Internacional

Thaer, Ahmad, Sajid, Touqeer, (...): quatro histórias entre as centenas de vidas que se perderam no Mediterrâneo

Uma imagem do barco de migrantes que se afundou em água internacionais de responsabilidade grega no dia 13 de junho de 2023. Foi captada por um avião da Frontex nessa manhã
Uma imagem do barco de migrantes que se afundou em água internacionais de responsabilidade grega no dia 13 de junho de 2023. Foi captada por um avião da Frontex nessa manhã
Guarda Costeira Grega site oficial

É difícil fazer um levantamento das vidas de todos os que morreram no dia 13 de junho, a 70 quilómetros de solo grego, numa traineira que havia partido da Líbia com mais de 700 pessoas dentro. Mas começam a conhecer-se os detalhes sobre os migrantes que não sobreviveram àquela que é a pior tragédia de sempre em águas gregas. Thaer, Ahmad, Sajid, Touqeer. Quatro nomes entre centenas, talvez mais de cinco centenas, de mortes

Thaer, Ahmad, Sajid, Touqeer, (...): quatro histórias entre as centenas de vidas que se perderam no Mediterrâneo

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Ainda há centenas de pessoas desaparecidas, mas já ninguém espera encontrá-las com vida. Nem sequer há números exatos sobre quantas estariam dentro do barco de pesca que afundou a 70 quilómetros da cidade grega de Pylos, no mar Mediterrâneo no dia 13 de junho. Seriam mais de 700, pelos relatos que estão a ser recolhidos entre os sobreviventes, pelos poucos jornalistas que conseguiram falar com eles, neste momento isolados num campo fechado e vigiado, perto de Atenas.

Seria um trabalho de muitos anos o de tentar fazer o levantamento do nome de cada vítima, da vida de cada vítima, conhecer as histórias de toda a gente e as dores de todas as famílias. A história de uma tragédia desta dimensão conta-se quase sempre em números, porque eles são avassaladores. No entanto, cada pessoa que morreu ao largo de Pylos naquele dia estava a caminho de qualquer coisa. Thaer al - Rahal saiu do seu contentor no campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia, à procura de um emprego que o pudesse ajudar a pagar o tratamento para o transplante de medula que o seu filho precisava.


Thaer al-Rahal, de 39 anos, tinha quatro filhos para sustentar, trabalhava num mercado de venda de legumes fora do campo de Zaatari, onde a sobrelotação torna muito difícil encontrar um emprego. Enquanto isso, a mulher corria com o filho de cinco anos, Khaled, para vários hospitais. Até que os médicos a informaram que ele tinha um cancro que só poderia resolver-se com um transplante de medula.

A família nunca tinha tentado chegar à Europa. Eram sírios e ficaram sempre no campo, num país que faz fronteira com a Síria, porque a ideia sempre foi regressar. Fugiram de Daara, no sul do país, a cidade onde a guerra civil começou, há sete anos. “O Thaer não gostava da ideia de viajar para a Europa e sempre sonhou voltar para a sua cidade natal. Mas a busca de um tratamento para o seu filho, que sofre de cancro, levou-o a voltar-se para o mar traiçoeiro”, disse um primo de Thaer, Abdul Rahman al-Rahal, à Al Jazeera, onde a história desta família apareceu pela primeira vez.

Recolheram dinheiro entre todos os conhecidos e amigos que pudessem ajudar, e Thaer partiu para a Líbia, país onde embarcou, a 10 de junho, na traineira enferrujada que haveria de se afundar em menos de 15 minutos no Mar Mediterrâneo, sem qualquer assistência da Guarda Costeira da Grécia, apesar de terem existido pedidos de auxílio enviados do barco para a ONG Alarm Phone, uma espécie de linha de emergência para barcos em apuros.

Depois de recebido o pedido de ajuda, a organização forneceu as coordenadas da embarcação a várias autoridades europeias com responsabilidade no salvamento marítimo, mas ninguém acorreu a tempo, apesar de existirem fotografias da traineira tiradas por um barco da Guarda Costeira posicionado a metros da embarcação - com esta já imóvel. As autoridades gregas não negam ter tirado esta fotografia, mas continuam a afirmar que os migrantes pediram repetidamente para não serem resgatados, já que o seu desejo era continuar o caminho para Itália, o seu destino.

