Refugiados ucranianos são bem-vindos. Os outros nem por isso
Uma migrante trata da roupa, num centro de acolhimento disponibilizado pelo Governo da Bielorrússia, próximo da fronteira com a Polónia FOTO: Sefa Karacan / Anadolu Agency / Getty Images
Enquanto a União Europeia, de forma unânime, abre as portas ao acolhimento de cidadãos ucranianos em fuga à guerra, milhares de migrantes e refugiados de outras origens, já em território comunitário, continuam a viver em péssimas condições. Uma recente missão do Parlamento Europeu à Letónia e Lituânia testemunhou candidatos a asilo a viver em regime de detenção
“Se nós desaparecermos — Deus não o permita —, Letónia, Lituânia, Estónia, etc. irão a seguir. Até ao Muro de Berlim, acreditem!” Este cenário dramático, em que a Rússia não se contentaria em dominar apenas a Ucrânia e avançaria Europa fora, foi profetizado, na semana passada, pelo Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.
Não se trata de propaganda ucraniana. O receio de que a guerra possa alastrar a outros países do leste da Europa é real e foi testemunhado, há dias, por sete deputados do Parlamento Europeu durante uma visita à Letónia e à Lituânia, ex-repúblicas soviéticas vizinhas da Rússia. “Senti apreensão face àquilo que está a acontecer. E senti preocupação em relação a uma possível agressão”, disse ao Expresso a eurodeputada portuguesa Isabel Santos, que integrou a missão.
“Estes países vêm manifestando, já há algum tempo, um profundo receio de que possa ocorrer uma agressão. No Parlamento Europeu, assistimos várias vezes às intervenções dos nossos colegas [oriundos desses países] a expressarem esse tipo de preocupações. É algo que está muito presente nesses países. E neste momento, face ao que está a acontecer na Ucrânia, ainda mais receio existe. No Ocidente, se calhar, desvalorizamos um pouco esse sentimento de insegurança…”
Arma de arremesso de Lukashenko
A visita dos eurodeputados aos dois países bálticos — que são membros da NATO e da União Europeia — foi agendada numa altura em que não era previsível o rebentar desta guerra. O objetivo da missão era observar in loco as condições de acolhimento dos requerentes de asilo que, no verão passado, chegaram às fronteiras destes países empurrados pela Bielorrússia.
“Foi um movimento migratório forçado e criado artificialmente por [Aleksandr] Lukashenko”, o ditador bielorrusso, que fez destas pessoas desesperadas “uma arma de arremesso contra a União Europeia”, acusa a eurodeputada. “Este movimento de migrantes e refugiados é identificado por estes países [Letónia e Lituânia] como uma ameaça híbrida, outra forma de fazer a guerra e de os agredir. Há grande apreensão face a qualquer coisa que possa ocorrer, até porque a Bielorrússia, nesta matéria, furta-se a qualquer diálogo.”
A 26 de novembro de 2021, o líder bielorrusso visitou um campo de migrantes, na região de Grodno, e encorajou-os a seguir viagem até à União Europeia FOTO: Sergei Bobylev/Getty Images
Em tempos normais, Letónia e Lituânia recebem, em média, cerca de 100 pedidos de asilo por ano. A manobra de Lukashenko, de incentivo a que milhares de migrantes e refugiados seguissem viagem até à fronteira da UE, levou a que já tenham chegado à Letónia mais de 500 pessoas e à Lituânia cerca de 4500.
“Nós não tentaremos apanhar-vos, bater-vos ou prender-vos atrás do arame farpado”
Aleksandr Lukashenko, Presidente da Bielorrússia, dirigindo-se aos migrantes em território bielorrusso, em novembro passado
“Encontramos as pessoas em centros cuja configuração é de detenção. As pessoas não podem sair desses centros, há famílias de 4-6 pessoas a viver num quarto e quartos com péssimas condições para acomodar tanta gente. A situação é bastante má do ponto de vista dos cuidados de saúde, das condições de higiene, de alimentação e, sobretudo, da saúde mental das pessoas que há meses se veem confinadas a um quarto, corredor e pouco mais. A situação que encontramos na Lituânia é absolutamente dramática. Havia pessoas a dizer-nos: ‘Nós só queremos liberdade’.”
Getty Images
Em causa estão refugiados oriundos, principalmente, da Síria, Afeganistão e Iraque e, em menor número, de países como Camarões, Congo, Iémen e Eritreia. Muitos relatam ter sofrido eletrochoques e outro tipo de agressões, “que configuram tortura”, diz Isabel Santos, para quem “isto não pode ser tolerado”. “Tem de haver vontade política e apoio da União Europeia. O tratamento dado a estas pessoas tem de ser algo que dignifique a sua condição humana”, prossegue a socialista. No caso da Lituânia, “há um discurso muito negativo por parte de vários atores políticos”.
“Há pessoas que nos descreveram terem estado semanas e meses em constantes pushbacks, empurrados da Bielorrússia para as fronteiras da Lituânia e da Letónia e destas para a Bielorrússia. É evidente que se tem de responder à forma como a Bielorrússia viola o direito internacional ao promover este género de movimentos — transforma-se quase num Estado que faz tráfico de pessoas —, mas não podemos dar uma resposta desumanizada e violadora do direito internacional. Não podemos ter dentro da UE um padrão que viola completamente o que está inscrito na Convenção de Genebra [relativa à proteção das pessoas civis em tempo de guerra] e na Carta dos Direitos Fundamentais [da União Europeia].”
A forma como estes migrantes são tratados contrasta com a abertura demonstrada por estes países para receberem cidadãos ucranianos em fuga à guerra. “É muito positivo que haja essa boa vontade e essa grande disponibilidade de acolhimento”, conclui a eurodeputada. “Mas seria bom que esta mobilização positiva em torno dos refugiados vindos da Ucrânia se estendesse também àqueles que já se encontram em território europeu” — e que não são eslavos.
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