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Turquia: curdos podem ser decisivos para a vitória do candidato presidencial da oposição

Turquia: curdos podem ser decisivos para a vitória do candidato presidencial da oposição
Chris McGrath/Getty Images

Mais de 64 milhões de turcos preparam-se para votar este domingo, em eleições legislativas e presidenciais. Há mais de 20 anos no poder, o chefe de Estado cessante e de novo candidato, Erdogan, está em risco de perder face ao candidato da oposição, Kiliçdaroglu

Com cerca de 64 milhões de eleitores inscritos para o escrutínio de domingo, a população com raízes curdas - entre 10 e 20 milhões dos 85 milhões de habitantes - pode desempenhar um papel crucial no desfecho das presidenciais.

As sondagens indicam uma ampla vantagem para Kiliçdaroglu nas três províncias curdas do sudeste da Turquia.

Na povoação de Turkozu, arredores de Ancara, concentra-se parte da comunidade curda na região da capital turca e que se dedica à recolha de resíduos, que depois vende para empresas de reciclagem, uma forma quase extrema de sobrevivência.

Num descampado, percorrido durante breves minutos uma estrada sinuosa, alagada e esburacada, dois adolescentes numa lixeira enchem enormes sacos com garrafas de plástico, latas, alguns metais. Preparam-se para os transportar aos ombros, as mãos protegidas com luvas, em direção a um dos centros de reciclagem locais, em troca de algumas liras. Um negócio ilegal, mas tolerado.

Junto deles está Yilmaz, 42 anos, o responsável pelo Partido Democrático dos Povos (HDP, esquerda e definido como pró-curdo), da região de Ancara. Vigia o trabalho dos jovens, emite algumas ordens e regressa à sede partidária, uma tosca casa situada junto a pequenos apartamentos recém-construídos.

O HDP enfrenta um processo judicial que poderá implicar a sua dissolução e dezenas de deputados curdos apresentam-se às legislativas do próximo domingo nas listas do Partido da Esquerda Verde (YSP), as cores que dominam nesta sede improvisada onde estão três amigos, todos de meia-idade e aparência humilde.

"Vou votar por Kemal Kiliçdaroglu nas presidenciais e pelo YSP nas legislativas", garante Yilmaz, numa referência ao candidato da oposição unida e líder do Partido Republicano do Povo (CHP, centro-esquerda) que enfrenta nas presidenciais o chefe de Estado, Recep Tayyip Erdogan.

Em 28 de abril, a Aliança Trabalho e Liberdade (EvO), que junta sete partidos de esquerda, com destaque para o YSP, num "contexto de múltiplas crises, incluindo política, social e económica", declarou o seu apoio a Kiliçdaroglu, candidato presidencial da Aliança da Nação (seis forças da oposição, nacionalistas e do centro à direita).

A declaração foi emitida por Mithat Sancar, copresidente do HDP, que justificou a decisão de não apresentar um candidato próprio "para cumprir o dever histórico face às gerações do passado e do futuro" e assinalar que "a tradição do povo da Turquia e dos oprimidos sempre foi a resistência contra as ideologias autoritárias e fascistas".

Yilmaz mantém-se cauteloso, e expectante, porque os curdos também reservam na memória as contínuas tergiversações do partido fundado por Mustafa Kemal Ataturk, o fundador da República laica em 1923.

"O CHP sempre teve uma abordagem problemática face aos curdos. As suas posições não têm contribuído para resolver o problema, mas o seu espírito democrático face aos curdos e alevis pode ser positivo", admite, também numa referência à minoria religiosa perseguida pelo poder central.

As reservas de Yilmaz parecem percorrer toda a importante comunidade curda da Turquia e quando os tradicionais eleitores do HDP, terceiro partido no parlamento nacional após as eleições de 2018, também poderão ser determinantes para a derrota da coligação liderada pelo Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, islamita-conservador), o partido de Erdogan no poder desde 2003.

"Se não existir solução para o problema curdo, os novos governantes acabarão por ser afastados do poder. Se não existir uma abordagem positiva a nível constitucional é o regresso aos velhos tempos. E o povo curdo voltará a lutar", promete Yilmaz.

As sondagens indicam uma ampla vantagem para Kiliçdaroglu nas três províncias curdas do sudeste da Turquia. Resultados excecionais em regiões onde o CHP nunca de afirmou.

O partido de Kiliçdaroglu nunca assentou raízes nas regiões curdas devido à sua associação com o nacionalismo turco e a severa repressão das insurreições curdas durante o regime de partido único, entre 1923 e 1950, para além da negação da existência do povo curdo e a proibição do uso da língua curda.

O CHP tem ainda apoiado firmemente as ações militares turcas no norte do Iraque contra o PKK e no norte da Síria contra as milícias curdas locais, uma resposta aos seus sucessos militares e ao reforço da sua presença nesta região de fronteira.

No entanto, e no decurso da campanha eleitoral, Kiliçdaroglu estendeu por diversas vezes as mãos aos curdos, consciente que o apoio massivo da principal minoria na Turquia é necessário para a sua vitória.

