O Tribunal Constitucional (TC) espanhol impediu, segunda-feira à noite, o debate e votação de uma iniciativa no Senado. A decisão é inédita na democracia espanhola e foi vista por várias vozes como ingerência na atividade parlamentar.
Está aberta uma “crise institucional sem precedentes” na democracia espanhola. “Em 44 anos de democracia jamais se despojara as Cortes [Parlamento, composto por Congresso dos Deputados e Senado] da faculdade de legislar”, afirmou o presidente do Senado, o socialista Ander Gil, numa declaração após ser conhecida decisão do TC.
A decisão foi tomada pelos juízes a pedido do Partido Popular (PP, direita, na oposição). Tem por objeto uma mudança na legislação que regula a eleição de juízes do próprio TC e do Conselho Geral do Poder Judicial.
O PP pediu uma medida cautelar, num recurso para o TC. Invoca que foram atropelados procedimentos parlamentares pelos partidos do Governo (Partido Socialista Operário Espanhol, de centro-esquerda, e a frente de esquerda radical Unidas Podemos). Estes recorreram a mecanismos que permitiriam concretizar as mudanças legislativas em poucos dias e sem debate no Congresso e no Senado.
Socialistas acatam a contragosto
Para o PP, deputados e senadores foram impedidos de exercer os seus direitos. O partido chefiado por Albeto Núñez Feijóo questionou estes procedimentos, que considerou inconstitucionais.
O presidente do Senado, Ander Gil, a presidente do Congresso, Meritxell Batet, e o ministro da Presidência, Félix Bolaños, todos do PSOE, vão acatar a decisão do TC, por respeitarem as instituições do Estado de Direito, mas anunciam contestação. Consideram o caso de “gravidade máxima”, por haver um condicionamento do poder legislativo e da ação dos representantes mais diretos da soberania popular.
“É um dia insólito para a democracia” e “um triste ponto de viragem na história recente” de Espanha, afirmou Gil. Lamenta que os juízes do TC tenham tomado a decisão em tempo recorde e sem ouvir o Senado ou o Congresso.
“Os legítimos representantes da soberania popular foram impedidos de votar, não existe precedente comparável”, reforçou, antes de sublinhar a gravidade da decisão do TC por se traduzir numa “deterioração do sistema democrático” que põe em causa o princípio da garantia da inviolabilidade” das Cortes, plasmado na Constituição.
Separação de poderes em causa
Para Gil, está aberta uma “crise institucional sem precedentes”. Faz eco de palavras de políticos, constitucionalistas e analistas. O ministro Bolaños, numa declaração na sede do Governo em Madrid, considerou de “gravidade máxima” a decisão do TC de “paralisar uma lei na sede da soberania nacional”.
A seu ver, uma decisão destas nunca se viu em Espanha ou noutro país europeu “do mesmo contexto” e “afeta a separação de poderes”.
Já o líder do PP, Feijóo, escreveu na rede social Twitter que a democracia espanhola ficou “fortalecida” porque “num Estado de Direito, todos os poderes estão submetidos à lei”.
O recurso do PP para o Constitucional teve o apoio dos outros partidos de direita com representação parlamentar, Cidadãos (direita liberal) e Vox (extrema-direita). O líder deste último, Santiago Abascal, promete uma moção de censura contra o Executivo do socialista Pedro Sánchez.
As mudanças na eleição dos juízes do TC e do Conselho do Poder Judicial pretendiam diminuir as maiorias necessárias para as escolhas de alguns magistrados, depois de quatro anos sem o acordo necessário entre os partidos no Governo e o PP para substituir membros das duas instituições que têm os mandatos caducados.
O PP recusa acordos com o PSOE, por o Governo espanhol fazer pactos e negociar com partidos independentistas catalães e bascos, a quem acusa de quererem “romper Espanha” e atentar contra a Constituição. Assim, não há no TC ou no Conselho do Poder Judicial juízes indicados na legislatura iniciada em 2019, em que governam PSOE e UP.
No Conselho do Poder Judicial há juízes com mandatos caducados há anos e no TC há dois, incluindo o presidente, cujos mandatos terminaram em junho. Mantém-se nas duas instituições uma “maioria conservadora”, ligada ao PP e à direita em geral.
Para contornar o bloqueio, PSOE e UP usaram a figura das “emendas” e “tramitação urgente”, previstas no regulamento parlamentar, para fazer a alteração legislativa que ia ser votada no Senado na quinta-feira e que já fora aprovada pelo Congresso dos Deputados na semana passada, pela maioria formada pelos dois partidos no Governo e partidos nacionalistas bascos e catalães, entre outras formações.
O ministro Bolãnos disse, segunda-feira à noite, que o TC “paralisou a sua própria remodelação”, com juízes com mandato caducado a não se coibirem de votar e decidir o seu próprio futuro. Criticou também o PP por “querer controlar o Parlamento quando é maioria e quando não é”.
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