De Gaza à Ucrânia, passando por Itália: presépios de todo o mundo desunidos em tempos de guerra
Um presépio na Basílica da Natividade, em Belém, cidade histórica na Cisjordânia ocupada por Israel. A instalação foi criada para denunciar a invasão terrestre das forças israelitas contra a Faixa de Gaza, que começou em outubro.
CLODAGH KILCOYNE
Este ano, várias das representações do nascimento de Jesus prestam homenagem aos que vivem onde a paz não chegará a tempo do Natal – como na Palestina, Ucrânia ou Sudão. Por exemplo, na Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém, o nascimento de Jesus é recriado em cima de um amontoado de destroços, com o recém-nascido coberto por um keffiyeh, o lenço tradicional palestiniano. Em Itália, o pároco da Igreja de São Pedro e São Paulo, perto da cidade de Avelino, no sul do país, decidiu representar o nascimento de Jesus substituindo José por uma segunda figura feminina – uma declaração de apoio à luta da comunidade LGBTQ+ contra o preconceito, que gerou protestos de setores mais conservadores
“Pensemos na Palestina, em Israel e na Ucrânia martirizada. Pensemos nas crianças durante a guerra, nas coisas que elas presenciam", pediu o Papa Francisco na semana passada, no final de uma audiência geral no Vaticano. E depois propôs um plano: “Vamos todos para o presépio, para que possamos pedir paz a Jesus. Ele é o princípe da paz.”
O conselho do líder da Igreja Católica foi seguido um pouco por todo o mundo: num ano fortemente marcado por conflitos internacionais, várias paróquias construíram presépios que não só representam o nascimento de Jesus como também servem para pedir a paz, condenar a guerra e homenagear as suas vítimas.
O presépio da Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém lembra as crianças mortas em Gaza
Maja Hitij/Getty Images
Foi o que aconteceu em Belém, cidade palestiniana na Cisjordânia onde Jesus terá nascido há quase 2024 anos – e que Israel ocupa há décadas. Devido à guerra que continua a assolar a Faixa de Gaza, as comemorações natalícias foram canceladas.
“Esta é a situação mais difícil por que o povo palestiniano já passou. Cancelamos tudo. Nunca enfrentamos uma guerra destas, testemunhamos crimes de guerra todos os dias, a maioria dos mortos são crianças. Como podemos festejar?”, perguntou Hanna Hanania, presidente da Câmara de Belém, em declarações ao Expresso esta semana.
Não faz sentido festejar, mas fez sentido criar presépios que lembrassem as vítimas de Gaza: na Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém, o nascimento de Jesus é recriado em cima de um amontoado de destroços, com o recém-nascido coberto por um keffiyeh, o lenço tradicional palestiniano.
“Jesus nasce numa manjedoura porque não tem outro lugar — é o que está a acontecer a 50 mil mulheres grávidas em Gaza, que têm os seus filhos em tendas. Na verdade, Jesus é hoje uma das pessoas em Gaza. Se alguém quiser vê-lo, é lá que ele está”, justificou o reverendo evangélico luterano Mitri Raheb, responsável pela Igreja da Natividade.
As representações bélicas nesta quadra natalícia também chegaram à Europa: o pároco da Abadia de Tewkesbury, uma cidade inglesa próxima do País de Gales, decidiu quebrar a tradição e incluir no presépio um conjunto de destroços, simbolizando a destruição em Gaza e as consequências para as crianças palestinianas.
“Enquanto rezamos por paz neste Natal, pareceu-me acertado lembrar todos os que estão a ser afetados pelo conflito. Espero que comova as pessoas e as faça parar para pensar”, justificou o reverendo Nick Davies, pároco de Tewkesbury, citado pela BBC.
Na cidade escocesa de Edimburgo, um grupo de voluntários na Igreja Paroquial de St Cuthbert criou um presépio a partir de material militar de camuflagem – uma referência aos soldados ucranianos que continuam a morrer em defesa do seu território desde o início da invasão russa, há quase dois anos.
Nos Estados Unidos, regista-se um caso em sentido contrário: numa igreja do bairro de Los Feliz, em Los Angeles, a figura de Jesus foi roubada de um presépio construído em homenagem às vítimas das guerras no Médio Oriente, Ucrânia, e também no Sudão.
Aliás, não é só devido às guerras que os presépios de 2023 estão a causar polémicas: o pároco da Igreja de São Pedro e São Paulo, perto da cidade de Avelino, no sul da Itália, decidiu representar o nascimento de Jesus substituindo a figura de José por uma segunda figura feminina – uma declaração de apoio à luta da comunidade LGBTQ+ contra o preconceito.
“Já não há apenas famílias tradicionais”, justificou o padre Vitaliano Della Sala, conhecido por abraçar causas progressistas e sociais no seio da Igreja Católica, em declarações à agência Reuters. “Nas nossas paróquias vemos cada vez mais crianças que nasceram no seio de novos tipos de famílias: filhos de pais separados, divorciados, casais gays, pais solteiros ou mães muito jovens”, acrescentou, lembrando que esta semana o Papa Francisco autorização a bênção informal para pessoas em situações canónicas irregulares.
No entanto, o presépio LGBTQ+ em Avelino foi duramente criticado por parte da opinião pública italiana e classificado como uma “blasfémia”. Maurizio Gasparri, deputado e dirigente do partido conservador Força Itália, afirmou que a ideia “ofende todos os que respeitam a Sagrada Família."