Mind the Vote #12. Algo se move na remota região de Ulster, onde não mandam conservadores nem trabalhistas
Hoje centramos atenções na Irlanda do Norte, cujos partidos são diferentes dos que protagonizam o jogo político no resto do Reino Unido. Apesar de a região somar apenas 18 lugares numa Câmara dos Comuns que tem 650, foi decisiva para a governabilidade na última legislatura e é fortemente afetada pelo magno assunto da saída da UE
O Mind the Vote volta o olhar para a Irlanda do Norte. Esta região, a que também chamam Ulster, costuma estar tão arredada das atenções mediáticas que a ministra responsável por ela no Governo de Theresa May admitiu um dia pouco saber sobre o seu panorama político. Acontece, porém, que a saída do Reino Unido da União Europeia (UE) traz de volta à berlinda estes 14 mil quilómetros quadrados, onde vivem 1,9 milhões de pessoas, divididas entre as comunidades unionista (protestante e partidária da permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido) e nacionalista (católica e defensora da reunificação com a República da Irlanda).
Unionistas e nacionalistas protagonizaram, no século XX, um conflito sangrento de décadas, pontuado pelo terrorismo do Exército Republicano Irlandês (IRA) e crimes de paramilitares lealistas à Coroa. Se calhar o leitor é fã da canção dos U2 que pode ouvir abaixo e não sabe que é precisamente sobre essa guerra, que terminou há apenas 21 anos, graças ao Acordo de Sexta-feira Santa (ou Acordo de Belfast).
Teme-se que o Brexit volte a agitar as águas, numa região que até votou a favor da permanência na UE no referendo de 2016 (55.7%). A linha de 500 quilómetros entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda vai ser, após a saída, a única fronteira terrestre entre o Reino Unido e a União Europeia. E a passagem de pessoas e bens através dela vai obedecer a novas regras. Se, no acordo de saída de May, havia um backstop (solução de recurso) que, até haver acordo comercial UE-Reino Unido, mantinha todo o país sujeito a regras comunitárias, na versão renegociada por Boris Johnson passou a ser só a Irlanda do Norte a ficar nessa situação, o que na prática cria uma fronteira no mar entre as ilhas da Irlanda e da Grã-Bretanha. Isto desagradou, é claro, aos unionistas. E encoraja os republicanos ansiosos pela reunificação.
A história dita que vigore na Irlanda do Norte um sistema partidário diferente do das demais nações do Reino Unido. A força dominante tem sido o Partido Unionista Democrático (DUP), que foi suporte do Governo conservador cessante no Reino Unido (minoritário) e que liderou o último executivo regional norte-irlandês. É também o único pró-Brexit. Nesse executivo estava também o partido republicano Sinn Féin (SF, outrora braço político do IRA), pois o Acordo de Sexta-feira Santa exige que ambas as comunidades façam parte dele. Sem isso não há governo, que é a situação que perdura desde janeiro de 2017. Um escândalo ligado ao financiamento de energia renovável levou o SF a abandonar o executivo chefiado por Arlene Foster (líder do DUP) e os dois partidos não mais chegaram a consenso. O parlamento regional está estagnado.
Há mais partidos na Irlanda do Norte. No parlamento regional estão o Partido Unionista de Ulster (UUP), a Voz Unionista Tradicional, o Partido Trabalhista Social-Democrata (SDLP, republicano) e três forças que se dizem agnósticas em termos da dicotomia habitual: Aliança, Verdes e Povo Antes do Lucro. No entanto, só o DUP e o SF elegeram deputados para a Câmara dos Comuns do Reino Unido nas últimas legislativas, há dois anos. Dos 18 lugares que representam a Irlanda do Norte, dez foram para o DUP e sete para o SF, sendo o restante ocupado pela unionista independente Sylvia Hermon, que não se recandidata. Dá-se a particularidade de os eleitos republicanos não tomarem posse de cargos nas instituições britânicas, para não legitimarem a soberania das mesmas sobre a Irlanda (que, recorde-se, desejam unida, republicana e independente). Uma deputada do Sinn Féin explica isso neste texto.
