EUA

“Temos de pôr fim a esta guerra incivil”: Joe Biden, o discurso de posse na íntegra

“Temos de pôr fim a esta guerra incivil”: Joe Biden, o discurso de posse na íntegra
Rob Carr

Biden tornou-se o 46º Presidente dos EUA, numa cerimónia única - pelas circusntâncias da pandemia e pelo alerta de segurança desencadeado após a invasão do Capitólio. Foi um discurso sobre união, sobre o futuro da América. Leia-o aqui, na íntegra

Presidente do Supremo Tribunal [John] Roberts, vice-presidente [Kamala] Harris, speaker [da Câmara dos Representantes Nancy] Pelosi, líder [da maioria democrata na Câmara dos Representantes Chuck] Schumer, líder [da maioria republicana cessante no Senado Mitch] McConnell, vice-presidente [Mike] Pence. Meus distintos convidados, meus companheiros americanos.

Este é o dia da América. Este é o dia da democracia. Um dia de história e esperança, de renovação e determinação. Através de um cadinho das eras, a América foi testada repetidas vezes e a América esteve à altura do desafio. Hoje celebramos o triunfo não de um candidato mas de uma causa, uma causa da democracia. O povo — a vontade do povo — foi ouvido e a vontade do povo foi respeitada.

Aprendemos mais uma vez que a democracia é preciosa, a democracia é frágil e nesta hora, meus amigos, a democracia prevaleceu. Por isso agora, neste solo sagrado onde há poucos dias a violência procurou abalar os próprios alicerces do Capitólio, unimo-nos como uma nação sob Deus — indivisível — para realizar a transferência pacífica de poderes, como temos feito desde há mais de dois séculos.

Ao olharmos para a frente no nosso caminho unicamente americano, agitado, corajoso, otimista, e pomos o olhar numa nação que sabemos que podemos ser e temos de ser, agradeço aos meus antecessores de ambos os partidos. Agradeço-lhes do fundo do coração. E conheço a resiliência da nossa Constituição e a força, a força da nossa nação, tal como o Presidente Carter, com quem falei ontem à noite, e que não pode estar connosco hoje, mas que saudamos pela sua vida de serviço.

Acabo de fazer um juramento sagrado, feito por cada um destes patriotas. O juramento feito pela primeira vez por George Washington. Mas a história americana depende não de qualquer um de nós, não de alguns de nós, mas de todos nós. De nós, o povo, que desejamos uma união mais perfeita. Esta é uma grande nação, somos boas pessoas e, ao longo dos séculos, atravessando tempestades e distúrbios, em paz e em guerra, chegámos muito longe. Mas ainda temos muito que percorrer.

Avançaremos com rapidez e urgência, porque temos muito que fazer neste inverno de perigos e de possibilidades significativas. Muito que fazer, muito que sarar, muito que restaurar, muito que construir e muito a ganhar. Poucas pessoas na história da nossa nação enfrentaram mais desafios ou depararam com tempos mais complicados e difíceis do que o tempo que agora vivemos. Um vírus de uma vez por século que assola silenciosamente o país ceifou tantas vidas num ano como toda a Segunda Guerra Mundial.

Perderam-se milhões de empregos. Centenas de milhares de empresas fecharam. Move-nos um grito por justiça racial, proferido desde há quase 400 anos. O sonho da justiça para todos não mais será adiado. Um grito de sobrevivência vem do próprio planeta, um grito que não pode ser mais desesperado nem mais claro do que agora. A ascensão do extremismo político, da supremacia branca, do terrorismo doméstico, que temos de enfrentar e que vamos derrotar.

Ultrapassar estes desafios, restaurar a alma e garantir o futuro da América exige muito mais do que palavras. Exige a coisa mais volúvel numa democracia – unidade. Unidade. Noutro janeiro, no dia de Ano Novo de 1863, Abraham Lincoln assinou a Proclamação da Emancipação. Ao colocar a pena no papel, o Presidente disse, e cito: “Se porventura o meu nome ficar para a História, será por este ato, e nele está toda a minha alma”.

Toda a minha alma está hoje neste dia de janeiro. Toda a minha alma está nisto. Unir a América, unir o nosso povo, unir a nossa nação. E peço a todos os americanos que se unam a mim nesta causa. Unamo-nos para combater os inimigos que enfrentamos — raiva, ressentimento e ódio. Extremismo, desordem, violência, doença, desemprego e falta de esperança.

Com unidade podemos fazer coisas grandes, coisas importantes. Podemos corrigir erros, podemos pôr as pessoas a trabalhar em bons empregos, podemos ensinar as nossas crianças em escolas seguras. Podemos superar o vírus mortífero, podemos reconstruir o trabalho, podemos reconstruir a classe média e tornar o trabalho seguro, podemos garantir a justiça racial e podemos fazer da América, uma vez mais, a principal força mundial pelo bem.

Sei que falar de unidade por estes dias pode soar a alguns como fantasia tonta. Sei que as forças que nos dividem são profundas e são reais. Mas também sei que não são novas. A nossa história tem sido uma luta constante entre o ideal americano, de que todos somos criados iguais, e a feia e dura realidade em que nos separam o racismo, o nativismo e o medo. A batalha é perene e a vitória nunca está assegurada.

