Kamala Harris é a energia em forma de mulher. Com um sorriso que muito provavelmente não desvaneceu desde que, de manhã, ainda de fato de treino, a vimos nas redes sociais ao telefonar a Joe Biden (“conseguimos, Joe, conseguiste, és o próximo Presidente dos Estados Unidos da América”), entrou em palco para apresentar o Presidente eleito mas antes de tudo para provar que tem uma mensagem própria, uma agenda própria, as suas próprias lutas e prioridades.
Começou por citar o falecido congressista John Lewis, um marco da luta pelos direitos civis dos afro-americanos: “A democracia não é o estado normal das coisas, é um ato”. Queria ele dizer, nas palavras de Kamala Harris, que “a democracia americana não é garantida, é forte apenas na medida em que nos disponibilizamos para lutar por ela, para a proteger, e não a podemos tomar por dado adquirido”. Lewis tinha outras frases adequadas ao momento e aos momentos que os Estados Unidos viveram nestes quatro anos de Donald Trump mas também em tantos outros da sua relativamente curta mas altamente revolucionária história: “Não tenham medo de fazer barulho, de criar um bom problema, um problema necessário”.
A próxima vice-presidente dos Estados Unidos considera que este voto, esta participação nunca vista na história do país é um desses atos de bom revolucionário: “A alma da América viu-se ameaçada, o mundo todo estava de olhos postos em nós e vocês trouxeram um novo dia à América”, disse Harris. Pela televisão são perfeitamente audíveis as buzinas das centenas de carros que se concentraram no recinto do centro de congressos de Wilmington, a cidade no estado de Delaware onde vive Joe Biden.
Logo a seguir, o reconhecimento do momento difícil que se vive no país que tem ultrapassado, na última semana, os 100 mil casos de covid-19 por dia. “Os últimos meses foram de dor, de perda, vimos as vossas preocupações e vossas lutas mas também testemunhamos a vossa coragem e a vossa resiliência e o vosso espírito generoso”. Durante quatro anos, continuou, “vocês marcharam, organizaram-se pela igualdade, pela justiça, pelo nosso planeta - e depois votaram”. Mais buzinas, mais gritos, muitas mulheres, muitas mulheres negras, as câmaras de televisão mostram-nas, têm as mãos à frente da boca, palma com palma, em oração.
Para ultrapassar tudo isto é preciso alguém que também saiba o que é a dor, disse Kamala Harris. E esse homem, “pela sua trágica história de vida”, é Joe Biden. “Joe sabe sarar, sabe unir, tem a mão forte e segura e a sua própria experiência com a dor dá-lhe um sentido de missão que nos vai ajudar como nação a recuperar o nosso propósito.” Biden perdeu a primeira mulher e filha num acidente de automóvel pouco depois de ser eleito senador (há quase 45 anos) e em 2015 perdeu um outro filho, neste caso para o cancro.
A última parte do discurso ficou reservada para o papel das mulheres na vida da América - e a influência de uma particular na vida da própria mulher que discursava. Vestida de branco como as sufragistas, Kamala Harris falou sobre a sua mãe, Shyamala Gopalan Harris, que já morreu. “Quando ela veio da Índia para cá, aos 19 anos, talvez não tivesse imaginado este momento. Mas ela acreditava profundamente num tempo em que um momento como este fosse possível na América”.
Harris está “sobre os ombros” destas mulheres, disse ela, na companhia de “gerações de mulheres - mulheres negras, asiáticas, brancas, latinas, mulheres nativas americanas - que ao longo da história da (nossa) nação prepararam o caminho para este momento esta noite”. Mais buzinas, mais imagens com lágrimas. E é um teste superado ao carácter de Biden que ele tenha tido uma coisa a que Harris chamou “audácia” para “quebrar uma das barreiras mais indestrutíveis que existem no nosso país e escolher uma mulher como sua vice-presidente”.
Por causa deste dia, considerou a agora vice-presidente eleita, as jovens norte-americanas vão considerar novos caminhos. “Sonhem com ambição, liderem com convicção e vejam-se a vocês mesmas da forma que os outros talvez não vos vejam por nunca o terem visto antes”, terminou.
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