Guerra na Ucrânia

“Bellingcat”, o grupo que tem monitorizado cada passo da guerra e verificado imagens e informações do conflito: “A Rússia tem sido taticamente desastrosa”

“Bellingcat”, o grupo que tem monitorizado cada passo da guerra e verificado imagens e informações do conflito: “A Rússia tem sido taticamente desastrosa”

Eliot Higgins é o fundador da plataforma de investigação “Bellingcat”. Nos últimos anos, o site dedicou-se a documentar crimes de guerra, primeiro na Síria, e agora na Ucrânia. Em entrevista ao Expresso, o jornalista cidadão expõe as fragilidades táticas da Rússia e defende que o país invasor sairá perdedor deste conflito

“A reinvenção na forma de reportar os factos na era da internet”: é assim que o grupo “Bellingcat” define a prática do seu “jornalismo cidadão”. Quando, em julho de 2014, o avião MH17 da Malaysia Airlines caiu no leste da Ucrânia, a causa manteve-se misteriosa por pouco mais de cinco minutos. Na era pré-digital, seriam necessários meses ou, pelo menos, semanas, para ser obtida uma resposta. Atualmente, a verdade pode ser encontrada com muita celeridade. Imagens divulgadas no YouTube, de um lançador de mísseis, levaram um dos seguidores de Eliot Higgins a geolocalizar os mísseis na Ucrânia, numa cidade sob o controlo de rebeldes pró-Moscovo. Em seguida, foi preciso verificar estes factos.

Fundador e diretor criativo do site de investigação “Bellingcat”, Eliot Higgins dedicou-se a investigações sobre o Kremlin, que expuseram inclusivamente o envenenamento de Alexei Navalny, e hoje o seu trabalho está em grande parte focado no conflito na Ucrânia e em documentar as violações dos direitos humanos. Foi uma década de trabalho no desenvolvimento de investigações, recorrendo a fontes abertas e conteúdos divulgados nas redes sociais, que levou o cidadão britânico a apurar o ofício da verificação. Documentou os crimes de guerra durante o conflito na Síria, e, ao longo dos anos, trabalhou com vários tipos de organizações, advogados e especialistas da área jurídica. No caso da invasão da Ucrânia, Eliot Higgins admite que o objetivo é o de recolher provas que possam ser utilizadas em processos que responsabilizem a Rússia. Em entrevista ao Expresso, o jornalista cidadão explica por que acredita que a Federação Russa está a perder a guerra.

A história desta guerra está a ser bem contada? Quais são as maiores lacunas que deteta na cobertura dos meios de comunicação tradicionais?
O que é único neste conflito, comparativamente com outros anteriores, é que tem havido muita partilha nas redes sociais a partir do cenário de guerra. Penso que as pessoas compreendem como isso pode ser útil, como pode chegar aos jornalistas, que têm meios para o verificar. Vi como, nos últimos dias, a CNN referiu que fez a geolocalização de alguns mísseis, e a geolocalização também foi uma grande viragem. Não consigo imaginar como teria sido esta guerra há uns anos. 

E, mesmo antes de a guerra ter começado, havia pessoas a monitorizar as movimentações das tropas russas. A Rússia dizia que estava em curso um exercício militar, mas víamos no terreno que havia unidades que não se coadunavam com um mero exercício militar. Dava para antecipar que uma invasão ocorreria. Depois, antes da invasão, assistimos a muita desinformação que estava a ser produzida pelos grupos separatistas. Mas esta rede de divulgação de informação online, aliada aos meios dos jornalistas, fazem com que os ‘media’ se vão tornando imunes à desinformação. Esta comunidade é composta por todo o tipo de pessoas, desde as organizações ou plataformas como o “Bellingcat”, que pode verificar dados que lhe chegam através de civis. Esta quantidade de informação que é verificável deu-nos, desde o primeiro dia, uma compreensão mais abrangente sobre o que está a acontecer no conflito. Víamos as munições a serem usadas contra civis, e as imagens chegavam-nos quase imediatamente. Por isso, tornou-se muito difícil para a Rússia construir uma narrativa contrária. O Kremlin alega que está a tomar medidas de proteção e que está a perseguir forças nazis, mas depois vemos bombas a atingirem jardins de infância. 

Por isso, há um grande poder na partilha e há um grande poder na verificação por parte dos jornalistas nesta guerra. 

