Calamidade, outra vez – um ensaio de Anne Applebaum sobre Putin
À semelhança dos czares russos que lhe precederam — como Estaline, como Lenine — Putin também considera a “Ucraniedade” uma ameaça. Não é uma ameaça militar, mas sim uma ameaça ideológica
Meu Deus, calamidade outra vez!
Estava tudo tão pacífico, tão sereno;
Tínhamos acabado de começar a quebrar as correntes
Que prendem o nosso povo à escravidão
Quando pára! Mais uma vez o sangue das pessoas
Está a jorrar…
O poema chama-se ‘Calamidade outra Vez’. A versão original foi escrita em ucraniano, em 1859, e o autor, Taras Shevchenko, não falava metaforicamente quando escreveu sobre a escravidão. Shevchenko nasceu numa família de servos — escravos — numa propriedade no que agora é a Ucrânia central, no que era então o império russo. Tirado à sua família em criança, seguiu o seu mestre para São Petersburgo, onde aprendeu pintura e também começou a escrever poesia. Ali, impressionado com o seu talento, um grupo de outros artistas e escritores ajudou-o a comprar a sua liberdade.
Quando Shevchenko escreveu ‘Calamidade outra Vez’ foi universalmente reconhecido como o poeta mais proeminente da Ucrânia. Era conhecido como Kobzar ou “O Trovador” — nome retirado da sua primeira coleção de poemas, publicada em 1840 — e as suas palavras definiram o conjunto particular de memórias e emoções que agora descreveríamos como a “identidade nacional” da Ucrânia. A sua linguagem e estilo não são contemporâneos. No entanto, parece subitamente importante introduzir este poeta do século XIX a leitores fora da Ucrânia, porque parece subitamente importante tornar este mesmo conjunto de memórias e emoções tangíveis a um público que não vai ler as baladas românticas de Shevchenko. Muito foi escrito sobre as opiniões russas da Ucrânia; muitos especularam sobre os objetivos russos na Ucrânia. O Presidente da Rússia, na segunda-feira, 21 de fevereiro, informou-nos, num discurso de uma hora, que pensa que a Ucrânia não deveria existir. Mas o que significa a Ucrânia para os ucranianos?
Os ucranianos emergiram do Estado medieval de Kyivan Rus — o mesmo Estado de onde também emergiram os russos e os bielorrussos — para, nalgum momento, se tornarem, como os irlandeses ou os eslovacos, uma colónia de outros impérios. Nos séculos XVI e XVII, os nobres ucranianos aprenderam a falar polaco e participaram na vida da corte polaca; mais tarde, alguns ucranianos esforçaram-se por fazer parte do mundo de língua russa, aprendendo russo e aspirando a posições de poder primeiro no império russo, depois na União Soviética.
Contudo, durante esses mesmos séculos, também se desenvolveu um sentimento de “ucraniedade”, ligado ao campesinato, aos servos e aos agricultores que não podiam ou não queriam uma assimilação. A língua ucraniana, bem como a arte e a música ucranianas, foram preservadas no campo, apesar de nas cidades se falar polaco ou russo. Dizer “sou ucraniano” era, em tempos, uma declaração sobre o estatuto e a posição social, bem como sobre a etnia. “Sou ucraniano” significava que as pessoas se definiam deliberadamente contra a nobreza, contra a classe dominante, contra a classe mercante, contra os citadinos. Mais tarde, poderia significar que as pessoas se estavam a definir como sendo contra a União Soviética: resistentes ucranianos lutaram contra o Exército Vermelho em 1918 e, depois, novamente nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial e nos primeiros anos da Guerra Fria. A identidade ucraniana era antielitista, antes da expressão antielitista ser comummente utilizada, muitas vezes furiosa e anárquica, ocasionalmente violenta. Na verdade, alguma poesia de Shevchenko é muito furiosa e muito violenta.