O candidato e presidente do CHP - que oscila entre a social-democracia, o nacionalismo e o "kemalismo" - censurou o Presidente cessante que "estigmatiza" os curdos ao tratá-los como "terroristas", e num vídeo que se tornou viral afirmou a sua identidade curda e alevi, uma minoria religiosa.

Mas a desconfiança entre os curdos permanece, e muitos consideram esta reivindicação "étnico-religiosa" de Kiliçdaroglu como uma mistificação apenas destinada a recolher votos. Receiam que no poder, e após terem resolvido os problemas económicos do país, a atual oposição regresse aos temas nacionalistas, em detrimento dos curdos.

À semelhança de Yilmaz, a generalidade da população curda da Turquia vai continuar a aguardar pelas novas promessas, incluindo o reconhecimento da língua curda elo futuro Parlamento, caso a oposição derrube Erdogan. Em alternativa, resta-lhe prosseguir o seu longo combate pela dignidade.

Não designamos o HDP de ‘pró-curdo’. Somos um partido de diversas identidades"

A repressão ao Partido Democrático dos Povos (HDP, esquerda), ameaçado de ilegalização, acentuou-se nas últimas semanas na Turquia com a detenção de centenas de ativistas, em particular nas regiões com maior concentração da minoria curda, que permanece estigmatizada.

Nuray Ozdogan recebe a Lusa na sala de conferências do partido denominada Deniz Poyraz, um tributo a esta ativista do HDP assassinada em junho de 2021 na região de Esmirna por um extremista turco, na sede do partido.

Advogada do comité de direitos humanos do HDP e defensora dos direitos do povo curdo, Nuray Ozdogan denuncia em tom firme as pressões das últimas semanas sobre esta formação, antes de precisar a sua vertente ideológica: "Não designamos o HDP de 'pró-curdo', antes de ecologistas, feministas, assalariados, LGBT, etc. Somos um partido de diversas identidades".

A sua frase de campanha é "Mulher, Vida, Liberdade", um eco dos protestos anti-regime que varreram o Irão nos últimos meses.

"A nossa ideologia assenta no feminismo, ecologia, o valor do trabalho, liberdade, antimilitarismo, democracia. O conceito de democracia radical. Existem componentes socialistas na nossa aliança", explica no gabinete da sua editora, vocacionada para a publicação de livros sobre política geral e após oferecer café ou chá, costume habitual na Turquia para os visitantes.

O HDP indicou que apenas no mês de abril foram detidos 295 membros do partido, sobretudo em Diyarbakir e Istambul, onde se concentra a maior população curda, respetivamente 1,5 e 3 milhões, num total que segundo diversos estudos varia entre entre os 12 e os 20 milhões, pelo menos 15% da população. Dezenas permanecem nas prisões.

"Trata-se de um ataque sistemático ao HDP por parte do AKP [o partido islamista conservador no poder], com muitas vagas de detidos. Houve ataques recentes devido ao peso na sociedade do HDP, quase diariamente ocorrem operações de detenção em todas as províncias da Turquia", acrescenta Nuray Ozdogan.

A ativista e advogada está convicta da importância decisiva dos deputados do HDP integrados na aliança das esquerdas, e ressalva o apoio anunciado por estas formações ao candidato presidencial da oposição, Kemal Kiliçdaroglu.

Em 04 de maio, Demirtas emitiu a partir da prisão de Edirne (na Trácia turca) uma mensagem no Twitter dirigida a Kiliçdaroglu. "Acredito sinceramente que terminará com a segregação, assegurará a paz social e trará prosperidade à Turquia. O meu voto é para si Sr. Presidente Kiliçdaroglu".

Em resposta às acusações do Presidente Recep Tayyip Erdogan, do AKP que também dirige, e do Governo sobre "cumplicidade com o terrorismo", respondem ao recordarem os direitos constitucionais.

Atento a esta situação, o editor e candidato a deputado Emirali Trukmen acredita que o AKP não aceitará facilmente uma derrota eleitoral, apesar de acreditar na mudança,

"Na Turquia já existe um ambiente de violência. Se o AKP perder, a violência política pode aumentar", admite.

"Mas, no caso de alteração política, não temos por objetivo integrar o novo Governo, mas antes pressionar para que adote uma nova atitude. O nosso objetivo é eleger 80/90 deputados do HDP, e garantir entre 12,8% e 13,2% dos votos expressos", acrescentou.

Nas legislativas de 2018 o HDP afirmou-se como a terceira força política após o AKP e o Partido Republicano do Povo (CHP) liderado por Kiliçdaroglu, ao eleger 67 dos 600 deputados (11,70%).

A imposição da paz, de um acordo político que solucione a "questão curda", será outra das prioridades.

"O Governo tem de abandonar o conceito de política de guerra, que provoca crise na sociedade. O Governo e as Forças Armadas pressionam para que não seja garantido um acordo de paz sobre a questão curda. Estão em cooperação estreita, são parecidos, pensam em conjunto. O desejo da população pela paz pode destruir essa parceria", concluiu o editor.

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