Exclusivo

Internacional

Reino Unido tem novo orçamento: é um “elogio fúnebre” ao “Trussonomics”, traz subida de impostos e não impede queda de 7% do nível de vida

Jeremy Hunt, ministro das Finanças britânico
Jeremy Hunt, ministro das Finanças britânico
SOPA Images/Getty Images

Jeremy Hunt, ministro das Finanças do Reino Unido, já apresentou o novo orçamento para o país, depois de uma versão “mini”, desenhada pela equipa da ex-primeira-ministra Liz Truss, ter levado a uma sublevação nos mercados que acabou por provocar o fim do seu curto Governo. Este “retificativo” era, por isso, esperado com medo e expectativa. Hunt anunciou uma subida de impostos que vai recair sobre todos os escalões e, mesmo com ajudas previstas, por exemplo, para o pagamento das contas de energia, o nível de vida dos britânicos deve descer 7% nos próximos dois anos. A maior parte dos cortes previstos, porém, só deve realmente começar a doer depois das eleições

Jeremy Hunt começou a sua longa apresentação do novo orçamento do Governo (algo como uma orçamento retificativo pós-Liz Truss) com a garantia de que o crescimento económico pode ser atingido sem perder de vista “a compaixão”, porque “ser britânico é compadecer-se” e “este é um Governo com compaixão pelo próximo”. Pode ter sido essa a intenção, mas a análise do Instituto para a Responsabilidade no Orçamento (OBR, na sigla em inglês), cuja função é a de ir desmontando as medidas anunciadas pelos governos em consequências reais para as pessoas, apresentou uma leitura um pouco mais sombria.

O OBR diz que, apesar do novo apoio para que as famílias e o comércio possam pagar as contas de energia, não será possível evitar uma queda de 7% nos padrões de vida (qualquer coisa como uma perda de 1.700 libras por ano, em média, ou 1.944 euros, por pessoa). Oito anos de crescimento destes mesmos níveis chegam assim ao fim. “Os mais de 100 milhões de libras de apoio fiscal [144 milhões de euros] adicional nos próximos dois anos amortecem o impacto dos preços mais altos da energia.

Porém, com base no ano fiscal, o rendimento real por pessoa [Real Household Disposable Income, uma medida de avaliação do nível de vida] cai 4,3% em 2022-23, a maior queda desde que este indicador começou a ser avaliado, em 1956-57. Logo depois virá a segunda maior queda, 2023-24, de 2,8%”, escreveu o organismo de fiscalização em comunicado. O desemprego também vai subir, em cerca de meio milhão de pessoas - dos atuais 1,2 milhões de desempregados para 1,7 no pico da recessão, que deverá durar até aos primeiros meses de 2024.

Buraco negro orçamental existe ou é escolha política?

O orçamento de Hunt, que já tem um nome especial, “serviço fúnebre para o Trussonomics”, o nome dado ao conjunto de medidas da ex-primeira-ministra que provocou uma reação adversa nos mercados - apresenta cerca de 40 mil milhões de libras (45,755 mil milhões de euros) em aumento de impostos e mais ou menos o mesmo em cortes de despesa, uma “divisão justa” do fardo, disse Hunt aos deputados na apresentação do documento. A médio prazo, estas medidas “compensam os juros mais altos da dívida e os custos com as ajudas sociais e vão fazer cair a dívida, em relação à percentagem do PIB”, dizem os especialistas do OBR.

É precisamente esse o principal objetivo de Hunt: tapar o “buraco negro orçamental” de 55 mil milhões de libras nas finanças britânicas (62,913 mil milhões de euros). Não faltam economistas que se surpreenderam com a apresentação deste valor, já que nem todos consideram estas medidas necessárias, antes “escolhas políticas” dos conservadores, como escreve James Meadway, num artigo publicado no “Guardian”.

Para o economista, este valor é “o resultado de previsões incertas e da própria meta do Governo para o nível de endividamento daqui a cinco anos”, ou seja, um “buraco fiscal fantasmagórico” que, diz Meadway, “serve como desculpa para arrastar o país de volta ao ciclo económico da austeridade”.

“Os que têm ganhos médios, entre 20.000 e 40.000 libras por ano [entre 23.000 euros e 46.000] - terão um ou dois anos particularmente difíceis”, disse Paul Johnson, diretor do Instituto de Estudos Fiscais, à ITV News.