Que vai acontecer na Irlanda do Norte no próximo dia 12? As sondagens admitem que possa haver mudanças na capital, Belfast, dividida em quatro circunscrições. O DUP ganhou três delas em 2017, ficando a outra para o SF. Em Belfast Leste os unionistas parecem sólidos, como os republicanos em Belfast Oeste. Mas Nigel Dodds, dirigente unionista que representa Belfast Norte há 18 anos, pode sucumbir perante o autarca da cidade, John Finucane, que corre pelo SF. É que o SDLP e os Verdes não apresentam candidato, para ajudar o europeísta Finucane, e a margem de vitória de Dodds na última vez foi de 2000 votos.
Em Belfast Sul o SF devolve a amabilidade ao SDLP, e os Verdes também abdicam de participar na eleição. Tudo para dificultar a vida ao DUP, partidário do Brexit. Também em North Down, onde a deputada Hermon se despede do Parlamento, o SDLP e o SF abrem alas para a a europeísta Aliança, ao passo que o voto unionista deve dividir-se entre DUP e UUP. Este último, outrora maior força unionista da Irlanda do Norte, aspira a recuperar essa posição.
Tudo isto significa que o panorama político norte-irlandês pode mudar. Se os 18 deputados de Ulster lhe parecem irrelevantes numa Câmara dos Comuns com 650 lugares, pense de novo. Não só foram essenciais para a conservadora May se manter no poder em 2017 como arrebataram com isso mil milhões de libras (1170 milhões de euros). Tal foi o preço do pacto. Acresce que o número de eleitos do SF (que não tomam posse) influencia o limiar da maioria absoluta de votos no Parlamento do Reino Unido. Por fim, as transferências de votos entre forças norte-irlandesas podem condicionar a formação do governo regional, paralisado há quase três anos.
FOTO DO DIA
Michael Heseltine, ex-vice-primeiro-ministro conservador dos tempos de John Major e ministro de Margaret Thatcher, participou esta quarta-feira um comício dos Liberais Democratas, para quem pediu o voto dos eleitores conservadores que considerem o Brexit um perigo. No Parlamento cessante três deputados eleitos pelo Partido Conservador trocaram de bancada para os liberais, sobretudo por causa do Brexit e do acordo defendido por Boris Johnson, que consideram danoso para a economia por não prever a continuidade no mercado único. Heseltine, hoje empresário e membro da Câmara dos Lordes, disse que não estava disposto a deixar o país tomar uma decisão errada sem lutar contra isso. Foi suspenso do partido por ter apoiado os Liberais Democratas nas eleições europeias de maio passado
Chris J Ratcliffe
A FRASE
“Claro que sim, por toda a mágoa e ofensa causada – é claro que [pedimos desculpa]. E tudo isso é intolerável e é muito importante, como país, não permitirmos coisas desse tipo e é por isso que vamos lançar um inquérito independente”. Boris Johnson pediu esta quarta-feira desculpa por afirmações islamófobas proferidas por membros do seu Partido Conservador. O primeiro-ministro demarca-se assim de Jeremy Corbyn, que numa entrevista televisiva à BBC, ontem, declinou quatro vezes a oportunidade de se penitenciar pelas posições antissemitas de várias figuras do Partido Trabalhista. Pode vê-la na íntegra abaixo.