Uma imagem do barco que naufragou na costa da Grécia, provocando pelo menos 78 mortos
Guarda Costeira Grega

No entanto, há uma lei da própria UE que obriga ao resgate. É de 2014, mas parece descrever um desastre igual ao de dia 13. Primeiro, diz que não é estritamente necessário haver um pedido de ajuda por parte do barco em perigo. E depois estabelece os critérios para avaliar uma intervenção, que deve acontecer se, por exemplo, estiver em causa a “navegabilidade da embarcação e a probabilidade de que a embarcação não chegue ao seu destino final”, se “o número de pessoas a bordo em relação ao tipo e condição da embarcação” for demasiado elevado e depois de aferida “a disponibilidade de bens necessários como combustível, água e comida para chegar à costa”. Todos os critérios estavam reunidos.

Thaer terá pago um valor entre 4000 e 6000 euros para embarcar. Nove pessoas já foram presas na Grécia, todas elas de nacionalidade egípcia, por suspeitas de tráfico de pessoas.

As informações sobre estes homens são poucas e todos menos um se declararam inocentes na primeira apresentação em tribunal. Os sobreviventes dizem que eles atiraram ao mar comida que tinha sido oferecida pelos navios comerciais que se aproximaram da traineira durante o dia e as autoridades suspeitam que tenham feito quase cinco milhões de euros com as mais de 700 pessoas no barco, segundo declarações do ministro das Migrações, Notis Mitarakis, ao site de notícias Parapolitika.

Shahd, de 13 anos, Maan, de nove, e Maher, de 13 perderam o pai. Khaled perdeu o pai e a esperança que tinha de poder vir a curar-se.

Outra das histórias conhecidas é a de Ahmad Yousef al-Nayef, de 50 anos, também sírio, de Aleppo, pai de sete filhos. A sua mulher também falou com a Al Jazeera. “Ele queria uma vida melhor para os filhos, mas as nossas condições de vida pioraram nos últimos 10 anos. Tivemos que sair de casa e mudar de lugar várias vezes até nos estabelecermos numa área que é considerada a primeira linha de contacto entre o regime do Governo sírio e a oposição, em Tadif”, disse Ayoush al-Hassan. Yousef deixou a família e partiu para a Líbia, três meses antes de embarcar naquela traineira. A sua mulher descreve-o como um homem “carinhoso e atencioso”, desejoso de voltar a casa depois do trabalho.

Apesar de haver pessoas da Síria, do Egito, da Líbia, entre os passageiros, a maioria tinha viajado do Paquistão. Há cidades inteiras de luto, como conta uma reportagem do diário britânico “Guardian”, escrita a partir de Khuiratta, na zona de Caxemira controlada pelo Paquistão. Sajid Yousaf tinha 28 anos e também não sobreviveu ao desastre. A família falou com ele dia 8 de junho, enquanto Sajid esperava, já na Líbia, que os contrabandistas o colocassem a bordo de um qualquer barco para a Europa. Sajid, tinha uma pequena loja e dois filhos. “Eu nunca quis que ele fosse embora”, disse o pai, Yousaf, ao “Guardian”. “O irmão mais velho também o aconselhou contra esta jornada marítima mortal. É como andar sobre o fogo, o fogo pode engolir-nos a qualquer momento. Nós dissemos-lhe isto muitas vezes, pedimos que parasse com essa ideia, até pedimos que ele voltasse da Líbia.”

Há um vídeo de Sajid, agora viral, onde se vê o jovem pai a prometer trazer da Europa uma bicicleta como presente para o seu filho de quatro anos. Pelo menos 25 pessoas de Khuiratta embarcaram naquele dia, e só há notícias de dois sobreviventes. Há 12 anos, um dos irmãos de Sajid tinha conseguido chegar a Itália num destes barcos grandes utilizados para a pesca em alto mar e o sonho era reunirem-se os dois. Cerca de 500 pessoas desta mesma cidade residem em Itália, todos os que morreram tinham alguém conhecido disponível a acomodá-los à chegada.

Com Sajid ia o seu primo, Touqeer Pervez, de 29 anos, que também está desaparecido. A sua mulher está grávida. O pai de Pervez, operário de uma olaria, pediu dinheiro emprestado a cerca de 20 amigos e parentes para ajudar a pagar o lugar do filho neste barco, descobriu o “Guardian”, que falou com mais de uma dezena de famílias na área. O próprio Touqeer tinha trabalhado dois anos na Arábia Saudita para pagar a viagem. Às 05h de dia 9 de junho, enviou uma mensagem à família para dizer que estava no navio. “Quando tentei impedi-lo de se meter nessa viagem arriscada, ele disse que o nosso padrão de vida nunca melhoraria no Paquistão. Foi inflexível no sonho de mudar o nosso futuro e padrões de vida. Não sei como consolar a sua mulher grávida, que chora há três dias”, disse o pai de Touqeer, Mohammad Pervez.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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