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EUA 2020. Pela Estrada Fora #22: Um remake de 2000, mas com a Pensilvânia como estrela. E para os próximos dias? Nervos de aço

EUA 2020. Pela Estrada Fora #22: Um remake de 2000, mas com a Pensilvânia como estrela. E para os próximos dias? Nervos de aço
Samuel Corum/ Getty Images

A noite eleitoral chegou, mas com ela não veio um resultado definitivo. No Senado mantém-se a dúvida, mas a dinâmica favorece os republicanos. Os latinos provaram que nem todos odeiam Trump e os americanos dizem-se fartos da campanha. Mas Biden ainda pode conquistar grande parte da muralha do Midwest e com isso a eleição. E do passado, o que nos traz este último “Pela Estrada Fora? Bush vs. Gore, 2000, Flórida. Não podia ser outra coisa

Cátia Bruno

“Antes do ano 2000, a única vez que a nação amargou perante uma eleição presidencial tão disputada foi em 1876, quando as feridas da Guerra Civil ainda estavam frescas”. Isso mesmo escrevia o “The New York Times”, num artigo publicado um mês antes das presidenciais de 2004, que especulava sobre a possibilidade de um Florida 2000 Redux naquela eleição. “Há muito mais mal-estar mal resolvido, um maior sentimento de ‘fomos roubados’ no ano 2000 do que em 1876”, avisava David Herbert Donald, professor de Harvard especialista na história da presidência. O cenário de uma nova eleição disputada sanguinamente até à última não se concretizou em 2004 (George W. Bush venceu John Kerry de forma clara), mas chegou em 2020. 2020, o ano de uma pandemia nunca vista, de uma crise económica, de uma América com a ferida do racismo ainda a pulsar e com um Presidente a insinuar falta de confiança no processo eleitoral.

Tal como já se tinha especulado, não houve um vencedor nesta noite de 3 de novembro. À hora de publicação deste artigo, todos os cenários estavam em aberto: o Arizona e a Geórgia ainda podiam pender para qualquer lado, tendo em conta que ainda faltavam contar os votos presenciais do dia, o que poderá beneficiar Trump (no Arizona), mas também os resultados de grandes cidades, o que joga a favor de Biden (na Geórgia). Também a Carolina do Norte continuava virtualmente empatada. Para lançar a confusão, o Midwest mantinha-se praticamente todo em aberto (com exceção do Ohio, que caiu para Trump). E as autoridades locais avisaram: os resultados no Michigan, no Wisconsin e na Pensilvânia só chegarão um dia — ou mais — depois. É nesta grande muralha do Midwest que a campanha de Biden deposita as suas maiores esperanças, mas tem pela frente os atrasos provocados pela forte adesão ao voto por correspondência e por regras locais.

Uma delas é a proibição de começar a contar os votos por correspondência enquanto não tiverem sido contados todos os votos presidenciais, uma das regras que está em vigor na Pensilvânia. Com o equivalente a 20 votos no colégio eleitoral, a Pensilvânia é o grande diamante do Midwest que ambos os candidatos querem agarrar, já que é quase certo que o vencedor ali será o vencedor da eleição. Mas antevê-se um caminho complicado, caso a eleição esteja ali tão renhida como parece pela tendência nacional. Na Pensilvânia, se a vitória tiver apenas uma margem de 0,5% dos votos, há uma recontagem obrigatória, que pode atrasar ainda mais os resultados. Já para não falar dos desafios legais que ambas as campanhas podem apresentar nos tribunais. A repetição do ano 2000 parece cada vez mais provável — mas já lá vamos, na nossa “Nostalgia Americana”.

Para já, apenas duas conclusões parecem claras: há a forte probabilidade de esta eleição acabar a ser decidida por juízes — e a "Atlantic" relembra-nos que “ambas as campanhas estão há meses a preparar-se para a possibilidade de uma eleição contestada e possivelmente decidida nos tribunais” — e é cada vez mais clara a divisão entre uma América rural, que continua a apoiar Donald Trump com toda a força, e os Estados Unidos das grandes cidades, que se viram para os democratas. Ou, como resume a "New Yorker", as circunstâncias face a 2016 podem ter mudado, “mas o padrão essencial mantém-se”. O Trumpismo continua forte entre os fiéis. Os democratas aumentaram a votação, mas nos estados mais conhecidos não o suficiente para combaterem o Presidente. Os próximos dias poderão deitar ainda mais combustível na fogueira desta divisão.

A FRASE

“Mantenham a fé, pessoal. Estamos a caminho para ganhar isto.” Joe Biden parafraseou os Bon Jovi nesta noite eleitoral, numa declaração pública inesperada, para tentar controlar a narrativa e lembrar que ainda nada está fechado. Trump reagiu de imediato no Twitter, dizendo que vai ganhar “EM GRANDE” e que não deixará que esta eleição lhe seja “roubada”. No discurso que fez mais tarde, a partir da Casa Branca, manteve a tónica: “Estamos a ganhar por muito”, incluindo “na Pensilvânia”. Ninguém deu o braço a torcer, portanto.

