América Latina

“São filhos da selva”: crianças indígenas desaparecidas há 40 dias “confiaram no conhecimento ancestral para sobreviver”

Uma das crianças resgatadas na última sexta-feira da selva amazónica colombiana
Uma das crianças resgatadas na última sexta-feira da selva amazónica colombiana
JUAN BARRETO

Quatro crianças foram encontradas após mais de um mês perdidas na floresta amazónica colombiana. São um “exemplo de sobrevivência” que “ficará para a história”: construíram abrigos, comeram sementes e fruta da selva, e farinha de mandioca que resgataram do avião. Perderam a mãe, “estão muito chocadas e têm de ser submetidas a um acompanhamento psicológico”

“São filhos da selva”: crianças indígenas desaparecidas há 40 dias “confiaram no conhecimento ancestral para sobreviver”

Mara Tribuna

Jornalista

Um bebé de 11 meses e três crianças de quatro, nove e 13 anos foram resgatadas com vida na última sexta-feira. Estavam desaparecidas desde o dia 1 de maio, após a aeronave em que seguiam, juntamente com a sua mãe e um dirigente da comunidade indígena Uitoto, ter caído na densa selva amazónica no sul da Colômbia. São um “exemplo de sobrevivência” que “ficará para a história”, classificou o Presidente colombiano.

“A selva salvou-os. Eles são filhos da selva, e agora também são filhos da Colômbia”, acrescentou o chefe de Estado do país, Gustavo Petro. As quatro crianças pertencem à comunidade indígena Uitoto, que os ensina a caçar, pescar e recolher alimentos desde cedo. De acordo com o avô dos meninos, Fidencio Valencia, os netos sobreviveram ao comer farinha de mandioca que encontraram nos destroços do avião. “Assim que a farinha acabou, começaram a comer sementes”, contou aos jornalistas.

Além de farinha de mandioca e sementes, as quatro crianças comeram também fruta — um dos motivos que levou a crer que ainda estavam vivas foi a fruta parcialmente comida que os socorristas foram encontrando quando estavam à procura dos menores. Segundo a tia das crianças, Damaris Mucutuy, a menina mais velha, Lesly, com 13 anos, “sabia quais os frutos que não podia comer, porque há muitos frutos venenosos na floresta” e também “sabia como cuidar de um bebé”.

Para se tentarem resguardar dos perigos da selva, as crianças construíram abrigos improvisados feitos com paus e ramos, presos entre si com ganchos de cabelo. John Moreno, líder do grupo Guanano em Vaupes, no sudeste da Colômbia — onde as crianças foram criadas — disse à BBC que “elas usaram o que aprenderam na comunidade, confiaram no seu conhecimento ancestral para sobreviver”.

O pai das crianças, Manuel Ranoque, também destacou a importância da selva para a comunidade indígena e na própria sobrevivência dos filhos: “Acreditamos muito na selva, é a nossa mãe. É por isso que sempre tive fé. A floresta e a natureza nunca me traíram”. Ainda assim, as crianças enfrentaram vários riscos na floresta onde estiveram desaparecidas durante 40 dias, desde a ocorrência de chuvas fortes à presença de animais selvagens.

Mãe morreu ao fim de quatro dias

A equipa de resgate e salvamento, composta por militares e indígenas, recuperou três corpos na última sexta-feira: o da mãe dos meninos, o do piloto da aeronave (um Cessna 206) e o de um dirigente da comunidade Uitoto. Como depois contaram as crianças mais velhas, a mãe sobreviveu aos primeiros quatro dias.

Antes de falecer, disse aos filhos para a abandonarem, para terem uma maior hipótese de serem resgatados. “Antes de morrer, ela disse-lhes: 'Talvez devessem ir. Vocês vão ver o tipo de homem que o vosso pai é, e ele vai mostrar-vos o mesmo tipo de grande amor que eu vos mostrei'”, descreveu Manuel Ranoque à comunicação social.

As crianças foram encontradas a cerca de cinco quilómetros do local onde o pequeno avião se despenhou. “Já estavam muito fracas, só tinham força para respirar ou alcançar uma pequena fruta para se alimentar ou beber uma gota de água na selva”, adiantou o general Pedro Sánchez Suárez, responsável do Comando Conjunto de Operações Especiais da Colômbia.

Crianças “encontram-se num estado de assombro”

Assim que foram salvas, foram transferidas para o Hospital Militar, em Bogotá, para serem tratadas. As crianças ainda se encontram num “estado de assombro”: “Estão muito chocadas e têm de ser submetidas a um acompanhamento psicológico. Foi uma experiência muito dura”, afirmou o ministro da Defesa colombiano este domingo.

Segundo Iván Velásquez, “não dizem uma frase completa, acredito que precisamente por causa do estado de comoção e temor em que estão”. O avô, Fidencio Valencia, também avançou que os netos “estão em muito mau estado, têm as suas pequenas feridas e nódoas negras. Saíram da selva com doenças, mas estão bem, em boas mãos”.

Ainda assim, e conforme felicitou o Presidente da Colômbia, Gustavo Petro, no Twitter, o facto de o bebé de 11 meses e os três irmãos mais velhos terem aparecido vivos depois de 40 dias perdidos na selva “é uma alegria para todo o país”.

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