UMA HISTÓRIA FORA DO RADAR
Para impedir uma vitória com maioria de Boris Johnson pode bastar que pouco mais de 100 mil eleitores adiram ao voto tático, afirma a organização europeísta Best for Britain, citada pelo jornal “The Independent”. A sua análise de dados após uma sondagem a 40 mil eleitores indica que os conservadores podem eleger até 366 deputados, sobretudo por o Partido do Brexit não ter concorrido em muitos círculos. Esse cenário pode ser travado, garante a organização, se em 57 círculos considerados “marginais” (isto é, que foram vencidos com margens curtas nas últimas eleições) os votantes que querem ficar na UE votarem de forma inteligente, concentrando sufrágios no candidato europeísta que estiver mais bem posicionado (recorde-se que no Reino Unido vigoram círculos uninominais). Johnson ficaria, nesse caso, com 309 lugares, ou seja, sem maioria. O desfecho estaria nas mãos (ou na ponta do lápis, mais usado do que a caneta para votar em terras britânicas) de 117 mil cidadãos. “The Guardian” aponta 165 círculos eleitorais onde menos de 5000 eleitores podem fazer a diferença e escreve mesmo que em 27 deles bastariam 2000 votos táticos. Como já informámos no Mind the Vote, há aplicações de telemóvel e websites que ajudam a decidir o voto. O problema é que são pelo menos cinco e nem sempre recomendam o mesmo candidato.
NAFTALINA ELEITORAL
Em 1981 um grupo de quatro trabalhistas rompeu com o esquerdismo do então líder Michael Foot e fundou o Partido Social Democrata (SDP), que teve alguma relevância durante essa década. Sem legislativas previstas até 1983, a primeira vez que o SDP conseguiu representação parlamentar foi numa eleição intercalar motivada pela morte de um deputado conservador. A nova força política candidatou, com êxito, a fundadora Shirley Williams, que fora deputada trabalhista e ministra no Governo de James Callaghan. Nas eleições seguintes o SDP aliou-se ao Partido Liberal e conquistou seis assentos, mas Williams perdeu o seu para os conservadores de Margaret Thatcher. Outros “pais” do SDP (o ex-ministro trabalhista David Owen e o ex-presidente da Comissão Europeia Roy Jenkins) também foram deputados pela aliança, que repetiu o desempenho nas eleições de 1987. No ano seguinte o SDP fundiu-se com os liberais, dando origem aos atuais Librerais Democratas, mas Owen não se conformou e manteve um partido com a mesma sigla (SDP), que veio a dissolver-se passados dois anos.
SONDAGEM DO DIA
O interesse que a campanha eleitoral desperta é escasso, afirma Michael Ashcroft, conservador e um dos gurus das sondagens no Reino Unido. Num estudo do seu instituto, à pergunta “Que incidentes, acontecimentos, histórias, etc. tem notado na campanha eleitoral nos últimos dias?”, 39% dos inquiridos responderam “Nenhuns”. O segundo classificado no rol de respostas não é mais animador: “Mentiras/não confio nos políticos”, dizem 19%. Os debates chamam a atenção de apenas 15% e os programas eleitorais de 10%.
Dois referendos a convocar para 2020 dominam o programa eleitoral do Partido Nacional Escocês (SNP), apresentado esta quarta-feira. Um deles serviria para travar o Brexit, outro para repetir a pergunta feita em 2014 sobre a independência da Escócia (a que na altura o eleitorado respondeu negativamente à razão de 55%-45%). A líder do SNP e do governo regional, Nicola Sturgeon, exige ainda que ao longo da próxima legislatura o Executivo britânico aumente os gastos na saúde para o nível que estes têm na Escócia (é um setor cujas competências estão descentralizadas).
Ora, isso significa mais 136 libras (160 euros) per capita, num total de 35 mil milhões de libras (41 mil milhões de euros). Trata-se de um recado para Jeremy Corbyn, que pode depender dos votos do SNP para formar governo caso os conservadores falhem a maioria absoluta. Afastar Boris Johnson de Downing Street é uma das prioridades de Sturgeon.
Todos os partidos propõem maior despesa em saúde, mas nenhum ao nível do SNP. Os nacionalistas querem ainda mais dinheiro para infraestruturas; abolição do sistema de dissuasão nuclear Trident, composto por submarinos instalados perto de Glasgow; impedir privatizações na saúde; descentralização de competências no combate à toxicodependência, fluxos migratórios, emprego, pensões e transportes; medidas contra as alterações climáticas; alargamento das licenças parentais. O SNP tinha, na legislatura finda, 35 deputados na Câmara dos Comuns (só concorre aos 59 lugares que representam a Escócia, num total de 650).