Durante a Guerra Civil, a Grande Depressão, a Guerra Mundial, o 11 de Setembro, com combate, sacrifício e recuos, os nossos melhores anjos sempre prevaleceram. A cada momento unimo-nos em número suficiente para fazer todos avançar, e podemos fazer isso agora. A História, a fé e a razão indicam o caminho. O caminho da unidade.

Podemos olhar uns para os outros não como adversários, mas como vizinhos. Podemos tratar o outro com dignidade e respeito. Podemos unir esforços, parar de gritar e baixar a temperatura. É que sem unidade não há paz, apenas amargura e fúria, nenhum progresso, só indignação esgotante. Não há nação, apenas um estado de caos. Este é o nosso momento histórico de crise e desafio. E a unidade é o caminho para a frente. E temos de estar neste momento enquanto Estados Unidos da América.

Se o fizermos, garanto que não falharemos. Nunca, nunca, nunca, nunca falhámos na América quando agimos juntos. E por isso hoje, neste momento, neste lugar, comecemos de novo, todos nós. Comecemos a ouvir-nos de novo uns aos outros, a escutar-nos, a ver-nos. A mostrar respeito uns pelos outros. A política não tem de ser um fogo que irrompe e destrói tudo à sua frente. Cada desacordo não tem de ser motivo de guerra total e temos de rejeitar a cultura em que os próprios factos são manipulados e até fabricados.

Companheiros americanos, temos de ser diferentes. Temos de ser melhores do que isso e eu acredito que a América é muito melhor do que isso. Olhem à vossa volta. Aqui estamos, na sombra da cúpula do Capitólio. Como já foi dito, concluída na sombra da Guerra Civil. Quando a própria união estava literalmente periclitante. Resistimos, prevalecemos. Aqui estamos, a olhar para a grande Alameda, onde o Dr. [Martin Luther] King falou do seu sonho.

Aqui estamos, onde há 108 anos, noutra tomada de posse, milhares de manifestantes tentaram impedir que mulheres corajosas marchassem pelo direito ao voto. Hoje marcamos a investidura da primeira mulher eleita para um cargo nacional, a vice-presidente Kamala Harris. Não me digam que as coisas não podem mudar. Aqui estamos, onde repousam na paz eterna os heróis que deram a última medida da devoção.

E aqui estamos, escassos dias depois de uma turba desordeira ter pensado que podia utilizar a violência para silenciar a vontade do povo, travar o trabalho da nossa democracia, expulsar-nos deste solo sagrado. Não aconteceu, nunca acontecerá, nem hoje nem amanhã, nunca. Nunca. A todos os que apoiaram a nossa campanha, sinto humildade perante a fé que depositaram em nós. A todos os que não nos apoiaram, deixem-me dizer isto: ouçam-nos daqui para a frente. Tirem-me as medidas, e ao meu coração.

Se continuarem a discordar, paciência. A democracia é assim. A América é assim. O direito a dissentir de forma pacífica. E a barreira de proteção da nossa democracia é talvez a maior força da nossa nação. Se me ouvirem com clareza, o desacordo não tem de levar à desunião. E prometo-vos isto: serei o Presidente de todos os americanos, todos os americanos. E prometo-vos que lutarei tanto pelos que não me apoiaram como pelos que me apoiaram.

Há muitos séculos, Santo Agostinho — o santo da minha igreja — escreveu que um povo é uma multidão definida pelos objetos comuns do seu amor. Definida pelos objetos comuns do seu amor. Quais são os objetos comuns que nós, americanos, amamos e que nos definem enquanto americanos? Acho que sabemos. Oportunidade, segurança, liberdade, dignidade, respeito, honra e, sim, a verdade.

As semanas e meses recentes ensinaram-nos uma lição dolorosa. Há verdade e há mentiras. Mentiras contadas para obter poder e lucro. E cada um de nós tem o dever e a responsabilidade, enquanto cidadãos, enquanto americanos e, sobretudo, enquanto líderes. Líderes que prometem honrar a nossa Constituição e proteger a nossa nação. Defender a verdade e derrotar as mentiras.

Vejam, eu compreendo que muitos dos meus companheiros americanos encaram o futuro com receio e trepidação. Compreendo que estão preocupados pelos seus empregos. Compreendo que, como o seu pai, se deitam na cama à a olhar para o teto e a pensar: “Poderei manter os meus cuidados de saúde? Conseguirei pagar a minha hipoteca?” A pensar nas suas famílias, no que aí vem. Prometo-vos que percebo. Mas a resposta não é voltarmo-nos para dentro. Recuarmos para fações concorrentes. Desconfiar dos que não têm o mesmo aspeto que nós, ou que não rezam como nós, ou que não recebem notícias da mesma fonte que nós.