Já recebeu, durante este conflito, vídeos ou fotografias que se tornaram uma grande notícia depois de serem verificados?
Temos recebidos fotografias, por exemplo, após bombardeamentos de fábricas e de algumas vilas. Enviam-me fotografias das munições, por exemplo. Mas o importante é o que fazemos com isso, documentando para que depois a Rússia possa ser responsabilizada. Muitas vezes, é difícil contar com testemunhas após um cenário tão imprevisível como o da guerra, mas contra esta informação verificada é difícil de discutir.

As pessoas estão a partilhar tanta coisa nas redes sociais… O Telegram tem sido muito útil para acumular informação. É tão interessante ver como, no terreno, as pessoas estão a comprometer-se com esta divulgação, com a denúncia, com a responsabilização. Essa consciência existe agora. 

“Bellingcat”, como há pouco disse, já monitoriza os avanços militares russos há alguns anos. Foram presenciados pelos vossos investigadores sinais que na imprensa tradicional não eram narrados?
Havia muitos sinais suspeitos. Dias antes da invasão, era possível ver unidades militares a chegarem perto da fronteira. Era bastante aparente pelos vídeos gravados naquela zona. Vimos ataques de mísseis provenientes do interior da Rússia, e sabemos que unidades podem ter lançado esses mísseis. No que diz respeito à responsabilização, não basta dizer que houve um ataque russo. É preciso dizer de onde veio, o que foi atacado, e nós temos feito esse trabalho.

Tem seguido os avanços da coluna militar de 64 quilómtros a caminho de Kiev? O que mostram as últimas imagens?
É difícil dizer, neste momento, porque os últimos dias têm sido de muitas nuvens. É difícil ver, mas há muitos indícios que apontam que tem sido difícil avançar. Esta coluna está a tornar-se vulnerável ao ataque aéreo. São quilómetros e quilómetros para percorrer, com muito frio. A temperatura chega a ser de 10º C negativos durante a noite. Estes soldados, para se aquecerem, derrubam árvores e fazem fogueiras, ou então, durante a noite, mantêm os motores ligados, mas isso gasta bateria e combustível. E estes veículos perdem energia muito rapidamente. Também os alimentos começam a escassear e já está a tornar-se muito difícil. Mesmo abastecer esta coluna militar com camiões é uma tarefa dantesca. Penso que é um desastre o que está a acontecer aos russos naquela estrada. Aqueles veículos são completamente inúteis para eles e acredito que cheguem ao ponto de os abandonarem. Não me surpreenderia se, dentro de uma semana, víssemos imagens, de autoria ucraniana, desses veículos abandonados e até de soldados que se renderam, porque, se não se têm comida nem aquecimento, o que se pode fazer? Pode morrer-se de frio e fome, ou passar para o outro lado. 

Exceto se a Rússia empreender grandes esforços para abastecer esta coluna militar, não vejo que haja alternativas. E, incrivelmente, a Rússia não tem o domínio aéreo. Isso é essencial, se pretende proteger a sua coluna militar. Penso que a única razão pela qual a Ucrânia ainda não iniciou ataques aéreos contra esta coluna militar é, de facto, a falta de necessidade de o fazer. Podem simplesmente esperar pela exaustão e rendição dos soldados russos.

Que provas há, neste momento, sobre o quão jovens são estes soldados do exército russo e sobre sabotagens que já tenham acontecido contra a própria força armada?
Tudo indica que há soldados muito, muito jovens, e que há alguns a render-se. Eles não têm muita preparação, nem muito treino, a manutenção do equipamento não está a ser feita como deveria. Vemos muitas imagens de veículos russos a ficarem presos na lama e os pneus também perdem pressão porque não estão a ser mantidos como deveriam. Foram guardados durante três ou quatro anos, a borracha está desgastada, e, quando entram na lama, os veículos ficam presos. Se estamos a atacar uma cidade, é conveniente seguir pelas estradas, mas isso também os torna suscetíveis a armadilhas. Os ucranianos também têm alguns mísseis e podem atacar ao longe. Estrategicamente está a ser uma confusão. Isto não quer dizer que as tropas russas não consigam capturar algumas localidades, mas será muito difícil, e muitas pessoas morrerão de ambos os lados. Terão de usar artilharia para destruir postos que consideram que lhes causarão problemas: edifícios comerciais e residenciais. Os soldados no terreno serão levados a uma situação em que enfrentam fogo cruzado de militares mais bem treinados. Acredito que a guerra ainda vai tornar-se muito sangrenta. 