Já aqueles que defendem mais cortes fiscais, como Liz Truss e o seu ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng, dizem que este é um orçamento que coloca o Reino Unido “firmemente no caminho para impostos mais altos, mais gastos e menor crescimento - é uma receita para o declínio controlado, não um plano para a prosperidade”, escreveu o diretor-geral do Instituto para os Assuntos Económicos, Mark Littlewood, cujas teorias económicas influenciaram o “mini-budget” de Truss e Kwarteng, onde a descida de impostos aparecia compensada por mais empréstimos, algo que os mercados vetaram em poucos minutos, com uma queda acentuada da libra e diversos avisos sobre os problemas do endividamento.

“Jeremy Hunt está certo ao enfatizar a necessidade de reduzir o peso da dívida e em desacelerar o crescimento dos gastos do governo. Mas a consequência de aumentos consideráveis de impostos pode ser uma desaceleração económica mais profunda e mais longa – resultando em menos receita fiscal a longo prazo. O chanceler optou por proteger os pensionistas e os que recebem assistência social, mas os trabalhadores comuns saem derrotados”, acrescentou, num comunicado publicado no Twitter. O OBR prevê que o peso dos impostos no PIB possa atingir o nível mais elevado desde a Segunda Guerra Mundial.

Os conservadores, como seria de esperar, estão “deprimidos”, como alguns chegaram mesmo a confessar ao jornalista da Bloomberg Alex Wickham, como se pode ler em baixo. É teoria testada que as eleições se vencem ou perdem conforme as pessoas sintam que perderam ou ganharam poder de compra nos anos anteriores.

Numa ronda de entrevistas já perto do fim da tarde, Hunt foi fortemente acusado de agendar as decisões mais difíceis, nomeadamente sobre os cortes na despesa pública, para depois das próximas eleições gerais - no máximo em janeiro de 2025 mas provavelmente antes.

Em entrevista ao programa Robert Peston da ITV, Jeremy Hunt disse que esperava que as pessoas lhe dessem crédito por ser honesto com o público sobre os problemas que o país enfrenta. Quando confrontado com o facto de estar a “atirar os cortes na despesa para depois das eleições”, o ministro das Finanças defendeu-se dizendo que qualquer responsável pelas finanças que apresente um aumento de impostos de “25 mil milhões” não pode ser acusado de “recusar adiar decisões horríveis”. “No final de contas, o que o país quer, o que as famílias querem, é a confiança que vem da honestidade sobre os problemas, mas também de ter um plano que lhes dê esperança no futuro”. O OBR, nota, no entanto, que, de facto, os cortes só vão sentir-se mais tarde, como fica claro no gráfico em baixo:

Mais receita, mas sem mexer nos escalões

A maior diferença deste orçamento em relação à versão “mini”que foi apresentada por Liz Truss, está, de facto, na carga fiscal. Hunt reduziu o limite a partir do qual se começa a pagar o imposto mais alto - até agora apenas os rendimentos superiores a 150.000 libras por ano (137.000 euros) entravam no escalão mais alto; agora, os que atinjam os 125.000 (143.000 euros) também vão ter de pagar (45%). A redução vai trazer cerca de um quarto de milhão de pessoas para o escalão dos “mais ricos”, a um custo de 580 libras por ano, o que por sua vez entregará 1,3 mil milhões de libras (1,5 mil milhões de euros) extra aos cofres do Estado, por ano.

No orçamento da primavera de 2021, o então responsável pela pasta das Finanças Rishi Sunak congelou por quatro anos os escalões fiscais. Com o tempo, isso leva a que mais famílias passem a entrar no escalão que paga a taxa mínima (20%, que se começa a pagar a partir das 12.750 libras - 14.581 euros - de rendimento por ano) e aquelas com ganhos próximos de 50.000 (57.181 euros) entram na taxa mais alta - de 40%. Ou seja, as taxas não mexem mas as pessoas estão a ter aumentos salariais por causa da inflação e o Governo, sem mexer nas taxas, está a receber mais dinheiro.

