte da UE, e Polónia, membro da UE e da NATO. Estes países pertencem à lista de alvos russos.

O facto de esta guerra estar a correr mal à Rússia pode alterar a perspectiva de Putin?
Eventualmente. Dependerá do quanto ele realmente sabe acerca daquilo que está a acontecer. Não sabemos até que ponto a realidade está a interferir com o seu cenário ideal. Não sabemos até que ponto reconhece que a Ucrânia não lhe está a cair no colo.

Também não nos podemos esquecer que a Rússia tem paciência, não está dependente dos ciclos modernos que se aplicam a outros países. Este é o momento pelo qual o Presidente Putin esperou nos últimos 20 anos. Por isso, o tempo que seria necessário, após a campanha na Ucrânia, para reconstruir a Armada russa, as suas forças, para reorientar a economia de acordo com as sanções, determinaria o que demoraria ao regresso às guerras de reconquista. Não será um intervalo de tempo assim tão significativo como seria para um país ocidental.

Ainda há um campo aberto de possibilidades para a Rússia nesta guerra ou as suas oportunidades começam a estreitar-se?
As possibilidades para a Rússia na Ucrânia afunilaram-se, sem dúvida. O que se propuseram fazer nos primeiros dias da invasão total e a ambição atual são bastante diferentes. O perigo para a Ucrânia reside em, se as forças ucranianas forem suficientemente fustigadas e a economia for levada até determinados níveis de destruição, não conseguir manter os esforços de guerra contra a ofensiva da Rússia. Há o perigo de colapso da Ucrânia, e é por isso que os Estados ocidentais têm de garantir apoio crescente ao país. Não falo apenas em equipamentos militares, mas também de ajuda humanitária e de apoio à economia ucraniana, para que possa continuar a funcionar enquanto país.

Os ataques são, de uma forma agora escancarada, dirigidos cada vez mais contra civis. A Rússia está agora a confessar abertamente que é esta a sua estratégia, já não o esconde ao Ocidente?
A Rússia adoraria poder escondê-lo, continuar a dissimular, fingir que não está a acontecer. Mas esta é uma estratégia declarada da Rússia, porque é algo que tem vindo a ser repetido por várias vezes: na Chechénia, na Síria, nas guerras do século XX. Porque funciona, porque a Rússia não subscreve aquelas que são as normas para o Ocidente. Ao ser engenheira de catástrofes humanitárias, consegue colocar pressão sobre o país atacado para que se renda o mais rapidamente possível. Isto para que o sofrimento de pessoas inocentes chegue ao fim. A pressão é também indireta porque o resto do mundo assiste a quão miseráveis são agora as vidas, por exemplo, dos sobreviventes em Mariupol. Querem aliviar o sofrimento destes civis e colocar mais pressão sobre Zelensky. Isto é algo que a Rússia vem tentando desde o quinto dia da guerra, isto é, desde que se tornou evidente que não venceria a guerra imediatamente apenas pela sua superioridade militar. Atacar a população civil tornou-se a opção possível, de forma a vencer o conflito.

Quão difícil será montar o caso contra a Rússia por crimes de guerra?
Nunca é fácil. Há uma série de provas que é requerida. São critérios bastante exigentes, e, por isso, é necessário reunir esforços, mesmo quando toda a gente sabe o que aconteceu. Toda a gente saber não é o mesmo que construir um processo na justiça. Se olharmos para os precedentes, podemos considerar a investigação ao voo MH17 [voo Malaysia Airlines 17], e analisamos o número de anos que foram necessários para apurar a verdade, mesmo quando a verdade era conhecida quase desde os primeiros instantes. Multipliquemos isto por dezenas ou centenas de incidentes a envolverem baixas de civis na Ucrânia e a escala do desafio tornar-se-á clara. Isto é algo em que deveríamos pensar à escala das atrocidades cometidas pelos nazis durante a II Guerra Mundial. Falo na intensidade do esforço humano que terá de se comprometer com esta investigação, documentando os casos e processando-os.

Como serão os próximos dias de conflito? Atrever-se-ia a fazer previsões a prazo? Para quanto tempo?
Para os próximos dias, é fácil. A Rússia continuará a retirar-se dos lugares onde a pressão sobre as forças russas é maior. A Ucrânia continuará a descobrir mais e mais atrocidades, valas comuns, provas de deportações, à medida que recupera e consegue libertar territórios que tinham sido dominados pela Rússia. Mariupol permanecerá sujeita a imensa pressão. A quantidade de mortes e o sofrimento humano na cidade serão realmente conhecidos apenas depois de já não estar nas mãos dos russos. Por isso, não haverá mudanças significativas nos próximos dias, porque a Rússia não estará em condições de montar uma nova ofensiva até recuperar as unidades no norte da Ucrânia, provenientes da Bielorrússia e que serão enviadas para leste.

O que o mais intriga neste conflito?
Bem, eu fiquei muito surpreso com os fracassos militares da Rússia na guerra para a qual treinam há uma década. Foram gastos biliões de rublos na sua preparação. Fiquei surpreendido com a incapacidade russa de conquistar a supremacia aérea na guerra. A forma como a Rússia tem combatido tem sido surpreendente, em termos de eficácia militar, que eu julgaria que seria bastante mais elevada. A forma como a Rússia tem causado tamanho sofrimento humano não me surpreende, infelizmente.

A resistência ucraniana é algo que só surpreendeu a Rússia. Toda a gente que tem prestado atenção à Ucrânia, ao contrário do que tem feito a Rússia, percebe que são mentira todos os mitos criados por Moscovo. A Ucrânia vê-se como um Estado independente, sem dúvida, e acredita que vale a pena defender-se. A última coisa que a Ucrânia quer fazer é render-se, sobretudo agora, que se tornou ainda mais claro o que está em causa. Render-se significaria deixar de existir, ser varrida da superfície da Terra.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate