Protestos ultrapassam fronteiras da França continental - e por todo o mundo se escreve sobre Nahel
Os protestos pela morte de Nahel chegaram também ao território francês da Ilha da Reunião, ao largo de Madagáscar
RICHARD BOUHET
Não só em França se protesta contra o que os manifestantes dizem ser o racismo enraízado de todas as forças policiais. Com mais ou menos violência, também na Bélgica e nos territórios franceses nas Caraíbas e na Ilha da Reunião, ao largo de Madagáscar, as pessoas saíram à rua nos últimos cinco dias. Por todo o mundo se fala do jovem Nahel, que morreu na terça-feira depois de a polícia ter disparado sobre o seu peito, à queima roupa, numa operação stop que Nahel não respeitou. A imprensa ocidental pede maior vigilância dos métodos utilizados em França no controlo de protestos
Já era esperada mais uma noite de tumultos em França, depois do funeral do jovem Nahel, morto com um tiro à queima-roupa por um polícia na terça-feira, em Nanterre, nos arredores de Paris. A mesquita onde foi realizado o seu funeral não teve espaço para albergar todos os que quiseram prestar-lhe homenagem e, como conta a reportagem do Expresso na cerimónia de despedida do jovem franco-argelino, houve até que viajasse de outras cidades francesas para estar presente.
Nahel Merzouk, de 17 anos, foi baleado na terça-feira por um polícia
E também há, pelo menos há cinco dias, quem se manifeste para lá das fronteiras continentais de França, onde se ouvem gritos de revolta pelo que muitos consideram ser a forma injusta como as pessoas racializadas são tratadas pelas autoridades, como são retratadas nos meios de comunicação social, a falta de acesso a empregos estáveis, o seu isolamento em bairros que ficam longe das oportunidades das cidades.
As fotografias de carros a arder entre palmeiras não nos remetem imediatamente para manifestações relacionadas com uma morte que aconteceu num subúrbio totalmente urbanizado de Paris, mas os protestos já chegaram à Ilha da Reunião, território francês ao largo de Madagáscar e também a Martinica, Guiana Francesa e Guadalupe, nas Caraíbas.
Em Caiena, capital da Guiana Francesa, um homem de 54 anos, funcionário público e tratava do controlo de mosquitos, morreu na sua varanda, com um tiro disparado a partir da rua, segundo informações comunicadas pelas autoridades locais à agência de notícias Associated Press (AP), que relata ainda a destruição que se pôde verificar em alguns bairros de Caiena, com colunas de fumo espesso e negro a emergir do meio dos prédios e pequenos fogos por todo o lado. “É um nível de violência difícil de entender”, disse o diretor de Segurança Pública, Philippe Jos, citado pela AP.
O administrador da Guiana Francesa, Thierry Queffelec, disse na sexta-feira à noite que os transportes públicos estariam encerrados durante o fim de semana e anunciou também que passa a ser temporariamente proibido adquirir gasolina durante a noite.
Pelo menos seis pessoas foram presas, incluindo cinco menores. Ninguém foi ainda acusado pelo assassinato do funcionário do governo.
Outros protestos, ainda que de menor dimensão, aconteceram nas ilhas de Martinica e Guadalupe, onde não há, até agora, feridos ou mortes a registar. Tal como em França, as tensões raciais nas possessões francesas além-mar não são fenómenos recentes, muitos jovens sentem-se ignorados pelo Estado, uma sensação que piora com a distância física entre Paris e o território onde vivem.
A noite de sábado foi menos violenta, mas os confrontos continuaram a roubar o silêncio na Ilha da Reunião, onde de sexta para sábado se registaram incêndios e embates duros com as forças de segurança. Segundo Parvine Lacombe, assessor principal do administrador da região, a violência esta madrugada registou-se “de forma mais pontual”, em dez localidades da ilha,dá conta o “Le Monde”.
Os confrontos concentraram-se no distrito de Chaudron, em Saint-Denis. Entre a meia-noite e as 4h00, os manifestantes arremessaram pedras e cocktails molotov contra a polícia e contra edifícios. As autoridades responderam , com bombas de gás lacrimogéneo. Os confrontos não causaram feridos. Quatro pessoas foram presas em Saint-Denis, Le Port e Saint-Pierre. Ao longo da ilha, foram contabilizados pela polícia 70 focos de incêndio, principalmente de caixotes do lixo e alguns veículos. “A vitrine de uma concessionária de motocicletas, no distrito de Chaudron, foi destruída por lançamento de projétil", informou a administração da Ilha da Reunião, segundo as informações partilhadas no acompanhamento ao minuto que o “Le Monde”está a fazer dos protestos no seu site. Em Saint-Louis, o prédio da polícia municipal também foi alvo de vandalização.
Num comunicado de imprensa, o administrador do território, Jérôme Filippini, condenou fortemente os protestos dizendo que a violência nunca é justificável. Durante a noite de quinta para sexta-feira, a Casa do Cidadão de Le Port, onde estão concentrados vários serviços públicos, foi vandalizada e parcialmente incendiada.
Um cartaz a dizer "O Estado mata", fotografado em Paris, durante mais um dia de protestos contra a violência policial, que acabou por ser tornar também ele violento
Na Bélgica, onde os fissuras sociais e raciais também se fazem sentir, 35 pessoas foram detidas na noite de sábado para domingo, menos do que na noite de sexta para sábado, quando esse número ascendeu a 94 detenções. Das 35 pessoas detidas, 31 são menores de idade.
