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Vice-primeiro-ministro britânico demite-se na sequência de acusações de assédio moral

Boris Johnson e Dominic Rabb
Boris Johnson e Dominic Rabb
Stefan Rousseau - PA Images/Getty Images

O relatório contra Dominic Raab contém pelo menos 24 queixas de assédio moral contra o ministro da Justiça britânico e número dois do Executivo. Esta sexta-feira, Raab passou a ex-ministro, tendo preferido demitir-se do que esperar pelo empurrão do primeiro-ministro, Rishi Sunak. Na carta de demissão diz que este tipo de acusações podem ser “perigosas” para quem quer que exerça funções governativas

Vice-primeiro-ministro britânico demite-se na sequência de acusações de assédio moral

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Dominic Raab, desde esta sexta-feira ex-ministro da Justiça e ex-vice-primeiro-ministro do Reino Unido — que já estivera à frente dos Negócios Estrangeiros e do Brexit, ainda no tempo da primeira-ministra Theresa May —, demitiu-se na sequência de um relatório onde pelo menos 24 pessoas o acusam de assédio moral, comportamento verbalmente agressivo e outras formas de bullying.

O documento, que não é público, foi entregue ao primeiro-ministro na quinta-feira. Ainda assim, não foi Rishi Sunak que demitiu Raab, mas este que escolheu sair, segundo informações divulgadas por jornais britânicos.

Raab sai a contragosto

Já há pedidos para que Raab abandone também o lugar de deputado. Os Liberais Democratas, que têm no círculo eleitoral do demissionário um dos seus principais objetivos para as próximas eleições, foram os primeiros a exigir o seu afastamento da política. “Mostrou que não pode servir como ministro, e como deputado também não. Deveria demitir-se do cargo e permitir que os cidadãos de Esher e Walton tenham o representante que merecem”, disse, a vice-presidente dos ‘Lib Dems’, Daisy Cooper, citada por “The Guardian”.

O visado, na carta de despedida, parece pouco arrependido e nega que haja sequer razão para a grande maioria das queixas que constam do relatório, redigido pelo advogado independente Adam Tolley. “Embora sinta que é minha obrigação aceitar o resultado do inquérito, o documento afasta todas as acusações contra mim, com exceção de duas”, começa por escrever Raab, depois de umas primeiras linhas onde releva os serviços prestados ao país.

Logo depois, Raab diz que a sua saída, por motivos que não reconhece, pode abrir um “precedente perigoso para a conduta de um bom governo” porque torna mais fácil um ministro ser afastado. “Ao estabelecer um limiar tão baixo para se poder falar de bullying, esta investigação abriu um precedente perigoso, porque encoraja denúncias falsas contra os ministros e terá um efeito inibidor sobre aqueles que promovem mudanças em nome do seu Governo – e, também, em nome do povo britânico”.

O tom é o de alguém que se demite porque, se não o fizer, será afastado. Não há pedido desculpa pelas coisas de que é acusado, apenas um pedido de desculpa por “qualquer stresse” que possa ter causado, sem intenção. Numa outra frase da carta, Raab menciona a necessidade de supervisionar os funcionários e de, por vezes, fazer críticas ao seu trabalho, e insinua que é precisamente essa forma mais exigente de fazer as coisas que provoca a sua saída.

Advogada europeísta era “cabra tonta”

Não se conhecem os rostos dos queixosos, e muitas das queixas continuam no segredo das páginas do relatório, mas Gina Miller, a advogada anti-Brexit que levou o Governo a tribunal e obrigou Theresa May a sujeitar a várias votações parlamentares o seu plano para a saída do Reino Unido da União Europeia, afirmou esta quinta-feira, em entrevista à Talk TV, que Raab lhe tinha chamado “cabra tonta” precisamente na altura em que era ministro do Brexit.

Raab frisa que nada no relatório de Tolley descreve qualquer tipo de comportamento inadquado. “Conclui que nunca, em quatro anos e meio, ofendi ou gritei com alguém, muito menos atirei coisas contra pessoas ou procedi a intimidações físicas. Nunca procurei intencionalmente menosprezar ninguém”, acrescenta na missiva.

Os aliados de Raab recorrem ao jornal “The Daily Telegraph”, próximo dos conservadores, para garantir que o ex-ministro vai “lutar até à morte” para limpar o seu nome. Que Sunak tenha demorado tanto a tomar uma decisão pode sinigifcar que as alegações têm mesmo pouca consistência alegam. “Sabemos que [Raab] é advogado, pelo que é claro que vai lutar, e sabe como lutar para salvar a sua carreira política”, disse um desses apoiantes ao jornal britânico.

O conselheiro para a ética de Downing Street, noutro relatório, sobre a antiga ministra do Interior Priti Patel, considerou que o bullying não precisa de ser intencional para violar o código ministerial. Na altura, o primeiro-ministro Boris Johnson ignorou o relatório e Patel permaneceu no cargo. Desta vez Sunak talvez não tivesse disposto a aceitar manter à frente da Justiça alguém sobre quem recaem queixas deste tipo.

"Saga Kafkiana"

O ex-ministro publicou, também esta sexta-feira, um artigo de opinião no “Daily Telegraph”, com o título “Vão ser os britânicos a pagar por esta saga Kafkiana”, que utiliza para expandir o que deixou mais ou menos implícito na carta oficial de demissão. Logo no primeiro parágrafo, Raab reforça o "precedente perigoso” que este tipo de acusações pode estabelecer mas vai mais longe, dizendo que podem mesmo “paralisar a ação dos ministros” no seu esforço para cumprir o que prometeram aos eleitores britânicos. A palavra é “paralisar” e não foi escolhida de forma aleatória.

Uma parte da ala mais conservadora do seu partido, fortemente eurocético, muito contra as novas tendências do “politicamente correto”, revê-se nesta retórica, que crítica o excesso de regras, as burocracias, nega autoridade aos académicos e aos os especialistas e, nas palavras de um dos maiores vulto da ala radical dos conservadores, Jacob Rees-Mogg, classifica mais ou menos toda a gente que não concorde com eles como “flocos de neve”.

Raab diz várias vezes que nunca tratou mal ninguém, nunca ofendeu ou gritou e garante que tudo o que fez foi para evitar uma cultura de laxismo. “O povo britânico espera dos ministros que exerçam uma rigorosa supervisão dos seus funcionários, para evitar que os mandatos democráticos caiam por terra, espera que eles tornem mais competentes os departamentos que não estão a trabalhar tão bem e espera que previnam os gastos exagerados do dinheiro dos contribuintes".

O ex-ministro chama ainda a atenção para o facto de todo este processo ter-se passado em ruas obscuras, longe das “normais regras de procura de provas factuais”, sem “justiça processual”. E dá um exemplo: normalmente existe um limite de três meses para que alguém possa apresentar queixas de bullying, algumas têm mais de quatro anos. O número de queixas formais que tem estado a ser apresentado na comunicação social (24) também é negado pelo ex-ministro. “São 15 queixas no total, desde 2018, e todas vagas, sem data e sem consubstanciação”, escreve.


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