Temos de pôr fim a esta guerra incivil que põe vermelho contra azul, rural contra urbano, conservador contra liberal. Podemos fazê-los se abrirmos as nossas almas em vez de endurecermos os nossos corações, se mostramos um pouco de tolerância e humildade, e se estivermos dispostos a colocar-nos nos sapatos dos outros, como diria a minha mãe. Por um momento, pormo-nos nos sapatos deles.

Porque vou dizer-vos o que é importante na vida. Não há forma de saber o que o destino nos reserva. Há dias em que precisamos que nos deem uma mão. Há outros dias em que somos chamados a dar uma mão a alguém. É assim que tem de ser, é o que fazemos uns pelos outros. E, se formos assim, o nosso país será mais forte, mais próspero, mais pronto para o futuro. E podemos continuar a discordar.

Meus companheiros americanos, no trabalho que nos espera vamos precisar uns dos outros. Precisamos de toda a nossa força para perseverar neste inverno escuro. Estamos a entrar naquele que poderá ser o período mais escuro e mortífero do vírus. Temos de pôr a política de lado e, por fim, enfrentar esta pandemia como uma nação, uma nação. E prometo que, como diz a Bíblia, “O choro pode durar uma noite, a alegria vem de manhã” [citação de um salmo]. Superaremos isto juntos. Juntos.

Olhem, amigos, todos os colegas com quem trabalhei na Câmara dos Representantes e no Senado estão aqui e todos compreendemos que o mundo está a ver. A ver-nos todos hoje. Por isso, cá vai a minha mensagem para os que estão além-fronteiras. A América foi testada e saiu mais forte. Vamos reparar as nossas alianças e envolver-nos de novo com o mundo. Não para enfrentar os desafios de ontem, mas os de hoje e amanhã. E lideraremos não meramente pelo exemplo do nosso poder, mas pelo poder do nosso exemplo.

Companheiros americanos, mães, pais, filhos, filhas, amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Vamos honrá-los tornando-nos o povo e a nação que podemos e devemos ser. Por isso peço-vos que digamos uma oração silenciosa pelos que perderam a vida, os que ficaram para trás, e pelo nosso país.

Ámen.

Amigos, é um tempo que nos testa. Enfrentamos um ataque à nossa democracia e à verdade, um vírus rompante, desigualdade lancinante, racismo sistémico, o clima em crise, o papel da América no mundo. Qualquer destes bastaria para nos desafiar de formas profundas. Mas o facto é que os enfrentamos todos ao mesmo tempo, apresentando a esta nação uma das maiores responsabilidades que já tivemos. Agora vamos ser sujeitos ao teste. Iremos passar?

É tempo de coragem, porque há muito que fazer. E isso é certo, prometo-vos. Seremos julgados, vós e eu, pela forma como resolvermos esta cascata de crises da nossa era. Estaremos à altura da ocasião. Dominaremos esta hora rara e difícil? Cumpriremos as nossas obrigações e passaremos aos nossos filhos um mundo novo e melhor? Acredito que temos esse dever e estou certo de que vós também. Acredito que o faremos e, ao fazê-lo, escreveremos o próximo grande capítulo da história dos Estados Unidos da América. A história americana.

Uma história que pode soar como uma canção que tem grande significado para mim, chama-se “American Anthem”. E hã uma estrofe que se destaca, pelo menos para mim, e que é assim.

“O trabalho e as orações de séculos trouxeram-nos a este dia, que será o nosso legado. Que dirão os nossos filhos?

Que eu saiba no meu coração, quando os meus dias acabarem, América, América, que dei o meu melhor por ti.”

Acrescentemos o nosso trabalho e as nossas orações à história, que se desenrola, da nossa grande nação. Se o fizermos, no fim dos nossos dias, os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos dirão de nós: “Eles deram o seu melhor, cumpriram o seu dever, curaram uma terra desfeita”.

Companheiros americanos, fecho o dia onde comecei, com um juramento sagrado. Perante Deus e todos vós, dou-vos a minha palavra. Estarei sempre ao mesmo nível que vós. Defenderei a Constituição, defenderei a nossa democracia.

Defenderei a América e darei tudo a todos vós. Guardai tudo o que fizer ao vosso serviço. Pensando não no poder, mas nas possibilidades. Não por interesse pessoal, mas pelo bem comum.

E escreveremos juntos uma história americana de esperança e não de medo. De unidade e não de divisão, de luz e não de trevas. Uma história de decência e dignidade, de amor e cura, de grandeza e bondade. Que seja esta a história que nos guia. A história que nos inspira. E a história que diz aos tempos que virão que respondemos ao apelo da História, que estivemos à altura do momento. Democracia e esperança, verdade e justiça não morreram à nossa guarda, antes prosperaram.

Que a América assegurou a liberdade dentro de portas e de novo se tornou uma tocha para o mundo. É o que devemos aos que nos antecederam, uns aos outros e às gerações vindouras.

Assim, com propósito e determinação, voltamo-nos para as tarefas do nosso tempo. Sustentados pela fé, conduzidos pela convicção e devotados uns aos outros e ao país que amamos do fundo do coração. Que Deus abençoe a América e que Deus proteja as nossas tropas.

Obrigado, América.

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