NOS QUARTÉIS DE CAMPANHA…

Afinam-se as estratégias legais para cada estado, é claro, mas também se mantém um olho nas várias corridas para o Senado. Os democratas tinham esperança de que se registasse uma grande “onda azul” que reconquistasse a câmara alta do Congresso para o partido, mas os sinais dados ao longo da noite deixam dúvidas se tal será possível.

Duas corridas podem ter ditado o tom: a Carolina do Sul e o Iowa. A primeira resultou na vitória de Lindsey Graham, senador republicano experiente, presidente do Comité Judiciário e inimigo tornado amigo do Presidente Trump nos últimos anos. Depois de semanas de empate nas sondagens contra o democrata Jaime Harrison, Graham discursou vitorioso nesta noite: “Para as empresas de sondagens que andam por aí: vocês não fazem ideia do que andam a fazer”, disse, como conta a National Review.

A segunda era vista como uma das possíveis grandes vitórias dos democratas, caso Theresa Greenfield derrotasse a incumbente Joni Ernst, como algumas sondagens já previam. Tal, contudo, não se confirmou — apesar de os democratas terem investido tanto nesta campanha que a tornaram numa das corridas mais caras de sempre ao Senado. À hora de publicação deste artigo, ainda nenhum dos partidos alcançou o número mágico de 52 senadores para ter maioria na câmara. Mas a tendência parece estar do lado dos republicanos, salvo surpresas de última hora.

...E PARA LÁ DE WASHINGTON D.C.

Olhamos para o condado de Miami-Dade, exemplo máximo da principal vitória de Donald Trump esta noite, ao conquistar o estado da Flórida. Num condado onde mais de dois terços da população é hispânica, Trump saiu vencedor e confirmou que a ideia de que os latinos votam massivamente nos democratas está errada.

“Alguns dos meus amigos pensam nos hispânicos como um monólito, mas há vários grupos diferentes neste eleitorado. Todos respondem positivamente a Trump em alguns assuntos, mas é sobretudo na economia e no conservadorismo social”, relembrou ao Washington Post o estratega republicano Charlie Gerow.

Há grandes diferenças entre os latinos oriundos de Cuba e da Venezuela, que preferem de longe Trump, aos mexicanos ou guatemaltecos, como analisámos aqui no “Pela Estrada Fora” ao longo desta campanha. Mas também há uma questão de género e idade, com latinos homens mais jovens a reagirem positivamente ao Presidente. “Eles gostam do seu… estilo”, acrescentou Gerow. “Gostam do machismo e respondem favoravelmente, por instinto, à personalidade de Trump.”

NOSTALGIA AMERICANA

Como prometido, mantemo-nos pela Flórida e olhamos então para a polémica eleição do ano 2000, que opôs o republicano George W. Bush ao democrata Al Gore.

Naquela noite eleitoral, as cadeias de televisão apressaram-se a dar inicialmente a vitória no estado a Al Gore, mas acabaram por recuar e atribuí-la a George W. Bush, depois de relatos contraditórios vindos de várias partes do estado. “Lembro-me de [Tom] Brokaw dizer ‘Era incrível se as televisões se tivessem enganado duas vezes numa só noite’”, recordou à "Atlantic" a produtora da NBC Betsy Fischer Martin. “Mais tarde, ele disse ‘Não temos um ovo na cara. Temos uma omelete inteira.’”

Na campanha de Al Gore, o sentimento passou de euforia à raiva em pouco tempo. “A minha mulher estava exausta e disse ‘Vamos voltar para o quarto’”, recordou no mesmo artigo o candidato democrata a vice-presidente, Joe Lieberman. “Voltámos à nossa suite no hotel e, à entrada, havia uma mesa no hall. A minha mulher deitou um vaso com flores que lá estava ao chão. Talvez ela seja mais expressiva do que eu.”

As dúvidas levaram os democratas a pedir de imediato uma recontagem de votos no estado e abriu-se um processo de caos, que chegou a ter um momento tenso de intimidação protagonizado por um grupo que viria a ser conhecido como “O Motim dos Irmãos Brooks”. O caso acabaria por seguir para o Supremo Tribunal, mas acabou com Al Gore a conceder derrota antes de tudo estar terminado. Todo o processo demorou mais de cinco semanas. Tudo por causa de 537 votos em disputa.

A SONDAGEM DO DIA

Nesta fase, não vale a pena olhar mais para as sondagens de estados ou grupos demográficos. Seja qual for o resultado desta eleição, ele já está escolhido — os votos é que ainda não estão todos contados. Mas não podíamos acabar o “Pela Estrada Fora” sem cumprir a tradição. Por isso, olhamos para um estudo da Morning Consult que perguntou aos eleitores norte-americanos qual o seu sentimento perante esta campanha eleitoral. A resposta não podia ser mais clara: 90% dos eleitores de Biden e 84% dos que preferem Trump foram unânimes, por uma vez ao longo desta campanha, e responderam “Só quero que isto acabe”. A maioria acordará hoje e descobrirá que ainda não foi desta. De uma coisa não há dúvidas: é uma eleição que fica para a História.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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