No século XIX, o patriotismo ucraniano, como não podia ser expresso através de instituições estatais como aconteceu com o patriotismo italiano ou alemão na mesma época, foi expresso através de organizações voluntárias, religiosas e caritativas, exemplos iniciais daquilo a que agora chamamos “sociedade civil”: os grupos de estudo e de autoajuda que publicavam jornais e revistas, fundaram escolas e escolas dominicais, promoveram a alfabetização entre os camponeses. À medida que ganhavam força e apoiantes, Moscovo passou a ver estas organizações ucranianas populares como uma ameaça à unidade da Rússia imperial. Em 1863 e, mais uma vez, em 1876, o império proibiu os livros ucranianos e perseguiu os ucranianos que os escreviam e publicavam. O próprio Shevchenko passou anos no exílio.
Ainda assim, a “ucraniedade” sobreviveu nas aldeias e cresceu com mais força entre intelectuais e escritores, permanecendo suficientemente poderosa para persuadir os ucranianos a fazerem a sua primeira proposta de Estado na altura da revolução bolchevique, em 1917. Embora tenham perdido essa oportunidade na guerra civil que se seguiu, os bolcheviques imediatamente perceberam que a Ucrânia deveria ter a sua própria república dentro da União Soviética, dirigida por comunistas ucranianos. A desconfiança ucraniana em relação à autoridade, especialmente à autoridade soviética, permaneceu. Quando, em 1929, Estaline começou a coletivização forçada da agricultura em toda a União Soviética, uma série de rebeliões eclodiu na Ucrânia. Estaline, tal como aconteceu anteriormente com a aristocracia imperial russa, começou a recear que poderia, como o próprio disse, “perder” a Ucrânia: ele temia que até mesmo os comunistas ucranianos não quisessem obedecer às suas ordens. Pouco depois, membros da polícia secreta soviética organizaram equipas de ativistas para irem de casa para casa, em zonas da Ucrânia rural, confiscando os alimentos. Cerca de 4 milhões de ucranianos morreram devido à fome que se seguiu. Seguiu-se a detenção em massa de intelectuais, escritores, linguistas, curadores de museus, poetas e pintores ucranianos.
Não se podem estabelecer linhas simples entre o passado e o presente. Não há analogias diretas; nenhuma nação é forçada a repetir o seu passado. Mas as experiências dos nossos pais e avós, os hábitos e as lições que nos ensinaram, moldam a maneira como vemos o mundo, e talvez não seja por acaso que, no final do século XX, o maior medo de Estaline tenha acontecido e os ucranianos mais uma vez tenham organizado, desta vez com sucesso, um movimento cívico popular que conseguiu a independência da União Soviética em 1991. Nem seja talvez por acaso que muitos ucranianos se tenham mantido desconfiados em relação ao Estado, mesmo do seu próprio Estado, nos anos seguintes. Porque o Estado — o Governo, os governantes, o “poder” — sempre tinha sido “eles” e não “nós”, não havia nenhuma tradição de serviço civil ucraniano ou de serviço militar; não havia nenhuma tradição de serviço público. Se o cancro da corrupção, que afligiu todas as antigas repúblicas cansadas, cínicas e exaustas, formadas nos destroços da União Soviética, foi particularmente virulento na Ucrânia, isto faz parte da explicação.
Mas, na longa tradição dos seus pais e avós, milhões de ucranianos continuaram a resistir tanto à corrupção como à autocracia. E precisamente porque se opôs à cleptocracia pós-soviética, a “ucranidade” no século XXI tornou-se interligada com aspirações de democracia, de liberdade, de Estado de direito, de integração na Europa. No início do século XXI, os ucranianos começaram a opor-se ao sistema pós-soviético, ligado à Rússia por interesses financeiros, e começaram mais uma vez a intervir por algo mais justo e honesto.
Duas vezes, em 2005 e 2014, movimentos de rua auto-organizados ucranianos derrubaram líderes cleptocráticos e autocráticos que, apoiados pela Rússia, tinham tentado “roubar” as eleições ucranianas e sobrepor-se ao Estado de direito. Em 2005, a Rússia respondeu com um esforço renovado para interferir na política ucraniana. Em 2014, a Rússia respondeu com a invasão da Crimeia e várias agressões às cidades da Ucrânia oriental. Os únicos ataques que tiveram sucesso foram no extremo-oriente, em Donbas, porque o movimento “separatista” criado pela Rússia poderia ser apoiado pelo exército russo.