Hunt foi ainda mais longe, prolongando esse congelamento por mais dois anos, até 2028 no total. Esta medida vai criar mais 3,2 milhões de contribuintes na taxa mais baixa e outros 2,6 milhões vão passar para o escalão que mais paga, segundo o OBR.

Mais impostos sobre rendimentos “atípicos”

Como também já era esperado, Hunt vai aumentar os impostos sobre os lucros excessivos as petrolíferas e empresas de gás - de 25% para 35% durante dois anos.

Mas também haverá um novo imposto, de 45%, sobre outras empresas produtoras de energia menos poluente, como solar ou eólica. No entanto, os 35% serão cobrados sobre todos os lucros das empresas de petróleo e gás no Mar do Norte, enquanto os parques eólicos e outras energias renováveis só serão tributados a partir das 75 libras (86 euros) por megawatt-hora (MWh) de eletricidade que eles usam. Os empresários na área das renováveis não ficaram satisfeitos. “Este imposto sobre a energia de baixas emissões pode dissuadir o investimento neste tipo de fontes, num momento em que o ministro das Finanças deveria incentivar a utilização de energia limpa”, disse Dan McGrail, diretor-executivo do grupo de empresários Renewable UK, ao jornal “Scotsman”. Hunt garantiu não ter problemas com estes impostos extraordinários. “Não me oponho a impostos sobre lucros inesperados se eles forem genuinamente inesperados, causados por aumentos inesperados nos preços da energia”, disse.

O Governo prometeu ainda avançar com a construção de uma central nuclear.

A grande questão do endividamento

“Nós, conservadores, pagamos sempre o que gastamos”, disse Hunt pelo menos duas vezes na apresentação do orçamento. E acusou a oposição trabalhista de “pedir sempre dinheiro emprestado para sustentar o crescimento económico”, um jogo de palavras com a frase preferida de Truss antes de ter sido obrigada a deixar o Governo: “não podemos tributar as pessoas para sustentar o crescimento económico”.

Essa lição está decorada pelo novo ministro das Finanças. Hunt disse que os empréstimos no atual ano financeiro, 2022-23, serão de 7,1% do PIB - “um corte para mais de metade do que o previsto anteriormente”, acrescentou. Prevê-se que a dívida líquida do setor público atinja um pico de 97,6% do PIB em 2025-26 e, em seguida, caia gradualmente para 97,3% do PIB em 2027-28.

Hunt anuncia duas novas regras fiscais: a dívida subjacente deve cair como percentagem do PIB em cinco anos; e o endividamento do setor público deve ser inferior a 3% do PIB. O “Guardian” escreve que estas medidas visam acalmar os mercados. “Um dos principais públicos que Hunt deve satisfazer são os mercados financeiros, que estarão atentos a cada palavra sua. As novas regras fiscais de Hunt sobre empréstimos foram projetadas para se serem usadas como prova de que realmente o Reino Unido quer pagar a dívida”, escreve Aubrey Allegretti, analista político do diário britânico.

Quem ganha?

“Ganhar” talvez não seja um verbo justo, uma vez que a inflação está em níveis tão altos, e as contas da energia tão elevadas, que os aumentos salariais de 10% para os pensionistas, no ordenado mínimo e nos subsídios sociais é mais uma necessidade do que uma “borla”.

O salário mínimo, chamado o “salário de sobrevivência”, sobre de 9,50 para 10,42 libras por hora no próximo ano (de cerca de 11 euros para 12 por hora, mais 9,7%), uma medida que deve aumentar os salários de cerca de dois milhões de pessoas. Os pensionistas também vão ver as pensões subir ao nível da inflação, o que não era certo que acontecesse. Hunt decidiu não modificar a medida que obriga ao aumento das pensões segundo o indicador mais alto em determinado ano: a inflação, uma subida geral nos salários do país ou 2,5%. Este ano é a inflação, de longe, o mais alto de todos.

Os ativistas que lutam contra a pobreza também vieram expressar alívio, ainda que a preocupação continue. Cerca de nove milhões de famílias britânicas recebem algum tipo de subsídio social - e todos vão ser aumentados 10%. “É um alívio que os benefícios aumentem com a inflação, mas o pacote apresentado hoje não vai evitar que o gele se quebre debaixo de algumas famílias com mais dificuldades”, disse ao “Guardian” Alison Garnham, diretora-executiva do Child Poverty Action Group.


Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas