Morreu Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia, aos 98 anos
Ulf Andersen/Getty Images
Delors liderou o órgão executivo da União Europeia durante o período crucial em que foi lançado o Mercado Único e se avançou para a criação do euro. Presidente francês lamenta perda do “estadista” e “arquiteto inesgotável” da Europa. O Governo português decretou um dia de luto nacional
Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia, morreu nesta quarta-feira, aos 98 anos, de acordo com informação divulgada pela imprensa francesa. Delors liderou o órgão executivo da União Europeia (UE) durante um período crucial para o desenvolvimento do projeto, durante o qual foi concretizado o Mercado Único e foram lançadas as bases para a introdução do euro em substituição das moedas nacionais.
Martine Aubry, filha de Jacques Delors e presidente da Câmara de Lille, declarou à agência France Presse (AFP) que o pai “morreu esta manhã [quarta-feira] na sua casa em Paris, enquanto dormia”. Figura da construção do projeto europeu e considerado o "pai do euro", Jacques Delors foi presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995 – mais tempo do que qualquer outro titular do cargo. Através de uma nota do gabinete do primeiro-ministro, o Governo português vai decretar um dia de luto nacional e a data “será fixada oportunamente, por coordenação europeia ou no dia do funeral”.
Nascido em Paris em 1925, licenciou-se em economia na Sorbonne e seguiu o pai numa carreira no Banco de França, de 1945 a 1962. Depois, tornou-se membro do Conselho Económico e Social e chefe de serviço dos Assuntos Sociais no Comissariado Geral do Planeamento até 1969.
Sindicalista católico, aderiu ao Partido Socialista nos anos 1970. Foi membro do gabinete do primeiro-ministro Jacques Chaban-Delmas, de 1969 a 1972, encarregado dos assuntos sociais e culturais e das questões económicas e financeiras. De 1974 a 1979 foi professor associado da Universidade de Paris-Dauphine. Após dois anos no Parlamento Europeu, onde chefiou a Comissão dos Assuntos Económicos, foi ministro das Finanças, da Economia e do Orçamento do Presidente François Mitterand, entre 1981 e 1984.
De 1983 a 1984 foi também presidente da Câmara de Clichy. Como presidente da Comissão Europeia, a partir de 1985, estava convencido da necessidade de criar laços económicos e monetários mais profundos entre os Estados-membros da Comunidade Europeia. Conseguiu estabelecer esses compromissos para a criação, em 1993, do mercado único europeu, uma das realizações mais importantes da UE, destaca a Reuters.
Cavaco Silva (ao centro) e Jacques Delors (à direita) na assinatura do Tratado de Maastricht
Supervisionou um período de rápido alargamento, com a Comunidade Europeia de dez membros a aumentar para 12 com a adesão, em 1986, de Espanha e Portugal e, em 1995, da Suécia, Áustria e Finlândia.
Nome incontornável da esquerda francesa, Delors frustrou as esperanças desta ala partidária ao recusar apresentar-se às eleições presidenciais de 1995 em França. Na altura, era favorito nas sondagens. "Não me arrependo", afirmou à revista ‘Le Point’ em 2021. "Estava demasiado preocupado com a independência e sentia-me diferente dos que me rodeavam. A minha forma de fazer política não era a mesma", referiu na mesma ocasião.
Manteve-se sobretudo preocupado com as questões europeias, criando o seu próprio grupo de reflexão, Notre Europe, e apoiando grupos dedicados ao federalismo. Durante a crise da dívida europeia de 2010-2013, falou frequentemente sobre a convicção na moeda única, embora reconhecendo os defeitos enquanto projeto lançado com uma forte vontade política, mas com uma base económica insuficiente.
Em março de 2020, apelou aos chefes de Estado e de Governo da UE para que demonstrassem maior solidariedade, numa altura em que se debatiam para conseguir uma resposta comum à pandemia de covid-19.
“Visionário” e “Homem com letra grande”
O Presidente francês, Emmanuel Macron, prestou homenagem ao “estadista”, numa publicação na rede social X (antigo Twitter). “Arquiteto inesgotável da nossa Europa. Um lutador pela justiça humana. Jacques Delors foi tudo isto. O seu empenho, os seus ideais e a sua retidão inspirar-nos-ão sempre. Saúdo a sua obra e a sua memória e partilho a dor da sua família”, escreveu.
Também a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, lamentou a perda. “Com a morte de Jacques Delors, a UE perdeu um gigante. Último cidadão honorário da Europa, trabalhou incansavelmente como presidente da Comissão Europeia e membro do Parlamento Europeu em prol de uma Europa unida. Gerações de europeus continuarão a beneficiar do seu legado”, reagiu na rede social X.
O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, salienta que Delors “liderou a transformação da Comunidade Económica Europeia numa verdadeira União, fundada em valores humanistas e apoiada por um mercado único e uma moeda única, o euro”. “Foi um defensor apaixonado e prático da Comunidade até aos seus últimos dias. Grande francês e grande europeu, ficará na história como um dos construtores da nossa Europa”, realçou na rede social X.
Em comunicado, a presidente da Comissão Europeia recorda a “obra de vida”, assente numa UE “dinâmica e próspera”. Ursula von der Leyen descreve um “defensor incansável da cooperação entre as nações europeias e, posteriormente, do desenvolvimento da identidade europeia”, com “inteligência notável e uma humanidade sem paralelo”.
O chanceler alemão enalteceu o francês enquanto “visionário”. “Jacques Delors defendeu a unificação europeia como ninguém: durante uma década, dirigiu a Comissão Europeia e, como visionário, tornou-se o construtor da UE como a conhecemos hoje”, afirmou Olaf Scholz na rede social X.
Também em Portugal têm sido várias as reações. Na mesma rede social, o primeiro-ministro diz que a Europa perdeu “um dos maiores vultos da sua história contemporânea”. António Costa lembra ainda que Delors, “um dos grandes impulsionadores da integração europeia, foi também e sobretudo um grande amigo de Portugal”.
O Presidente da República recorda-o como “grande mentor da evolução das Comunidades para uma União Europeia”, que encarna “a própria construção europeia”. “É um Homem com letra grande que nos deixou hoje”, refere Marcelo Rebelo de Sousa, em nota divulgada na página da Presidência.
“Com a morte de Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia com quem tive a honra e o prazer de colaborar em tantas ocasiões, a Europa perdeu um dos seus mais extraordinários líderes. Alguém que combinava os ‘pequenos passos’ da integração europeia com o ideal de uma Europa unida”, declarou José Manuel Durão Barroso, antigo presidente da Comissão Europeia (2004-2014), em nota enviada à Lusa.
O presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, destaca que Delors “marcou a história da Europa e a História de Portugal”. “Como antigo comissário europeu e vice-presidente do DelorsInstitute apresento as minhas condolências à família Delors”, escreveu na rede social X.
“Jacques Delors é um dos grandes construtores da Europa. A Europa que sonhou e por que se bateu: a Europa social, a Europa da coesão, em que o crescimento económico e a justiça social formam um par. Obrigado!”, agradeceu o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na mesma rede social.
Aqueles que trabalharam com Delors recordam um homem com uma energia e um dinamismo inesgotáveis. Outros descrevem o homem pequeno e elegante como alguém capaz de aplicar “rudeza, delicadeza, perspicácia e habilidade diplomática”, tudo ao mesmo tempo, escreve a Reuters.
“Não me escondo. Cometo erros, perco a paciência. Mas as pessoas dizem: ‘aquele tipo é humano’. Nunca serei um grande político porque não consigo preocupar-me com a minha imagem”, disse sobre si próprio.