Mas o carácter da Ucrânia permaneceu inalterado. Em 2019, 70% dos ucranianos votaram mais uma vez contra o sistema. Um completo estranho tornou-se Presidente: um ator judeu nascido no leste da Ucrânia, sem experiência política, mas com uma longa história de gozar com aqueles que estão no poder — o tipo de humor que os ucranianos mais valorizam. Volodymyr Zelensky era conhecido por ter interpretado um professor oprimido que discursa contra a corrupção e é filmado por um estudante. Na série de televisão, essas filmagens tornam-se virais, o professor ganha acidentalmente a presidência e, em seguida, todos — o seu desagradável chefe, a sua família pouco simpática, estranhos ricos — ficam subitamente bajuladores. Zelensky, o ator, goza com eles, enganando-os. Os ucranianos queriam que Zelensky, o Presidente da vida real, fizesse o mesmo.
Durante a campanha eleitoral, Zelensky também prometeu acabar com a guerra com a Rússia, o conflito em curso e debilitante ao longo da fronteira com a Ucrânia oriental que tirou mais de 14 mil vidas na última década. Muitos ucranianos esperavam que ele também conseguisse isso. O Presidente tentou estabelecer ligações com os habitantes das zonas ocupadas da Crimeia e Donbas; pediu reuniões com o Presidente russo, Vladimir Putin; entretanto, continuou a procurar a integração ucraniana com o Ocidente.
E então, a calamidade outra vez.
Estava tudo tão pacífico, tão sereno;
Tínhamos acabado de começar a quebrar as correntes
Que prendem o nosso povo à escravidão
Quando pára! Mais uma vez o sangue das pessoas
Está a jorrar…
A Ucrânia está agora sob um ataque brutal, com dezenas de milhares de tropas russas a passarem pelas suas províncias orientais, ao longo da sua fronteira norte e da sua costa sul. Pois, à semelhança dos czares russos que lhe precederam — como Estaline, como Lenine — Putin também considera a “ucraniedade” uma ameaça. Não é uma ameaça militar, mas sim uma ameaça ideológica. A determinação da Ucrânia em tornar-se uma democracia é um verdadeiro desafio para o nostálgico projeto político imperial de Putin: a criação de uma cleptocracia autocrática, na qual é todo-poderoso, dentro de algo semelhante ao antigo império soviético. A Ucrânia mina este projeto apenas pela sua existência como Estado independente. Ao lutar por algo melhor, pela liberdade e pela prosperidade, a Ucrânia torna-se um rival perigoso. Pois, se a Ucrânia fosse bem-sucedida na sua luta de décadas pela democracia, pelo Estado de direito e pela integração europeia, então os russos poderiam perguntar: porque não nós?
Não sou romântica em relação a Zelensky, nem tenho quaisquer ilusões sobre a Ucrânia, uma nação de 40 milhões de pessoas, entre elas as mesmas percentagens de pessoas boas e más, de pessoas corajosas e cobardes, como em qualquer outro lugar. Mas, neste momento da História, algo incomum acontece por lá. Entre esses 40 milhões, um número significativo — em todos os níveis da sociedade, em todo o país, em todos os campos de atividade — aspira a criar um país mais justo, mais livre e mais próspero do que alguma vez habitaram no passado. Entre eles estão pessoas dispostas a dedicar a sua vida à luta contra a corrupção, ao aprofundamento da democracia, a permanecer soberanos e livres. Algumas dessas pessoas estão dispostas a morrer por estas ideias.
O conflito será importante para todos nós, de uma forma que ainda não podemos compreender. Na longa luta entre a autocracia e a democracia, entre a ditadura e a liberdade, a Ucrânia é agora a linha da frente — e a nossa linha da frente também.