A discriminação racial da polícia belga já levou o Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) a expressar preocupação com a persistência das queixas de racismo, escreve o “Brussels Times”. Em janeiro de 2021, a morte de um homem negro sob custódia policial levou a protestos nos subúbios de Bruxelas e em outras cidades belgas. No mesmo mês, um outro homem árabe morre, também enquanto estava preso. No primeiro ano da pandemia, um outro homem de origem árabe, ainda menor, de 17 anos, foi atropelado mortalmente por um carro da polícia ao tentar fugir de uma operação de revista.
A imprensa internacional tem acompanhado de perto estes motins, que a todos remetem para os dias negros de 2005, quando os arredores de Paris foram o ponto de ignição para uma onda de manifestações que durou três semanas. A história também envolve a morte extemporânea de dois jovens de origem árabe. Zyed Benna, então com 17 anos, e Bouna Traoré, com 15, morreram na sequência de uma descarga elétrica numa torre da EDF, a empresa de fornecimento de energia francesa, onde se tinham escondido da polícia, que por sua vez andava atrás deles e de outros rapazes por causa de uma denúncia de vandalização de um local de obras, crime ou intenção nunca provados.
Em 2016, um homem negro, Adama Traoré, foi encontrado morto enquanto estava sob proteção policial. O ano passado, um outro homem negro, Jean-Paul Benjamin, foi morto a tiro pela polícia, por ter sido encontrado a guiar uma carrinha roubada.
O caso de Nahel é em quase nada diferente: um rapaz de origem árabe ou outra origem não-caucasiana faz alguma coisa aparentemente suspeita e é estancado a tiro. A polícia nega o incidente, diz que a vítima teve culpa, alega auto-defesa e a população revolta-se. Em 2005 não havia redes sociais, agora é quase certo que à mínima alteração da ordem pública alguém começa a gravar. Foi só por isso que se soube o que aconteceu a Nahel, já que, de início a polícia alegou que o jovem tinha tentado atropelar intencionalmente o grupo de polícias que conduzia a “operação stop”. Nada disso se vê nas filmagens.
A ONU já se juntou aos que pedem o fim da violência, mas também um controlo mais apertado das ações da polícia e uma investigação independente a este e outros casos que envolvem tratamento diferenciado de pessoas de origem árabe ou africana. É uma certeza empírica, já que o registo de etnia pela polícia não é permitido em França, logo a descriminação não é formalmente confirmável.
Defesa da polícia e as notícias lá fora
O correspondente do “El País”, Marc Bassets, escreve que a França não estava preparada para este movimento e nota, como outros jornais, como o “Bild” alemão, uma frase que os manifestantes escreveram em frente ao monumento dedicado “aos mártires da deportação e da resistência” (em Nanterre): “A polícia é cúmplice”.
O editorial de “The Guardian” sobre o caso fala de um agudizar da segregação racial como motivo para estes protestos, sem deixar de referir que os padrões de violência policial também são visíveis em protestos como o dos coletes amarelos. “São evidentes na forma de lidar de distúrbios civis mais amplos, como protestos por causa das pensões ou o dos coletes amarelos. Mas estes métodos são particularmente tóxicos e, com mais frequência, letais, no contexto do racismo institucional, discriminação racial e fanatismo pessoal”, escreve o jornal, acrescentando uma hiperligação para uma história sobre um jornalista francês que se infiltrou na polícia e escreveu sobre alguns dos seus problemas estruturuais, entre eles o racismo.
John Henley, correspondente para assuntos europeus do mesmo jornal, fala com alguns analistas para a sua mais recente análise sobre o caso. Questiona a "tendência violenta da polícia francesa" e depois de entrevistar o presidente do SOS Racisme, Dominique Sopo e criminologistas como Sébastien Roché, concluiu que “os polícias, em França, no geral, não se veem a eles mesmos como servidores do povo, antes como protetores do Estado e do governo”. Uma opinião partilhada também por Jacques de Maillard, académico especializado em questões de política pública na área da segurança.
Uma mulher fotografa uma carrinha do supermercado Aldi totalmente queimada, na cidade de Marselha. O supermercado também ardeu. Pelo menos 45 mil polícias estiveram nas ruas de todo o país durante a noite de 30 de junho e a madrugada de 1 de julho para tentar conter os protestos
CLEMENT MAHOUDEAU/Getty Images
No entanto, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, defendeu a polícia e a polícia militar, a gendarmerie, na sexta-feira à noite. Falou do combate contra o terrorismo, da defesa das mulheres vítimas de violência doméstica e de todos os perigos que as autoridades enfrentam. Logo depois disse que não iria autorizar ofensas aos agentes. “Sou ministro do Interior há três anos, vi grandes pessoas na polícia nacional, na gendarmerie nacional e não vou deixar que as vilipendiem. Não é porque uma pessoa - possivelmente, a justiça dirá - saiu da linha e cometeu um crime irreparável que devemos cuspir na polícia. É uma vergonha”, disse numa entrevista à TF1.
Do outro lado do mundo, no Japão, a análise segue as mesmas linhas: é preciso mais vigilância sobre os métodos de controlo de manifestações. "A polícia francesa, há muito sem sofrer reformas, está sob escrutínio após a morte de um adolescente. Os especialistas dizem que as autoridades não podem fechar mais os olhos a alegações como a de que existem grupos de extrema-direita infiltrados na polícia. As acusações de racismo na aplicação da lei, o estabelecimento de perfis baseados na etnia, as questões de recrutamento, treino e doutrina são essenciais”, escreve o Japan Times.