Pelo que se vê do que acontece no terreno, não se pode então dizer que a Rússia esteja em vantagem nesta guerra.
Não, penso que a Rússia tem sido taticamente desastrosa. Partiram para a Ucrânia com a convicção de que o país colapsaria rapidamente, que o Governo cairia e que levariam Zelensky a tribunal com acusações de genocídio. Isso não aconteceu. Pelo contrário, têm sido forçados a gastar as suas reservas para poucas semanas. E essas poucas semanas estão prestes a chegar ao fim. Vão começar a ter falta de comida, de água, de combustível. O grupo Oryx tem monitorizado o caso dos veículos abandonados e tem fornecido confirmação em imagens desses veículos. Já registou a perda de 800 veículos, incluindo uma grande quantidade de aeronaves. E, observando a munição usada nessas aeronaves, vemos que não é de grande precisão, pelo que os pilotos têm de chegar bem perto dos seus alvos. Isso coloca-os a baixa altitude e mais sujeitos a ataques. Claro que o exército russo tem uma grande frota aérea, mas estes pilotos são difíceis de treinar e estão a ser mortos na guerra. Os russos estão a perder alguns dos seus militares mais proeminentes. Por isso, não está a ser assim tão fácil capturar Kiev. 

Parece que a Rússia está a perder a sua superioridade aérea e isso é um desastre para os russos. Não se pode vencer uma guerra moderna sem domínio dos céus. E em semanas dificilmente arranjarão forma de proteger as suas tropas da força aérea ucraniana. Nessa altura, também poderão render-se porque já não têm água, comida e combustível. Acredito que tudo ainda vai piorar para a Rússia e as sanções económicas vão começar a ter efeitos catastróficos muito brevemente. Nesse momento, teremos uma população muito insatisfeita, principalmente quando começar a ver filhos e irmãos a chegarem em sacos que embalam cadáveres. Chegará o momento em que só se poderá culpar uma pessoa. Penso que este é o maior erro político e estratégico da História da Rússia. 

Ambos os lados do conflito deram machadadas na verdade? Ou podemos apenas falar do caso da propaganda russa?
A Rússia tem mentido desde o início, desde logo com o argumento da luta anti-nazi. Desde então, tem mentido constantemente. Tivemos um embaixador na ONU a dizer que a Ucrânia bombardeou as próprias cidades para fazer a Rússia ficar mal vista. Isso já foi verificado e é também mentira, porque as armas utilizadas nestas localidades são russas. A campanha da Rússia tem sido ridícula e absurda. Claro que podemos falar do número de baixas que a Ucrânia contabiliza, mas isso são imprecisões de cenários de guerra. Podemos sempre verificar as informações emitidas por ambas as partes, mas tudo indica que a Ucrânia ainda não teve de mentir. Não está a sair-se assim tão mal na guerra, o que não seria previsível. Todos nós pensávamos que a Rússia seria manifestamente superior e tem-lhe corrido mal.

Considerando as exigências da Rússia nas reuniões para negociar com a Ucrânia, Putin ainda está convencido de que está a vencer ou a verdade simplesmente não lhe chega, não lhe é transmitida?
Em parte, as pessoas não lhe podem dizer toda a verdade. Em parte, ele não pode ignorar o facto de a Rússia ainda estar em guerra, o que é algo que ele não esperava que ainda acontecesse neste momento. Acredito que ele pensava que a guerra demoraria cerca de duas semanas, e isso incluiria controlar Kiev e fazer o Governo cair. Putin deve saber que a coluna militar ainda está do lado de fora de Kiev e deve questionar-se sobre porque é que ainda não chegou lá. E o facto de haver generais a morrer na linha da frente é um péssimo sinal, porque enviar generais para a linha da frente de combate é algo que não se faz numa guerra moderna, é simplesmente idiota. Penso que ele não está muito satisfeito, honestamente.

Estando a guerra a correr-lhe tão mal, é provável que o dissuada de ir mais longe, além da Ucrânia?
Se ele tinha essa ideia, acredito que tenha mudado de opinião. Se ele não consegue derrubar Kiev… O que resta à Rússia são armas nucleares. Uma guerra convencional nunca conseguirá vencer. E ninguém quer recorrer a armas nucleares. Putin ainda quer mudar-se para alguns palácios e não pode fazê-lo se acabar com toda a paisagem. É possível que perca a cabeça quando perceber como a população russa vai receber as notícias tão trágicas desta guerra.

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